Crit Revolucionária, 2023;3:e006
Artigo original
https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2023.v3.61
i Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, Escola Paulista de Medicina, Departamento de Medicina Preventiva, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. São Paulo, SP, Brasil.
Autor de correspondência: Mariana Bastos Deolindo mardeolindo@gmail.com
Recebido: 26 jul 2023
Revisado: 02 ago 2023
Aprovado: 04 ago 2023
https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.v3.61
Copyright: Artigo de acesso aberto, sob os termos da Licença Creative Commons (CC BY-NC), que permite copiar e redistribuir, remixar, transformar e criar a partir do trabalho, desde que sem fins comerciais. Obrigatória a atribuição do devido crédito.
A crise do capitalismo contemporâneo tem sua natureza em duas instâncias: a lei marxiana da queda tendencial da taxa de lucro e o predomínio do capital portador de juros. Compreender esse fato, torna-se fundamental para avançarmos na análise do impacto significativo desta crise sobre a saúde pública universal no contexto brasileiro, e, para além, de como esta crise também recai sobre os sujeitos. Objetiva-se analisar e compreender a desuniversalização da saúde coletiva como resultado de um projeto sócio-político-econômico capitalista. Para tanto, foi realizada uma breve revisão bibliográfica dos artigos que abordam a interseção das áreas de Saúde Coletiva, Política e Economia. Identificou-se que essa busca pela ampliação do lucro se manifesta através da desuniversalização da saúde no âmbito do financiamento do Sistema Único de Saúde – SUS – e por meio da tese de Sílvio Almeida também foi possível evidenciar a incidência e a negligência do Estado capitalista sobre sujeitos considerados não rentáveis para o capital.
Descritores: Crise do capital; Saúde pública; Economia; Desuniversalização; Gerencialismo.
UN PROYECTO CAPITALISTA: LA DESUNIVERSALIZACIóN DE LA SALUD COLECTIVA Y LA INCIDENCIA DEL ESTADO SOBRE LOS SUJEITOSRESUMEN: La crisis del capitalismo contemporáneo tiene su origen en dos instancias: la ley marxista de la tendencia a la caída de la tasa de beneficio y la predominancia del capital productor de intereses. Comprender este hecho se vuelve fundamental para avanzar en el análisis del impacto significativo de esta crisis en la salud pública universal en el contexto brasileño. Además, cómo esta crisis también afecta a los individuos. Analizar y comprender la desuniversalización de la salud colectiva como resultado de un proyecto socio-político-económico capitalista. Se realizó una breve revisión bibliográfica de artículos que abordan la intersección de las áreas de Salud Pública, Política y Economía, lo que identificó que esta búsqueda de expansión de beneficios se manifiesta a través de la desuniversalización de la salud: en el financiamiento del Sistema Único de Salud – SUS – y a través de la tesis de Sílvio Almeida, también fue posible resaltar la incidencia y negligencia del Estado capitalista hacia los individuos considerados no rentables para el capital. Descriptores: Crisis del capital; Salud pública; Economía; Desuniversalización; Gerencialismo. |
|
A CAPITALIST PROJECT: THE DEUNIVERSALIZATION OF COLLECTIVE HEALTH AND THE INCIDENCE OF THE STATE ON INDIVIDUALSABSTRACT: The crisis of contemporary capitalism has its nature in two instances: the Marxist law of the tendential fall in the rate of profit and the predominance of interest-bearing capital. Understanding this fact becomes essential for advancing in the analysis of the significant impact of this crisis on universal public health in the Brazilian context, and, furthermore, of how this crisis also affects individuals. Also, this research has the purpose of analyzing and understanding the deuniversalization of collective health as a result of a capitalist socio-political-economic project. To do so, we did a brief literature review of articles that address the intersection of Public Health, Politics, and Economics identified that this pursuit of profit expansion manifests itself through the deuniversalization of health: in the financing of the Unified Health System (Sistema Único de Saúde – SUS) - and through Sílvio Almeida's thesis, it was also possible to highlight the incidence and neglect of the capitalist state towards individuals considered non-profitable for capital. Descriptors: Capital crisis; Public health; Economy; Deuniversalization; Managerialism. |
Gabriel Pensadora, na canção“Sem saúde”, ressalta:
a Sem saúde, letra e música de Gabriel O Pensador de 1997.
