A produção social do transtorno da personalidade borderline

Autores

  • Haryanne Gabrielle Borges SANTOS Faculdades Pequeno Príncipe, Departamento de Pós-Graduação, Residência Multiprofissional da Saúde da Criança e do Adolescente. Curitiba, PR, Brasil.
  • Melissa Rodrigues de ALMEIDA Universidade Federal do Paraná – UFPR, Setor de Ciências Humanas, Departamento de Psicologia. Curitiba, PR, Brasil.

DOI:

https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2025.v5.161

Palavras-chave:

Transtorno da Personalidade Borderline, Determinação Social da Saúde, Medicalização

Resumo

O presente trabalho consistiu em uma produção monográfica cujo objetivo foi analisar criticamente as principais explicações atribuídas ao transtorno da personalidade borderline (TPB), à luz da teoria da determinação social do processo saúde-doença. O TPB é descrito pela psiquiatria como uma condição individual marcada por instabilidade afetiva, impulsividade, sentimento crônico de vazio e dificuldades interpessoais. Estima-se que sua prevalência global varie entre 1% e 3% da população. Entretanto, um dado chama atenção: cerca de 75% dos diagnósticos são atribuídos a mulheres. Este viés de gênero suscita a necessidade de análise das determinações sociais e históricas subjacentes a este sofrimento. Tal fenômeno ocorre em um contexto marcado pelo avanço da medicalização social e pela expansão da gramática psiquiátrica. Nesse sentido, para a compreensão deste fenômeno, este trabalho fundamentou-se no método materialista histórico-dialético, buscando a essência objetiva do sofrimento para além do imediato. Tal arcabouço permite romper com a lógica multicausal e individualizante, situando o processo saúde-doença na totalidade social. Como metodologia, desenvolveu-se uma pesquisa teórico-bibliográfica com o propósito de identificar e sistematizar as principais causas e “fatores etiológicos” do TPB descritos na literatura. Foram analisados 31 estudos indexados na Biblioteca Virtual em Saúde – BVS, publicados em um recorte temporal entre 2019 e 2024. Os dados obtidos evidenciaram um panorama de múltiplas explicações que coexistem, mas com pesos diferentes na narrativa científica. As principais causas relacionadas ao TPB foram agrupadas em: “eventos traumáticos na infância”, incluindo violência sexual (n=20); fatores genéticos (n=14); fatores ambientais gerais (n=14); causas neurofisiológicas (n=12); baixo status econômico (n=5); e características temperamentais (n=2). A análise demonstrou que a maioria dos estudos adota uma abordagem predominantemente descritiva e de “fatores de risco”, apenas citando os históricos de negligência e abuso na infância, e enfatizando os “biomarcadores” como centrais para sua etiologia. Com exceção de um artigo, a alta prevalência de violência sexual entre as mulheres diagnosticadas é um dado que é naturalizado como fator estatístico, sem discutir como a violência de gênero e as opressões estruturais atravessam a gênese do TPB. Essa abordagem falha em considerar que, na sociedade patriarcal, às mulheres são sistematicamente impostas violências, desigualdades e formas de opressão que podem se manifestar como sofrimento psíquico. Consequentemente, reações a traumas e violências são frequentemente descontextualizadas e patologizadas como um “transtorno de personalidade” inato ou congênito. A gênese desse sofrimento deve ser compreendida pela articulação dialética entre a relação singular-particular-universal. Sob esta ótica, as contradições da totalidade social (o universal, dado pelo modo de produção capitalista) se concretizam no particular (as relações de opressão de gênero, raça e classe), determinando as formas de sofrimento no nível do indivíduo (o singular). As condições de vida marcadas pela precarização, próprias do modo de produção capitalista, sustentam relações de subordinação e exploração que recaem de forma desigual sobre as mulheres, sobretudo trabalhadoras, negras e pobres. O patriarcado, ao se articular com a reprodução do capitalismo, reforça o controle sobre as mulheres por meio da divisão sócio-sexual do trabalho e da exigência de dedicação afetiva e reprodutiva. Essa lógica se expressa na medicalização da vida das mulheres, que transforma vivências de opressão em patologias individuais. A história feminista nos permite compreender que as ideias de "normalidade" e "anormalidade" relacionadas ao "ser mulher" foram construídas de acordo com as necessidades da sociedade patriarcal. Traçando um paralelo, o diagnóstico atual de TPB guarda similaridades com a caracterização da histeria nos séculos XVIII e XIX, quando comportamentos femininos que desafiavam a norma eram rotulados como "loucura irrecuperável". Atualmente, o discurso psiquiátrico multiplica diagnósticos que transformam o sofrimento das mulheres, derivado de condições sociais adversas e abusos cotidianos, em patologias predominantemente femininas. O fato de os critérios diagnósticos do TPB (como raiva intensa e impulsividade) serem comportamentos socialmente aceitos e lidos como "masculinos" quando apresentados por homens, mas patologizados em mulheres, evidencia que a multiplicação dos diagnósticos pode ser entendida como uma forma de punição que a sociedade patriarcal impõe sobre as mulheres que não atendem às normas de gênero. O discurso diagnóstico nega a experiência vivida, reduzindo a mulher aos sintomas do transtorno. Os critérios diagnósticos, como “problemas para controlar a raiva”, são lidos como característica inata e não como uma denúncia dos processos obstrutivos de suas próprias vidas. Para a psicologia histórico-cultural, a personalidade é o social em nós. O sofrimento psíquico incorpora o social, ou seja, em consonância com os pensamentos do autor bielorrusso Vigotski, aquilo que é interpsíquico torna-se intrapsíquico. As características do TPB, como “esforços desesperados para evitar abandono”, “impulsividade destrutiva” e “automutilação”, são lidas como obstruções aos modos de andar a vida de mulheres que vivem em relações capitalistas patriarcais. Os padrões de desgaste dependem do modo real da vida social, e não de um defeito inato da personalidade. A incidência de TPB ligada a experiências traumáticas, predominantemente estupros na infância, não pode ser lida como um mero fator de risco, mas como práticas sociais sistêmicas que abalam os indivíduos. Ao analisar a dimensão particular do desfecho que é compreendido como TPB, devemos reconhecer os padrões de desgaste e reprodução social dos grupos dos quais mulheres diagnosticadas participam, considerando as imbricações do nó gênero, raça-etnia e classe. Ao contrário do que a psiquiatria hegemônica alega, as dimensões biológicas não são a causa do que está sendo caracterizado como patológico, mas resultantes da universalidade concretizada nas singularidades por mediação das particularidades. A prática diagnóstica corrobora para o silenciamento das mais profundas determinações e impossibilidades no modo de viver das mulheres. Para estudos futuros, torna-se necessária a realização de pesquisas exploratórias e de campo, com entrevistas semiestruturadas e numa abordagem qualitativa assentada no materialismo histórico dialético, com mulheres diagnosticadas com TPB, para compreender suas trajetórias e as implicações sociais e subjetivas do diagnóstico. Reforça-se, a relevância política incontornável deste tema para subsidiar práticas e políticas comprometidas com a transformação das condições estruturais que produzem sofrimento, sendo essa perspectiva vital para a saúde coletiva e a defesa da despatologizacão do sofrimento psíquico.

