Crit Revolucionária 2022;2:e007
REVISÃO DE LITERATURA
doi: 10.14295/2764-4979-RC_CR.v2-e007
iUniversidade de São Paulo - USP, Faculdade de Saúde Pública - FSP, São Paulo, SP, Brasil
iiPontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, São Paulo, SP, Brasil
Copyright: Artigo de acesso aberto, sob os termos da Licença Creative Commons (CC BY-NC), que permite copiar e redistribuir, remixar, transformar e criar a partir do trabalho, desde que sem fins comerciais. Obrigatória a atribuição do devido crédito.
Resumo
O presente artigo tem como objetivo analisar à luz da literatura marxista as relações acerca da exploração da força de trabalho e seus rebatimentos na saúde pública brasileira. Realizou-se uma revisão sistemática crítica, em revistas marxistas nacionais, incluindo 13 artigos analisados em três categorias, sendo a exploração do trabalho, a saúde e as relações entre elas. O artigo contextualiza os temas da superexploração do trabalho e da expropriação social e, de forma sintética, da perspectiva histórica da acumulação capitalista na América Latina, a questão do trabalho e da saúde. Os artigos incluídos demonstram, que as condições de saúde se encontram, intimamente, articuladas à superexploração da força de trabalho. Sem dúvida e não poderia ser diferente no nosso país de capitalismo dependente, a produção de mais-valia absoluta é, muito mais importante, sendo a superexploração uma característica estrutural.
Palavras-chave: Exploração do Trabalho; Saúde; Capitalismo; Revisão.
Abstract
This article aims to analyze, in the light of Marxist literature, through a systematic critical review, the relations about the exploitation of workforce and its repercussions on Brazilian public health. A systematic critical review was carried out by 13 national Marxist reviews, with the search strategy for free terms: work, labour exploitation and health. The article contextualize the themes of overexploitation of work and social expropriation and, in a synthetic way, the historical perspective of capitalist accumulation in Latin America and the issue of work and health. The demonstrate that health conditions are intimately linked to the overexploitation of the workforce. Without a doubt, and it could not be different in our country of dependent capitalism, the production of absolute surplus value is much more important, with overexploitation being a structural characteristic.
Descriptors: Labour Exploration; Health; Capitalism; Revision.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo analizar, a la luz de la literatura marxista, las relaciones en torno a la explotación de la mano de obra y sus repercusiones en la salud pública brasileña. Se realizó una revisión sistemática crítica en revistas marxistas nacionales, incluyendo 13 artículos analizados en tres categorías, siendo la explotación del trabajo, la salud y las relaciones entre ellas. El artículo contextualiza los temas de la sobreexplotación del trabajo y la expropiación social y, de manera sintética, desde la perspectiva histórica de la acumulación capitalista en América Latina, la cuestión del trabajo y la salud. Los artículos incluidos demuestran que las condiciones de salud están íntimamente ligadas a la sobreexplotación de la mano de obra. Indudablemente y no podría ser diferente en nuestro país de capitalismo dependiente, la producción de plusvalía absoluta es mucho más importante, siendo la sobreexplotación una característica estructural.
Palabras clave: Exploración Laboral; Salud; Capitalismo; Revisión.
Introdução
A rudeza da luta diária e desigual pela subsistência no modo de produção capitalista nos coloca em estado de alerta. Não é novidade que esse modo produtivo se encontra em colapso estrutural e consigo traga nefastas consequências sociais. Tal situação tensiona, em escala mundial, a sobrevivência daqueles que dependem da venda de sua própria força de trabalho. Observa-se a redução do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria, desprotegido, totalmente livre nos marcos da sociedade capitalista.
Entre os anos 1960/1970 chegava ao fim o padrão de acumulação fordismo/keynesiano e as frações da classe dominante passaram a questionar a responsabilidade do Estado como mediador das políticas sociaisa.1 Na tentativa de recompor as taxas de lucros, o capitalismo incorporou uma reorganização ideológica e política de dominação. A estratégia para alavancar a acumulação na lógica neoliberal foi a adoção de novas tecnologias e a liberação monetária / descompartimentalização dos mercados.2 A consequência disto, é um forte processo de perdas para a reprodução do trabalho, adoção de múltiplas formas de trabalho precarizado, subcontratados (terceirização e/ou quarteirização), na qual vigoram os baixos salários. Ao mesmo tempo que se introduz alta tecnologia e impõe-se um maior dispêndio de trabalho, seja ele físico ou intelectual, no mesmo período de tempo, intensificando-se o ritmo de produção. Marx e Engels3 já apontavam esse processo ao comentarem o funcionamento do modo de produção capitalista.