Vô morrer aqui na porta do hospital; Era mais fácil eu ter ido; Direto pro Instituto Médico Legal; Porque isso aqui tá deprimente, doutor; Essa fila tá um caso sério; Já tem doente desistindo de ser atendido; E pedindo carona pro cemitério; E aí, doutor? Vê se dá um jeito! Se é pra nós morrê nós qué morrê direito.
A citação acima serve como ponto de partida para este ensaio, uma vez que evidencia o tom crítico e político que percorrerá todo o trabalho. Os versos do artista nos instigam a refletir sobre a precária situação do sistema de saúde, especialmente retratando a dificuldade de acesso aos serviços médicos, o colapso das instituições hospitalares e a angústia daqueles que são confrontados com a falta de atendimento adequado.
Essa abordagem artística nos convida a analisar os desafios enfrentados pela saúde pública e a necessidade de uma reflexão aprofundada sobre as estruturas e os projetos políticos-econômicos que sucumbem a saúde coletiva a um estado precarizado, uma vez que é imperativo reconhecer a extensão da crise na saúde pública como uma faceta inseparável da crise do sistema capitalista. Apresentando então a importância dessa pesquisa tanto na compreensão da fragilidade que a saúde pública brasileira reside quanto no processo de resistência dos sujeitos que têm seus corpos sobre a incidência do Estado.
Desse modo, o presente estudo tem como objetivo analisar e compreender a desuniversalização da saúde coletiva como resultado de um projeto político-econômico capitalista, conduzido por um Estado industrial capitalista, o qual busca ampliar a taxa de lucro em detrimento de políticas públicas, afetando especialmente os sujeitos mais vulneráveis. Este último tópico trata-se de um ponto fundamental neste debate, uma vez que buscamos investigar se a desuniversalização da saúde coletiva, a qual refere-se à diminuição do acesso equitativo e abrangente aos serviços de saúde por parte da população, estaria buscando o lucro para além do gerencialismo capitalista, mas também na incidência do Estado sobre os corpos que são considerados não rentáveis.
Vale ressaltar que o Estado, como ator central nesse processo, desempenha um papel significativo ao adotar medidas e políticas que favorecem a expansão do capitalismo em detrimento da garantia de direitos sociais, evidenciando a subordinação dos interesses coletivos aos interesses do mercado.
Nesse contexto, cabe localizarmos brevemente o modelo de administração pública que rege o Brasil desde a segunda metade da década de 1990 - o gerencialismo - uma vez que é neste modelo que a incidência do Estado capitalista se torna mais evidente sobre as políticas públicas. Registra-se que o gerencialismo se estabelece a partir do pressuposto de que
A única forma de o Estado ser eficaz – atendendo aos anseios da população – seria por meio da diminuição de seu “tamanho”, tornando-o mais eficiente. O meio para isso ser posto em prática, seria, dentre outras iniciativas, transferir para a iniciativa privada (por meio de concessões ou vendas), parte de sua estrutura e consequentemente de seus serviços e/ou adotando práticas gerenciais da iniciativa privada em seus processos.1(3)
Esse modelo de gestão tende a ter repercussões na esfera da saúde pública, devido a dois fatores principais, quais sejam: (i) o investimento na saúde, que se constata sendo inadequado para alcançar a universalidade e assegurar um atendimento integral; (ii) o subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde – SUS, que coloca em risco sua natureza universal, enquanto favorece o aumento dos lucros no setor privado.2
Sob outra ótica, a fim de alcançar os objetivos deste ensaio, adotaremos o método de revisão bibliográfica, uma abordagem que proporciona uma breve investigação de matérias disponíveis sobre o tema investigado. Neste contexto de pesquisa, nossa ênfase estará direcionada primordialmente aos artigos que abordam a interseção das áreas de Saúde Coletiva, Política e Economia. Como produto desta análise inicial, concentramos nossa atenção nas contribuições de Áquilas Mendes e Leonardo Carnut, cujas produções se mostram relevantes e pertinentes ao escopo de nosso estudo. Ademais, visando ampliar e fortalecer nossa revisão, estabelecemos conexões com outras obras relevantes, notadamente a de Silvio Almeida.