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Biografia do Autor

Haryanne Gabrielle Borges SANTOS, Faculdades Pequeno Príncipe, Departamento de Pós-Graduação, Residência Multiprofissional da Saúde da Criança e do Adolescente. Curitiba, PR, Brasil.

Atualmente Residente de Psicologia nas Faculdades Pequeno Príncipe e graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná.

Melissa Rodrigues de ALMEIDA, Universidade Federal do Paraná – UFPR, Setor de Ciências Humanas, Departamento de Psicologia. Curitiba, PR, Brasil.

Professora Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, na área de Saúde Pública e Psicopatologia, e integrante do Laboratório de Psicologia Histórico-Cultural (LAPSIHC-UFPR). Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (2005), Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Paraná (2008) e Doutorado em Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (2018). Tem experiência na área de docência e Psicologia e interesse nas questões de saúde mental, saúde pública e saúde coletiva, reforma psiquiátrica e luta antimanicomial, psicopatologia, psicologia histórico-cultural.

Referências

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Publicado

2025-12-01

Como Citar

1.
SANTOS HGB, ALMEIDA MR de. A produção social do transtorno da personalidade borderline . Crit. Revolucionária [Internet]. 1º de dezembro de 2025 [citado 2º de dezembro de 2025];5:e004. Disponível em: https://criticarevolucionaria.com.br/revolucionaria/article/view/161

Edição

Seção

Jornadas, Colóquios e Anais