[...] na mesma medida em que aumenta a maquinaria e a divisão do trabalho, sobe também a quantidade de trabalho, quer pelo aumento das horas de trabalho, quer pelo aumento do trabalho exigido num determinado tempo, quer pela aceleração do movimento das máquinas.3(46)
Para um entendimento mais firme do modo de produção capitalista, ressaltamos a definição básica de capital de Marx que é razoavelmente conhecida: o capital é antes de tudo uma relação social histórica entre o capital e o trabalho, no processo de produção.4 Trata-se de dizer que o capital é produto de uma determinada formação social e econômica, ou seja, de um desenvolvimento específico das forças produtivas, bem como das relações que se estabelecem entre os seres humanos no processo de produção característico, resultando em o aparecimento do capital. O capital só existe como forma dominante em determinada sociedade e, portanto, não é uma categoria econômica comum a todos os modos de produção. Capital, portanto, não é simplesmente riqueza capaz de ser usada para produzir mais riqueza, mas o resultado de um modo historicamente específico de produção de riqueza. Para Marx, é preciso reconhecer que o modo de produção capitalista só pode ser entendido historicamente, transformando-se e tornando-se mais complexo, conforme suas diferentes fases, à medida que sua contemporaneidade, a partir dos anos 1980, é dominada pelo capital fictício.5 Trata-se também de buscar sua compreensão no que Marx chamou de processo de valorização do capital (a lei do valor) e suas consequências em toda a sociedade capitalista, a sociedade burguesa. Marx considera que o capitalismo está orientado para a busca da valorização do capital e sua acumulação, por meio da produção de mais-valia, tendo o valor do trabalho como a determinação central das relações sociais de produção e desenvolvimento das forças produtivas.4
Especificamente, quando Marx4 aborda a questão do trabalho na sociedade capitalista ressalta que a grande indústria, movida por um processo de trabalho destinado a valorizar o Capital, tem efeitos prejudiciais à saúde dos trabalhadores. Essa temática pode ser encontrada nos capítulos do Livro I de "O Capital - A Jornada de Trabalho", a divisão de trabalho e a manufatura e Maquinaria e grande indústria. Nesses capítulos, Marx cita estatísticas sobre a saúde e os níveis de mortalidade. Nesse caso, Marx busca enfatizar a relação entre saúde do trabalhador e o processo capitalista de produção e não apenas entre saúde e processo industrialb.6,7
A perversidade deste modo produtivo tem claros rebatimentos na saúde com expressivo aumento dos acidentes e doenças profissionais,8 agravando ainda mais a questão socialc,9 impondo contrarreformas que no Brasil tem como protagonista o Estado.
O Estado "mantém relação intrínseca com a lógica do capital"10(58) sempre pressionando para baixo o salário-mínimo na contramão da riqueza socialmente produzida. O Estado na sua natureza capitalista não é neutro, já que cria condições cada vez mais degradantes ao funcionamento do mercado de trabalho.
Com o discurso de enfrentar a crise o governo brasileiro, após golpe institucional de 2016, vem adotando medidas que atingiram negativamente a classe trabalhadora com alterações na legislação trabalhista,11 com o congelamento dos gastos públicos primários por meio da Emenda Consituicional (EC) n. 95/2016,12 além da contrarreforma da Previdência Social. Para se ter uma ideia a partir da EC 95, com a passagem do subfinanciamento histórico para o processo de desfinanciamento, o SUS já perdeu cerca de R$ 22,5 bilhoes (acumulados 2018/19/20).13
A crise econômica pode ser evidenciada pelas altas taxas de desemprego, correspondendo a 14,1 milhões de desempregados segundo dados do 2° trimestre de 2021,14 portanto são pessoas em situação de vulnerabilidade social.15 O declínio da economia tem sido expressivo nos últimos anos, inclusive com Produto Interno Bruto - PIB negativos, o que intensifica a degradação das condições de trabalho sendo: 2014 (0,5%), 2015 (-3,5%), e 2016 (-3,3%), seguido de índices irrisórios de 2017 (1,3%), 2018 (1,3%), 2019 (1,1%) e 2020 (-4,5%).16
Diante do turbulento cenário, esse artigo tem como objetivo analisar à luz da literatura marxista, por meio de uma revisão sistemática crítica, as relações acerca da exploração da força de trabalho e seus rebatimentos na saúde pública brasileira. Para tanto, o artigo está estruturado em cinco partes. A primeira e a segunda parte contextualizam, de forma sintética, a temática do trabalho, a ser analisada na revisão sistemática crítica, destacando categorias-chave para o seu entendimento na América Latina, tais como a superexploração da força de trabalho e a expropriação social, bem como tratam da perspectiva histórica da acumulação capitalista na América Latina, evidenciando a questão do trabalho e da saúde. A terceira parte apresenta a metodologia utilizada para revisão sistemática crítica da literatura marxista sobre a exploração do trabalho e seus efeitos na área da saúde. A quarta parte aborda os resultados encontrados pela revisão da literatura. A quinta e última partes apresentam a discussão dos artigos incluídos na revisão, buscando identificar a relação entre a exploração do trabalho e a saúde.
A superexploração do trabalho e a expropriação social
A configuração do enfrentamento à crise ocorreu de formas distintas, até porque no "capitalismo central o eixo da acumulação se articula em torno da mais-valia relativa, no capitalismo dependente esse eixo se baseia na superexploração".17(143) Ao se refletir sobre o capitalismo dependente da América Latina, destacando a categoria da superexploração da força de trabalho, a Teoria Marxista da Dependência - TMD, se coloca como uma contribuição fundamental. A TMD explica o fenômeno da superexploração compreendida como "determinação negativa do valor contido na lei do valor, em que a corporeidade viva da força de trabalho é submetida a um desgaste prematuro",17(155) ou ainda "a reposição de seu desgaste acontece de tal maneira em que a substância viva do valor não é restaurada em condições normais".17(155) Tal situação está, intimamente, atrelada à diminuição do seu valor. Ao lado da importante categoria da superexploração da força de trabalho, abordada pela TMD, pode-se agregar a intensidade da expropriação social dos direitos sociais da classe trabalhadora no mundo18 por meio de contrarreformas e ajustes fiscais permanentes, sendo percebidos, com muita intensidade, no Brasil atual.