O título selecionado para o presente capítulo, a crise do capital e a saúde pública, instiga de forma inerente nosso ponto de partida: o sistema capitalista em seu estado de crise. Essa abordagem inicial é de relevância primordial, pois alicerçará a exposição dos elementos fáticos que debatem e evidenciam essa crise do capital. A partir desse pressuposto, nosso intuito é apresentar, em uma primeira etapa, as tendências que embasam a compreensão da atual crise do capital, permitindo assim a subsequente articulação acerca do avanço do Estado capitalista sobre os indivíduos no contexto da saúde coletiva. Desse modo, buscaremos explorar as inter-relações complexas entre a crise do capitalismo e a esfera da saúde coletiva, focalizando especialmente na influência do Estado e seus desdobramentos nos sujeitos envolvidos nesse contexto multifacetado.
De acordo com as análises de Mendes,2 professor da Faculdade de Saúde Coletiva da Universidade de São Paulo, a crise do capitalismo contemporâneo é caracterizada por duas tendências fundamentais: a lei marxiana da queda tendencial da taxa de lucro e o predomínio do capital portador de juros.
Considerando que o capitalismo é intrinsecamente marcado por contradições, destacamos a tendência persistente da queda da taxa de lucro, a qual se materializa na contradição entre o capital constante (investido em meios de produção) e o capital variável (investido em força de trabalho).2
Desse modo, a equação que envolve o aumento do capital investido em meios de produção - capital constante - e a redução do capital investido em força de trabalho - capital variável - acarreta em crises, uma vez que é o capital variável que é responsável pela geração e ampliação do lucro. Essa equação é uma característica notória do sistema capitalista, em que se tem optado por explorar a mão de obra visando ampliar o capital variável, enquanto os investimentos são postos sobre o capital constante. Ou seja,
Como os lucros são provenientes do valor adicionado pela força de trabalho, mantendo assim a taxa de exploração constante, a taxa de lucro tende a sofrer queda. No momento em que essa queda ocorre, constata-se uma crise de superacumulação que é explicada, não pela insuficiência da demanda efetiva, mas pela ausência de lucros.2(70)
Com base nesse contexto, com o objetivo de ampliar o lucro, o sistema capitalista busca novas soluções para a crise. Essas soluções incluem o aumento da taxa de exploração da mão de obra e, como dito anteriormente, este fato se dá na tentativa de recompensar o não investimento no capital variável; a reorganização de novas linhas de produção e a desvalorização e destruição de parte do estoque acumulado de capital, como identificado em períodos de guerra.
Ao compreender a queda tendencial da taxa de lucro, podemos avançar para a análise histórica da crise do capitalismo. Nota-se, primeiramente, um significativo crescimento do capitalismo no período pós-Segunda Guerra Mundial, visto que o cenário marcado pelo aumento da demanda e inflação dos preços, o que foi impulsionado pela escassez de matéria-prima e a redução da mão de obra disponível após o conflito, resultou em uma breve ampliação da taxa de lucro.2
No entanto, é importante ressaltar que esse cenário de crescimento econômico também sinalizava as sementes da crise do capitalismo. À medida em que a economia crescia, as contradições inerentes ao sistema capitalista, incluindo a tendência de queda da taxa de lucro, começavam a se manifestar gradualmente. Isso porque, durante o processo de acumulação de capital no pós-guerra, foi observado que concomitantemente também ocorria o declínio contínuo na taxa de lucro, o que resultou na perda gradual do crescimento econômico.
O trecho da música de Ederaldo Gentil – Identidade –, nos evidencia a situações precárias na vivência do trabalhador no modelo capitalista:
[...] 05342635 é o meu número, o meu nome e a minha identidade. Mínimo salário é o meu ordenado. 12 horas de trabalho. Que felicidade, que felicidade. Acordo sem dormir, faço pelo sinal. Ouço o radinho de pilha pra saber do horário. Preparo quase nada e levo na marmita. Vou dependurado e os sinais fechando. Chego atrasado, é cortado o dia, são tantos os descontos que nem mesmo sei, me falam de vantagens que eu jamais ganheib.
b Identidade, letra e música de Ederaldo Gentil de 1984.
Embora o neoliberalismo seja apropriado pelas elites capitalistas, é fundamental destacar que este modelo não conseguiu recuperar a ascensão do capital e muito menos a taxa de lucro desejada.2 Este fato se torna fundamental para compreendermos, futuramente, o porquê do avanço incisivo do capitalismo sobre as políticas públicas e a manutenção do Estado industrial capitalista.
Neste momento, retomamos a discussão sobre a natureza da crise do capitalismo, abordando especificamente o domínio do capital portador de juros.
Esse conceito se refere ao dinheiro que se valoriza em si mesmo, ou seja, o crescimento e soberania do capital fictício – a dívida pública, o capital acionário e o capital bancário – e da esfera financeira.
Esse fenômeno é denominado de financeirização, que é quando o padrão de funcionamento das economias caracteriza-se pela predominância da acumulação de riqueza por meio de canais financeiros – capital fictício –, em vez de se basear nas atividades produtivas diretas, como indústria, comércio e agricultura – capital produtivo. Isso significa que a geração de lucros e riquezas está sendo permeada, cada vez mais, por operações financeiras complexas e especulativas, em detrimento da produção real de bens e serviços.
Marx3 reconhecia esse domínio na figura fetichista, uma vez que o dinheiro que se valoriza em si, evidencia
[...] a forma vazia do capital, a perversão, no mais alto grau, das relações de produção, reduzidas a coisa: a figura que rende juros, a figura simples do capital, na qual ele se constitui condição prévia de seu próprio processo de reprodução; capacidade do dinheiro, ou da mercadoria, de aumentar o próprio valor, sem depender da produção – a mistificação do capital na forma mais contundente.3 (374)
Portanto, ao analisarmos a conjuntura em que a crise do capital surge, destacando principalmente a interligação do domínio do capital portador de juros e a tendência de queda da taxa de lucro, é possível concluir que o modelo capitalista enfrenta uma inevitável trajetória de declínio. Portanto, vale ressaltar que antes mesmo de se configurar uma crise do Estado, a crise é intrinsecamente uma crise do próprio sistema capitalista, conforme discutido anteriormente. Esse fato coloca em perspectiva a natureza das crises econômicas e sociais, apontando para a origem e as raízes profundas dos desequilíbrios e instabilidades presentes no modelo capitalista.
No entanto, é importante enfatizar que, na busca pelo lucro e/ou ampliação do capital, o Estado capitalista avançou sobre as políticas públicas, Mendes2 identifica que os efeitos predominantes da crise do capitalismo sobre a saúde pública brasileira manifestaram-se principalmente na "financeirização dos recursos públicos e na apropriação do fundo público pelo capital em busca de sua valorização"2(75)
Nesse momento, cabe contextualizar o gerencialismo como uma iniciativa de caráter neoliberal que, “em consonância com as prioridades dos arautos do capital financeiro, a fim de garantir a valorização de seu capital frente à crise”,2(76) utiliza-se de práticas que visam o lucro privado, como o subfinanciamento dos recursos públicos que se apresenta nesse modelo como única justificativa possível para restabelecer a qualidade e eficácia ao acesso à saúde.
Sob essa ótica, as políticas públicas não gerencialistas tornam-se frequentemente alvo de críticas e responsabilização pelo desequilíbrio econômico, ao passo que outros fatores estruturais e sistêmicos, ou seja, os impactos da crise do capitalismo, são ignorados1 .
Sendo assim, torna-se evidente a influência do Estado capitalista sobre a saúde pública, conforme identificamos por meio de medidas que favorecem o setor privado e a busca por lucros. Simultaneamente, também nos revela a vulnerabilidade financeira do SUS, colocando em risco, principalmente, o princípio de universalização e sua própria existência.