Para Fontes19 a "expropriação primária original" que ocorreu com as massas que possuíam a terra não se restringiu, apenas, à etapa da acumulação primitiva, mas também está presente e se intensifica no capitalismo contemporâneo. Os processos contemporâneos de subjunção do trabalho ao capital que decorrem da denominada expropriação primária podem ser denominadas como expropriações secundárias. Essas expropriações não dizem respeito à perda da propriedade dos meios de produção, mas se relacionam aos processos econômicos e sociais que agudizam a disponibilização do trabalhador para o mercado, criando novas formas de acumulação e extração de mais valor, como por exemplo, a mercantilização que ocorre em bens públicos, na saúde e na educação.
De acordo com Marx, a expropriação é uma das bases das formas primitivas do capital, em que se marca a separação do trabalhador da sua propriedade e dos meios de realização do próprio trabalho, na qual milhares de pessoas foram violentamente "lançadas no mercado de trabalho como proletários absolutamente livres".4(787) Expropriados de suas terras, famílias inteiras ficaram expostas à crueldade deste novo modo produtivo, e não tiveram outra alternativa a não ser migrarem para as cidades em busca de alguma possibilidade de subsistência. A forma abrupta como tudo aconteceu deixou os camponeses totalmente deslocados da cotidianidade até então vivida.
O modo de produção capitalista impôs modificações, confinou os artesões no mesmo espaço físico (fábricas), aproveitou-se da concentração de vários trabalhadores de diferentes ofícios e efetuou a reorganização (dividir) das atividades do processo produtivo, ou seja, os trabalhadores passaram a executar "continuamente apenas uma e sempre a mesma operação".4(513) O trabalho realizava-se dentro de um prazo determinado, de forma simultânea e em colaboração mútua entre os trabalhadores. O desenvolvimento produtivo alcançou o sistema mecanizado, a maquinaria facilitou a incorporação de "trabalhadores com pouca força muscular ou desenvolvimento corporal imaturo" 4(575), logo mulheres e crianças foram capturadas pelo capital. A máquina ampliou a exploração "para que uma família possa viver, agora são quatro pessoas que têm de fornecer ao capital não só trabalho, mas mais- trabalho".4(576) O ritmo produtivo foi totalmente alterado e os trabalhadores submetidos à "aceleração da velocidade das máquinas".4(595) Dadas as condições necessárias a "indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América".3(41)
A perspectiva histórica da acumulação capitalista na América Latina, o trabalho e a saúde
Em relação a América Latina e sua associação à dinâmica da acumulação capitalista, pode-se dizer que o ponto de partida é o século XVI, período este que a América Latina foi, compulsoriamente, integrada à "dinâmica do capitalismo internacional".20(140) O movimento operário alavancou o "desenvolvimento do capital bancário e comercial",20(140) forjando assim as condições ideais para a revolução industrial. A partir desta revolução os países latino-americanos, passaram a ocupar o lugar que lhes foram determinados na divisão internacional do trabalho, ou seja, "é a partir de então que se configurou a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes".20(140) Sabe-se que os países colonizados foram os principais fornecedores de alimentos e matéria-prima, tal determinação histórica contribuiu, significativamente, aos colonizadores que dispuseram de condições favoráveis para o seu próprio avanço produtivo via incorporação tecnológica, inaugurando uma nova forma de acumulação.
A base do capital é a indústria (Capital industrial), a genuína fonte produtora de valor e mais-valia, a única que consegue alterar tecnicamente a produção social e gerenciar os processos de trabalho. O avanço do capital industrial combinada ao capital financeiro elevou, após a segunda guerra mundial, o modo produtivo para a era de base microeletrônica, denominada revolução técnico-científica. A reorganização produtiva, em meados das décadas 1970/1980, deu-se de forma globalizada, sendo contraditórios e desiguais os fenômenos produzidos a partir deste avanço produtivo. Identifica-se, de um lado, que os países centrais deslocam sua produção de mais valia absoluta para a mais valia relativa, já os periféricos intensificaram a exploração dos trabalhadores combinado com a diminuição dos salários. Toda essa arquitetura foi erguida e (mantém-se) apoiada por uma classe sociald “que determina como os bens e serviços são produzidos e distribuídos na sociedade”.21(40)
A mundialização do capital forçou o Estado brasileiro a adotar medidas restritivas à reprodução da força de trabalho, criando aparelhos que cobrissem, de alguma maneira, os trabalhadores urbanos, peça fundamental no cenário político nacional, dentro da dinâmica de acumulação. Sob o domínio do capital industrial, este processo caracterizou-se na aceleração urbana, aumento da massa trabalhadora, em condições degradantes de saúde e moradia. Durante a ditadura viu-se o aprofundamento da questão social, objeto de intervenção no modo de repressão e/ou no modo de assistência. A política assistencial foi ampliada, burocratizada e modernizada pelo Estado com o único intuito de aumentar o poder de regulação sobre a sociedade, e assim minimizar as tensões entre as classes e legitimar o regime.22