Por meio de insuficiência de recursos e do baixo volume de gastos com recursos públicos; de indefinição de fontes próprias para a saúde; de ausência de maior comprometimento do Estado brasileiro com alocação de recursos e com melhor distribuição de recursos no interior do Orçamento da Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social); das elevadas transferências de recursos ao setor privado via recursos direcionados às modalidades privatizantes de gestão (OSs, Oscips, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) e Fundações Estatais Públicas de Direito Público/Privado com contratos celetistas). Todas incentivadas pela implementação da Lei de Responsabilidade Fiscal (em vigor há 19 anos) que limita o aumento do gasto com pessoal, favorecendo o incremento das despesas com serviços de terceiro.4(24)
Essa situação se torna ainda mais evidente ao notarmos o crescimento do incentivo estatal à iniciativa privada no Brasil. Em 2015, os gastos privados com saúde corresponderam a 5,2% do Produto Interno Bruto – PIB, enquanto os gastos públicos representaram apenas 3,9% do PIB. Esses dados refletem os significativos riscos aos princípios básicos do SUS.4
Pondo sobre fato que o SUS, ao longo de sua existência, tem demonstrado uma trajetória persistente de escassez de recursos públicos, evidenciando um subfinanciamento estrutural desse sistema e, por conseguinte, sua fragilidade.
Desse modo, é de extrema importância resistir ao modelo de gerencialismo, uma vez que ele é responsável por criar limitações para os gastos públicos, inclusive em áreas sociais essenciais, como os investimentos em saúde. De acordo com Mendes,2 uma estratégia fundamental para confrontar esse modelo é defender a rejeição da política econômica conhecida como o tripé econômico - que envolve a implementação de taxas de juros elevadas, metas de inflação, superávit primário e supervalorização da moeda.
Após a análise preliminar da natureza da crise do capitalismo e suas implicações em um Estado capitalista que avança sobre as políticas públicas, abordaremos agora a relação desse Estado com o sujeito, reconhecendo essa interação como parte de um projeto político-econômico mais amplo. Em particular, investigaremos como essa relação se manifesta na desuniversalização da saúde pública, que parece ter o objetivo não apenas de buscar lucros através do gerencialismo da saúde, mas também de eliminar corpos considerados não rentáveis.
No âmbito da saúde coletiva, é possível compreender o Estado brasileiro como um agente estruturalmente racista que busca, em duas esferas, a maximização de lucros. Primeiramente, essa busca se manifesta pela adoção de políticas gerencialistas na esfera da saúde pública, e em segundo lugar por meio da incidência sobre corpos considerados improdutivos. Historicamente, grupos raciais minoritários, em particular a população negra, têm sido alvo de violência, marginalização e negligência por parte do Estado.
Esse processo, muitas vezes, se desenrola de maneira sutil e sistemática, através da falta de acesso a serviços de saúde adequados, à educação de qualidade, ao emprego, entre outros fatores que influenciam diretamente a saúde e o bem-estar dessas populações.
Na esfera da análise socioeconômica, podemos considerar o impacto significativo do predomínio do capital portador de juros na população civil. Nesse contexto, torna-se evidente que o movimento da economia e da política não está mais centrado na integração ao mercado, mas sim na própria financeirização do sistema. Como resultado desse cenário, os indivíduos são excluídos do papel de consumidores e trabalhadores.
Nesse sentido, Silvio Almeida5 – filósofo, advogado e atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil – em seu principal estudo sobre racismo estrutural, apresenta esse cenário ao ressaltar que:
Como não serão integrados ao mercado, seja como consumidores ou como trabalhadores, jovens negros, pobres, moradores de periferia e minorias sexuais serão vitimados por fome, epidemias ou pela eliminação física promovida direta ou indiretamente pelo Estado – um exemplo disso é o corte nos direitos sociais.5(127)
Essa exclusão ocorre porque, no contexto do sistema capitalista no auge de sua fetichização, o sujeito acaba por perder seu valor, uma vez que o capital fictício, baseado em ganhos financeiros autossuficientes, gera rendimentos por si só. Esse processo de financeirização leva a uma reconfiguração da economia e das prioridades políticas, colocando o lucro financeiro em destaque e afastando as necessidades e demandas da população civil.