Com a promulgação da Carta Magna,23 as políticas públicas brasileiras avançaram de forma lenta e desigual entre os estados federativos, atingidas pelas privatizações e desmontes sob o pseudônimo de reformas justificadas pelo pensamento neoliberal como necessárias à eficiência do Estado brasileiro. E por fim (e mais grave), ao longo destes anos, os seus recursos são expropriados via "mecanismos de manipulação orçamentária, que transfere recursos do orçamento da seguridade social para o orçamento fiscal".24(166)
Todos os direitos inscritos constitucionalmente são frutos de mobilização política e do tensionamento dos trabalhadores na correlação de forças na disputa pelos recursos do fundo público. A saúde é direito fundamental e o Sistema Único de Saúde - SUS é um dos mecanismos para a preservação da vida humana. O processo histórico trouxe à tona a contradição existente entre o projeto de sociedade inscrito na Constituição Federal/88 e a lógica de acumulação, ou seja,
[...] a configuração de padrões de universalidades e redistributivos de proteção social foi fortemente tensionada: pelas estratégias de extração de superlucros, em que se incluem as tendências de contração dos encargos sociais e previdenciários, pela supercapitalização, com privatização explícita ou induzida de setores de utilidade pública, em que se incluem saúde, educação e previdência; [...].24(155)
Constata-se que ao longo dos séculos o capitalismo passou por vários estágios e trouxe consigo o acirramento da desigualdade social entre as nações, na qual percebe-se que os países periféricos, como os da América Latina, são os mais atingidos. Ressaltamos que desde sua origem o modo de produção capitalista é essencialmente desigual, a base de suas relações pauta-se na busca da sua própria valorização, portanto a mercadoria é a aparência do conceito de capital e o principal meio de circulação. Já o valor é a "essência desse modo de produzir".21(40) O dinheiro é o conector entre o processo de circulação das mercadorias, além de assumir a função de equivalente total das demais mercadorias. O processo de troca de mercadorias, entre as nações, que se dá de forma geral pelo valor equivalente, quando se trata dos países de economia dependente, sofrem perdas no intercâmbio desigual em relações aos países de capitalismo central. Tal fenômeno expressa-se pela deterioração dos termos de intercâmbio, remessas de juros (serviços da dívida pública), remessas de lucros, royalties, dividendos e diferencial de apropriação de renda e de renda absoluta de monopólio sobre os recursos naturais.17 Não há dúvidas de que a dependência é estrutural e atinge diretamente as esferas comercial, financeira e tecnológica dos países latino-americanos.
Diante dos fatos históricos, afirma-se que o Capital sempre ditou as regras e exerceu seu controle econômico e político, assegurando a exploração daqueles que vendem sua força de trabalho, de forma mútua e indissociável produzindo um quantitativo de miseráveis, na qual as mulheres negras são maioria.25
A estagnação das economias latino-americanas tensiona a sobrevivência dos trabalhadores. Os países desta região, a exemplo da Argentina e Brasil, pautados pela lógica neoliberal, adotaram medidas restritivas de garantia / direitos fundamentais para reprodução da classe trabalhadora. Toda essa dinâmica produziu o aumento de empregos vulneráveis e precários com baixos salários, além das altas taxas de desemprego. A instabilidade de acesso à renda tem seu rebatimento na saúde, exemplificamos o retorno do Brasil, ainda em 2014, ao mapa da fome.
Metodologia
Trata-se de um estudo de revisão crítica da literatura para responder a seguinte pergunta: O que a literatura marxista tem disponibilizado acerca da exploração do trabalho e sua relação com a saúde brasileira? Busca-se compreender de que maneira a discussão entre a exploração do trabalho no capitalismo contemporâneo e a saúde brasileira vem sendo abordada pela literatura marxista.
Para a revisão iniciou-se com o mapeamento geral das principais revistas marxistas e heterodoxase que se aproximavam da temática do estudo. Selecionamos ao todo 22 revistas, sendo elas: "Revista Crítica Marxista"; "Cadernos Cemarx"; "Revista Marx e o Marxismo"; "Argumentum"; "Katálysis"; "Revista Serviço Social e Sociedade"; "Revista Ser Social"; "Revista em Pauta"; "Revista de Políticas Públicas"; "Revista Lutas Sociais"; "Revista Serviço Social e Saúde"; "Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas"; "Outubro"; "Revista Trabalho, Educação e Saúde"; "Temporalis"; "História e Luta de Classes"; "Terceiro Incluído"; "Germinal Marxismo e Educação em Debate"; "Arma da Crítica"; "Niep-Marx"; "SEP Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política"; e "Rebela Revista Brasileira de Estudos Latino-americanos".
A partir da pergunta de pesquisa definiu-se as principais palavras-chave: Trabalho, Exploração do trabalho e Saúde, para uma busca exploratória inicial, recuperando, respectivamente, 3.341, 542 e 1.736 publicações.
Após resgate das publicações por cada termo/palavra, realizou-se uma segunda busca exclusiva nos periódicos com devolutiva de publicações igual ou maior que 50. Nesta nova fase houve queda na quantidade de revistas, restando um total de 12, conforme contemplado no Quadro 1. Utilizou-se combinações entre si os/as termos/palavras-chave articulado com o operador booleano "AND", além da criação de mais uma combinação com o descritor: precariz* (referente à precarização).
Para a "Revista Trabalho, Educação e Saúde", foi criada uma combinação específica com a utilização do "AND MARX". Tal combinação fez-se necessária para o refinamento das buscas, já que a revista possui uma vasta produção relacionada à educação no campo da saúde.
A revista "Argumentum" apresentou problemas no site, portanto o periódico foi eliminado do estudo.
Assim, das 479 publicações encontradas foram excluídas 189 por se constituírem em artigos repetidos (72), sem resumo (109), entrevistas (4), editoriais (2) e volumes inteiro (2), restando 290 artigos. Na fase seguinte organizou-se em planilha os 290 artigos para uma melhor sistematização na leitura dos títulos. Utilizamos como critério de inclusão os/as termos/palavras e/ou correlatos: Trabalho (precarizado, terceirizado); Saúde (saúde do trabalhador); Condições de vida no Brasil (renda, pobreza/miséria, proteção social, seguridade social, políticas públicas, sistema público, crise, neoliberalismo/neoliberal). Foram excluídos 208 artigos, restando 82 artigos.
Para a leitura dos resumos, construímos elementos textuais a partir da própria leitura dos resumos dos 82 artigos, trabalhando com a materialidade que os textos apresentaram. Os elementos textuais que apareceram foram: sociabilidade capitalista contemporânea brasileira (relações sociais, crise, neoliberalismo/neoliberal); processo de acumulação (renda, desigualdade social, pobreza/miséria); relações de trabalho (intensificação, terceirização, precarização); saúde (saúde do trabalhador); proteção social (seguridade social, política social, direitos sociais, política pública). Após a leitura deste conjunto, outros 51 artigos foram excluídos, alcançamos o total de 31 artigos que abordam a temática de forma ampla.
De posse destes 31 artigos, partiu-se para uma segunda leitura dos títulos e resumos, na qual fixamos os principais elementos textuais a saber: trabalho e saúde. O objetivo desta segunda leitura foi obter um filtro mais significativo e delimitar de forma assertiva os artigos, o que levou à eliminação de outros 17 artigos, restando ao final 14 artigos.
Após a leitura de cada um dos 14 artigos, eliminou-se um por não tratar da temática delimitada por esta revisão. Sendo assim para a presente revisão foram incluídos 13 artigos, conforme demonstrado na Figura 1.
Para análise dos 13 artigos apoiou-se numa Análise de Conteúdo Crítico.26 Esta análise se associa ao arcabouço analítico e interpretativo da realidade do materialismo histórico-dialético. A realidade aqui em questão é aquela construída pelas condições materiais inscritas em uma dada ordem econômica, política e social. A partir da sua interpretação dialética é possível o resgate da estrutura e sua dinâmica, para uma compreensão da totalidade a partir da análise da exploração do trabalho, em geral e das condições de vida e saúde, em particular, utilizada neste estudo.
A revisão crítica dos artigos marxistas selecionados constitui um desafio, à medida que se assegura a perspectiva analítica no âmbito da visão marxista, sem que se aborde, de forma pormenorizada, os limites das suas diversas correntes.27
Resultados
Nesta revisão constatou-se que dentre os 13 artigos incluídos para a revisão existe uma lacuna de 10 anos entre o primeiro e o segundo artigo publicado, na qual a temática da saúde apareceu de forma direta somente em 2011. Observou-se que 69,23% dos artigos concentram-se entre 2011 e 2016. Observa-se a ausência da abordagem direta da saúde nos anos de 2017, 2018 e 2019, anos em que os trabalhadores brasileiros vêm sofrendo duro golpe com os retrocessos no campo dos direitos.8,28-39
Apresenta-se a seguir os argumentos sintéticos dos 13 artigos incluídos na revisão, conforme suas especificações, focando nas suas abordagens sobre a exploração do trabalho, a saúde e as relações entre eles (Quadro 2).
Os artigos revisados abordam a temática da exploração do trabalho e suas relações com a saúde pública brasileira de forma diversificada e ao mesmo tempo complementar. As abordagens se dividem em dois grupos: um que discute a saúde numa perspectiva de totalidade com sua produção pautada pela lógica da determinação social dos processos saúde-doençaf,40 e, ainda, outro com uma abordagem mais particular, pois discute o processo de trabalhog em sua relação com a saúde.
Os objetivos dos artigos podem ser consultados no Quadro 2 junto com outras informações, nos quais estão organizados de forma cronológica decrescente.
Discussão
Teorias utilizadas para análise
Quando se trata das teorias utilizadas pelos artigos identificou-se uma variante, na qual pode ser dividido em dois grupos. O primeiro grupo, com dois estudos29,39 não apresenta de forma clara qual o suporte teórico que utilizam.