Ademais, para além da concepção do capital portador de juros, torna-se pertinente reconhecer outro tópico da teoria marxiana que se apresenta extremamente relevante e contemporânea nesta análise.
Com base no fetichismo do capital, à medida que o sujeito perde seu valor, torna-se relevante analisar a concepção de corpo improdutivo. Para uma discussão mais aprofundada sobre o que constitui um corpo improdutivo ou não rentável no contexto do capitalismo, é pertinente destacar a concepção de trabalho produtivo segundo as ideias de Marx.
Santos Neto6 afirma que a categoria econômica de trabalho produtivo aparece em diversas passagens da obra marxiana, estando presentes
Tanto nos manuscritos de 1857-1858, conhecidos como os Grundrisse, como nos manuscritos de 1861-1863, que acabaram por se configurar nas Teorias da mais-valia: história crítica do pensamento econômico.6(6)
Dessa forma, o trabalho produtivo no capitalismo seria aquele gera mais-valia, sem ter relação com a natureza do que é produzido, gerando lucro para o sistema capitalista e produzindo mais do que o necessário para a necessidade humana.
Portanto, os trabalhadores produtivos são aqueles que produzem a riqueza imediata, material, consistente em mercadorias e mais-valia.7 Marx, em “O Capital”3, retoma o debate de forma mais consistente:
A produção capitalista não é apenas produção de mercadoria, é essencialmente produção de mais-valia. O trabalhador produz não para si, mas para o capital. Ele tem de produzir mais-valia. Apenas é produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista ou serve à autovalorização do capital. Se for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produção material, então um mestre-escola é um trabalhador produtivo se ele não apenas trabalha as cabeças das crianças, mas extenua a si mesmo para enriquecer o empresário. O fato de que este último tenha investido seu capital numa fábrica de ensinar, em vez de uma fábrica de salsichas, não altera nada na relação. O conceito de trabalho produtivo, portanto, não encerra de modo algum apenas uma relação entre a atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas também uma relação de produção especificamente social, formada historicamente, a qual marca o trabalhador como meio direto de valorização do capital.3(106)
Com base nessas concepções, à medida que o capital fictício ganha mais relevância e permeia a sociedade, também aumenta o número de corpos e indivíduos que se tornam não rentáveis para o Estado, uma vez que deixam de ser rentáveis para o capital.
Essa tendência ocorre porque o capital fictício prioriza investimentos que geram lucros especulativos. Consequentemente, isso passa a atingir a camada mais marginalizada da sociedade, uma vez que não são considerados produtivos ou lucrativos de acordo com a lógica do capital fictício.
Neste momento, direcionaremos nossa análise para outras possibilidades lucrativas para o capitalismo mediante a desuniversalização da saúde pública, sendo elas, a exclusão da população marginalizada por meio da negação e negligência no acesso aos serviços de saúde. Essa negligência pode ser evidenciada, por exemplo, por meio de dois estudos realizados durante o último ano de pandemia. O primeiro, conduzido pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da PUC-Rio,8 e o segundo, realizado pelo Instituto Pólis9, revelaram que a população negra que vive em regiões periféricas foi a mais afetada e registrou maior número de mortes na pandemia de COVID-19.
Esse cenário reflete uma realidade de desigualdades sociais e raciais, onde o Estado, ao não oferecer o devido cuidado e proteção a essas populações, tem lucrado com a maior incidência de óbitos entre os grupos marginalizados. Almeida5 nos esclarece a possibilidade de lucro na morte da população em situação de vulnerabilidade social ao ressaltar que
Segundo a ética utilitarista adotada pelos economistas neoclássicos, os indivíduos agem visando à otimização racional dos recursos disponíveis, um racista discrimina uma pessoa negra porque simplesmente a vê como uma desutilidade, ou seja, algo que não lhe dará retorno em produtividade – ou ainda pior, que resulta em despesa.5(98)
Nesse sentido, Mbembe10 dialoga com Almeida5 à medida que desenvolve o conceito de Necropolítica como um projeto sócio-político-econômico de morte institucionalizada que se estabelece na dicotomia entre as vidas que merecem ser preservadas e aquelas que devem perecer, sendo essa dicotomia atrelada a uma gestão de vidas que são consideradas descartáveis ou dispensáveis pelo Estado.