O segundo grupo, composto por onze artigos, subdividem-se em dois subgrupos: o primeiro subgrupo, com três estudos, apresenta de forma direta o uso da Teoria social crítica32,34 e da Crítica da economia política.36 Já no segundo subgrupo, os estudos utilizam- se do referencial marxista de análise.28,30,31,33,35,37,38
Sobre as abordagens da exploração do trabalho, saúde e a relação entre elas
Em relação as abordagens das publicações podemos identificar dois blocos de intencionalidades. O primeiro bloco composto, por cinco artigos28,30,37-39 têm sua discussão assentada em torno das transformações no mundo do trabalho e seus reflexos nas condições de sobrevivência dos trabalhadores. Estes artigos encontram-se alinhados ao que Breilh41 tem desenvolvido quando
Foi na década de 1980 que começou a 'desconstrução' dos direitos sociais e da saúde, com o advento do Estado neoliberal. [...] Na América Latina, houve um empobrecimento acelerado, ligado à desvalorização de seus capitais. Nesse contexto, a demolição de todos os resíduos de proteção coletiva e solidária, bem como da seguridade social e da proteção do Estado, tornou-se uma necessidade estratégica, vestida com a roupagem de modernização. Foi um período de eficiência do poder, retrocesso do direito e degradação maciça da qualidade de vida e da saúde.41(135-136)
Estas publicações expõem alguns elementos como a queda de rendimento, desmonte da proteção social e/ou restrição de direitos, enfraquecimento dos sindicatos e/ou desmonte dos coletivos do trabalho; como os principais mecanismos que alavancam a produtividade ao mesmo tempo que coloca em risco a manutenção da vida humana.
Parte-se da premissa que o salário é o equivalente para garantir a reprodução da classe trabalhadora, mas a expropriação ao longo do processo sócio-histórico não sustenta tal possibilidade. Na esfera produtiva o trabalhador fica exposto, o valor da sua força de trabalho encontra-se determinada pelo tempo socialmente necessário para sua reprodução, assim como uma mera mercadoria.28 Porém, diferentemente das mercadorias, o trabalhador aliena-se do valor de uso, ou seja, não há trocas de equivalentes entre a venda da força de trabalho e o salário.
Alves38 chama atenção para a adoção de novos parâmetros na arena de negociação coletiva e a extinção da política salarial, no Brasil, a partir do Plano Real em 1994.
Pautada pela lógica neoliberal, aquela reorganização enfraqueceu "a classe trabalhadora nas dimensões objetivas e subjetivas, impondo ao trabalhador uma situação de instabilidade que prejudica seu processo de consciência com impactos decisivos na solidariedade de classe".30(225) Trata-se da perda da força política dos coletivos no processo decisório, ou seja, o abandono da postura de enfrentamento à superexploração do trabalho em favor do capital, na qual "a maioria dos sindicatos adere à lógica do capital tornando-se cooperativos às empresas e realizando um sindicalismo de resultados".30(230)
Tal postura tem como efeito a "queda significativa do rendimento real dos trabalhadores assalariados, num cenário de estagnação da economia brasileira e crescente índice de desemprego".38(193) Além dos rebatimentos na proteção social, dispositivo de enfrentamento à questão social.
Em suma, intensifica-se o aprofundamento das desigualdades sociais e a miserabilidade do exército de reserva. Neste contexto de risco social, os trabalhadores não conseguem ter acesso à renda digna para manter a sua própria reprodução, e tão pouco gozam de qualidade de vida e saúde. Ou seja, nesta sociabilidade erguida pelo capital, o trabalhador, perdeu a possibilidade de emancipação humana, uma vez que, "a geração de riqueza depende de que ela seja explorada e para tanto necessita do trabalhador alienado".30(222)
Já no segundo bloco, com 8 artigos 8,29,31-36 a discussão ficou em torno das relações trabalho-saúde. Estas publicações travaram interlocuções entre as alterações no processo produtivo e seus impactos na saúde (referindo-se aqui saúde do trabalhador/trabalhadorah).42 A temática da exploração do trabalho nestes estudos tem como ponto de partida as alterações nas relações de trabalho ocorridas entre os anos 1970/1980 até os dias atuais, logo dialoga com o que já foi bem exposto por Antunes:43
O fordismo e o taylorismo já não são únicos e mesclam-se com outros processos produtivos (neofordismo, neotaylorismo, pós-fordismo) [...]. O toyotismo penetra, mescla-se ou mesmo substitui o padrão fordista dominante, em várias partes do capitalismo globalizado. Vivem-se formas transitórias de produção, cujos desdobramentos são também agudos, no que diz respeito aos direitos do trabalho. Estes são desregulamentados, são flexibilizados, de modo a dotar o capital do instrumental necessário para adequar-se a sua nova fase. Direitos e conquistas históricas dos trabalhadores são substituídos e eliminados do mundo da produção.43(23,24)
A reorganização produtiva obrigou o trabalhador a "absorver um volume maior de trabalho, já que os quadros funcionais diminuíram".29(542) O excesso e a insegurança provocada pelo capital, expressa-se no sofrimento da classe trabalhadora que padece de doenças do sistema osteomuscular/tecido conjuntivo (Lesão por Esforço Repetitivo - Ler/Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho - Dort) e saúde mental.
Lourenço adverte:31
[...] no centro da exploração do trabalhador e das práticas modernas de administração/gestão e organização laborais, os índices de enfermidades e mortes no e pelo trabalho se assentam menos nos ambientes e muito mais nas relações, as quais compreendem um conjunto de regras e normas que deveriam proteger o trabalho e o trabalhador. Nos países onde o trabalho costuma ser mais regulamentado e protegido, os riscos laborais são menores. No oposto, nos países e locais onde há maior desproteção, os danos à saúde dos trabalhadores tendem a ser muito maiores.31(455)
Como nos alerta Lara36(83) os "principiais fatores geradores de acidentes e doenças ocupacionais estão relacionados aos salários e aos benefícios inadequados; maquinários e instalações impróprios, principalmente em setores da produção que utilizam dos recursos da terceirização". O adoecimento é fruto de um processo sócio-histórico e indica as condições sociais nas quais se trabalha/ se produz.4
Em outras palavras: "o desgaste da força de trabalho somado às novas formas de expropriação do trabalho excedente constituem as bases para a superexploração do trabalhador e, nessa, dinâmica, o seu descarte é materializada pela diminuição de sua capacidade produtiva".32(183) E a agressividade do capital na busca pela mais-valia tem o suicídio como "expressão radicalizada da deterioração das condições de trabalho sob a vigência da gestão flexível".8(415)
Para o entendimento de outras particularidades dos desgastes das condições de trabalho no Brasil e na América Latina como um todo Marini20 nos ilumina com um importante entendimento da lógica de subordinação desses países, caracterizada pelos elementos que conformam a superexploração dos trabalhadores. Nesta perspectiva, Marini assevera:
Pois bem, os três mecanismos identificados - a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho - configuram um modo de produção fundado exclusivamente na maior exploração do trabalhador, e não no desenvolvimento de sua capacidade produtiva. [...] Além disso, importa assinalar que, nos três mecanismos considerados, a característica essencial está dada pelo fato de que são negadas ao trabalhador as condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho: nos dois primeiros casos, porque lhe é obrigatório um dispêndio de força de trabalho superior ao que deveria proporcionar normalmente, provocando assim seu desgaste prematuro; no último, porque lhe é retirada inclusive a possibilidade de consumo do estritamente indispensável para conservar sua força de trabalho em estado normal.20(156-157)
A ofensiva neoliberal contribuiu para a desorganização dos coletivos da classe trabalhadora, levando à perda da força política. Diante desse enfraquecimento dos trabalhadores, promovido Estado, assiste-se de forma intensificada o abandono crescente de sua responsabilidade perante as políticas sociais. Percebe-se que, na produção acadêmica aqui discutida, tal fragilidade da situação dos trabalhadores é muito debatida, ressaltando, as transformações no mundo do trabalho e relacionando-as com as patologias contemporâneas, associadas aos trabalhadores assalariados. Por sua vez, esses artigos incluídos na revisão pouco avançam na discussão da situação dos trabalhadores no setor informal (exército industrial de reserva).
Tal lacuna também já foi sinalizada por Lacaz,44 que explicou, o fato, a partir do processo histórico da construção da política de Saúde do Trabalhador que tem o seu processo de construção articulada entre os serviços públicos de saúde e os sindicatos dos trabalhadores.
Neste contexto, a discussão a respeito da temática de saúde do trabalhador é abordada nesta revisão por meio de dois aspectos: o primeiro, trata-se de forma pioneira da análise, à medida que discute o aumento do stress em trabalhadores afastados27 e, o segundo, aborda a saúde, mais precisamente a atenção básica, como um lócus privilegiado para a construção de conhecimento e arregimentação para a luta da classe trabalhadora.35
A relação entre a exploração do trabalho e a saúde manifesta-se de forma determinada e expressa as condições biopsicossociais da classe trabalhadora, conforme apontado por vários artigos incluídos nesta revisão. Para Braz,33 o trabalho e a saúde, nesta sociedade capitalista, encontram-se "intimamente articulados e em mútua relação, na medida em que as condições de trabalho contribuem diretamente para manter e reproduzir a situação de explorado e o comprometimento da saúde, integridade física e mental".33(280)
Grazia e colaboradores34 expõem em suma o resultado da intensificação do trabalho e os seus impactos sobre a saúde dos/as trabalhadores (as):
[...] o processo de intensificação do trabalho, sempre presente em toda a história da produção capitalista, adquire hoje novas formas, associado à complexificação das tarefas, à polivalência crescente, e principalmente, à medida que a força de trabalho é impelida a assumir para si o que era tarefa apenas dos representantes do capital: buscar todas as formas de eliminar os tempos mortos, eliminar custos, melhorar a qualidade, etc. [...] O resultado dessa nova forma de servir ao capital transparece nas inúmeras estatísticas e estudos de médicos e ergonomistas que demonstram altíssimos aumentos de stress e de uma quantidade enorme de doenças profissionais, além dos prejuízos à vida pessoal, familiar e social.34(177).
Antunes e Praun8 advertem sobre os resultados produzidos pela exploração ilimitada dos/as trabalhadores/as: "as mudanças ocorridas no mundo do trabalho nas últimas décadas resultaram na constituição de um exército de trabalhadores mutilados, lesionados, adoecidos física e mentalmente, muitos deles incapacitados de forma definitiva para o trabalho".8(243)
Ferreira e Amaral32 sinalizam que "as formas degradantes e extenuantes para o trabalho são utilizadas pelo capital para visibilizar as suas necessidades de desenvolvimento num cenário de profundas inovações tecnológicas, organizacionais e subjetivas",32(183) na qual os trabalhadores identificados como desqualificados para atender as demandas atuais podem, diante das circunstâncias, ser substituídos e descartados.