Essa lógica não se restringe apenas à negligência em relação à saúde das populações vulneráveis, mas também se estende a projetos de genocídio e encarceramento da população negra, por meio da violência policial - sendo a polícia a máxima representação do Estado capitalista. Nesse contexto, Almeida5 argumenta que esse projeto, para além, possui um objetivo capitalista, buscando lucrar através do extermínio daqueles que não são considerados valiosos para o capital.
O presente ensaio abordou a crise do capitalismo contemporâneo e a sua relação com a saúde coletiva, evidenciando as tendências que fundamentam essa crise, como a queda tendencial da taxa de lucro e o predomínio do capital portador de juros. Compreender a natureza da crise e como isso implica no gerencialismo da saúde pública foi fundamental para identificarmos o avanço desenfreado do capitalismo em busca de novas possibilidades de lucro.
Nesse sentido, na medida em que o Estado capitalista prioriza o setor privado em detrimento do setor público, há um ganho econômico decorrente do subfinanciamento e, adicionalmente, do descaso com sujeitos compreendidos como não rentáveis ao capital.
O referido descaso, podendo até ser nomeado de genocidio, não se dá de forma direta, mas sim de maneira indireta, ao reduzir os gastos em saúde, educação e segurança, ao submeter estes sujeitos a condições precárias de moradia, a escassez de recursos e ao acesso limitado a serviços básicos, implica em maior vulnerabilidade e exclusão social. Sendo assim, essas práticas sistêmicas podem ser entendidas como uma forma de genocídio, na medida em que contribuem para a deterioração das condições de vida e a redução da expectativa de vida dessas populações marginalizadas.
Portanto, é importante reconhecer que essa conjuntura não é fruto do acaso, mas sim uma manifestação da lógica do sistema capitalista, que coloca o lucro como principal objetivo, mesmo que isso signifique a negligência e o sofrimento de certos grupos sociais. Nesse contexto, é fundamental enfatizar a necessidade de resistir ao gerencialismo e ao neoliberalismo como modo de confronto a esse projeto político-econômico, a fim de garantir, para além do acesso universal e igualitário à saúde, a luta pela vida.
Schlickmann R. Administração pública no Brasil: o gerencialismo. Disponível em: https://www.politize.com.br/gerencialismo-administracao-publica/
Mendes Á. A saúde pública brasileira no contexto da crise do Estado ou do capitalismo?. Saude Soc. 2015;24(suppl 1):66-81. https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S01006.
Marx K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1985. Lv.1, Vol. 2.
Mendes Á, Carnut L. Capital, estado, crise e a saúde pública brasileira: golpe e desfinanciamento. SER Soc. 2020;22(46):9-32. https://doi.org/10.26512/ser_social.v22i46.25260.
Almeida S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen; 2019.
Santos Neto AB. Trabalho produtivo e trabalho improdutivo nas “teorias da mais-valia” de Karl Marx. Em Debate. 2012;1(8);5-22. https://doi.org/10.5007/1980-3532.2012n8p5.
Marx K. Teorias da mais-valia: história crítica do pensamento econômico. São Paulo: Civilização Brasileira; 1980. Lv. 4, Vol. 1.
Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde. Diferenças sociais: pretos e pardos morrem mais de COVID-19 do que brancos, segundo NT11 do NOIS. Rio de Janeiro: CTC/PUC-Rio; 27 maio 2020. Disponível em: https://www.ctc.puc-rio.br/diferencas-sociais-confirmam-que-pretos-e-pardos-morrem-mais-de-covid-19-do-que-brancos-segundo-nt11-do-nois/
Instituto Polis. Vacina contra covid-19 na cidade de São Paulo: uma proposta de abordagem territorial. São Paulo: Polis; 18 fev. 2021. Disponível em: https://polis.org.br/noticias/vacina-contra-covid-19-na-cidade-de-sao-paulo-uma-proposta-de-abordagem-territorial/
Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Santini R, tradutor. São Paulo: N-1 Edições; 2018.