Nesta lógica neoliberal surge o trabalhador polivalente que, impositivamente, executa várias funções/atividades em prol da "colaboração" com o capital. Numa dinâmica, em que "as pessoas tendem a buscar maior produção, sobrecarregando-se".29(542) A extração de mais-valia tem na sua raiz, o sofrimento, fruto da "pressão psicológica voltada para o aumento da produtividade".8(411) Todo esse mecanismo elevou "as estatísticas do aumento do stress, dos problemas de depressão e o esgotamento mental, além da intensificação dos casos de LER e outras doenças profissionais".34(173) Lara36 apontou este cenário de instabilidade político e econômico, como o gerador de insegurança e mal-estar físico e mental aos trabalhadores.
Articulado ao Estado neoliberal as ações/legislações que visam garantir saúde e proteção dos trabalhadores, seja dentro ou fora das empresas, são afrouxadas. O capital tenta negar o quantitativo de trabalhadores adoecidos via subnotificação dos acidentes e doenças laborais.31 Cria-se a cultura da fatalidade e/ou adota-se o argumento que culpabiliza o trabalhador ao invés do sistema produtivo. Toda as manobras utilizadas atendem apenas a um propósito, manter a superexploração do trabalhador. Em síntese, a acumulação flexível "produz a violência moral, ética, política, física e psíquica do trabalhador".32(179)
Por fim, cabe ressaltar que a TMD, que inspira o argumento de Ferreira e Amaral32, descortinou a perversidade da superexploração do trabalho, ao expor a impossibilidade da reposição do desgaste corpóreo sofrido pela força de trabalho viva em detrimento deste sistema que, ao expropriar o trabalho excedente, produz a atrofia da força humana de trabalho17.
Conclusões
Neste estudo tratou-se de apresentar uma revisão panorâmica das particularidades da produção científica da literatura marxista, na qual a temática da exploração do trabalho e suas relações com a saúde pública brasileira foi abordada em parte pelo viés da totalidade e em outra pela lógica da particularidade. Tal comportamento apresentado pelas publicações analisadas produzem inquietações quanto o porquê desta dinâmica que funcionou muito mais como complemento entre estudos do que do ponto de tensionamento.
Cabe mencionar que, a saúde do exército industrial de reserva ficou fora da produção acadêmica analisada nesta revisão, mais particularmente o trabalho informal. Isto evidencia um descompasso entre a materialidade vivida por uma parte significativa da população brasileira e o que vem sendo produzido pela literatura.
Outro ponto importante que merece destaque refere-se a que poucos estudos apresentaram alternativas que contribuam com a organização/mobilização do conjunto dos trabalhadores/trabalhadoras rumo ao tensionamento entre as classes (e quem sabe superação da ordem vigente).
Ao identificarmos as lacunas deixadas pelos estudos podemos sugerir que próximas produções marxistas possam incursionar pelo arregimento das categorias de trabalhadores/trabalhadoras na luta pela vida.
Por fim, pode-se dizer que os artigos incluídos nesta revisão, assinalam de forma geral, que as condições de saúde se encontram, intimamente, articuladas à superexploração da força de trabalhado. Sem dúvida e não poderia ser diferente no nosso país de capitalismo dependente, a produção de mais-valia absoluta é, muito mais importante, sendo a superexploração uma característica estrutural.
Contribuição autoral
CLSR realizou a análise, interpretação dos dados e revisou o texto completo. AM realizou a análise, interpretação dos dados e revisou o texto completo.
aPara Boschetti as políticas sociais devem ser consideradas como: "conquistas civilizatórias que não foram e não são capazes de emancipar a humanidade do modo de produção capitalista, mas instituíram sistemas de direitos e deveres que, combinados com a instituição de tributação mais progressiva e ampliação do fundo público, alteraram o padrão de desigualdade entre as classes sociais".1(25)
bPara uma abordagem sobre a discussão do trabalho contemporaneamente, merece conhecer a profícua contribuição de Moishe Postone,6 e a abordagem marxista feminista da leitura de Kathi Weeks.7
cIamamoto argumenta que: "O conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade".9(27)
d"A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência necessária dessas transformações foi a centralização política".3(44)
eEmbora saibamos que as revistas heterodoxas publicam artigos pautados por outras concepções teóricas, optamos por incluir aquelas que discutem a temática aqui abordada, pois entendemos como de relevância para esta revisão (nota dos autores).
fImportante mencionar o sentido da ideia do processo saúde doença: "[...] o processo saúde-doença é determinado pela forma como se produz riqueza, como é distribuída e as relações que surgem a partir dela [...]".40(23)
g"Os momentos simples do processo de trabalho são, em primeiro lugar, a atividade orientada a um fim, ou o trabalho propriamente dito; em segundo lugar, seu objeto e; em terceiro, seus meios. [...] O que diferencia as épocas econômicas não é 'o que' é produzido, mas 'como', 'com que meios de trabalho'. Estes não apenas fornecem uma medida do grau de desenvolvimento da força de trabalho, mas também indicam as condições sociais nas quais se trabalha".4(328-329)
hLacaz nos ensina: "Assim, para entender a emergência do campo Saúde do Trabalhador, como prática teórica (geração de conhecimentos) e prática político-ideológica (superação das relações de poder e conscientização dos trabalhadores), é necessário frisar que ele emerge concomitantemente à maturação do processo de industrialização e à forma que este assume na América Latina, nos anos de 1970, com o surgimento de uma classe operária industrial urbana".42(763)
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