Crit Revolucionária 2022;02:e003
ENSAIOS
doi: 10.14295/2764-4979-RC_CR.v2-e003
iPontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Economia, Administração, Contábeis e Atuariais; Departamento de Economia - PUC/SP. São Paulo, SP, Brasil
iiPontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Economia, Administração, Contábeis e Atuariais; Departamento de Economia - PUC/SP. São Paulo, SP, Brasil
iiiUniversidade Federal de São Paulo - Unifesp, Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde - CEDESS, Programa de Pós-graduação de Ensino em Ciências da Saúde. São Paulo, SP, Brasil
Resumo
O objetivo deste trabalho é o de analisar os problemas e desafios da indústria nas economias latino-americanas no capitalismo contemporâneo, a partir de uma perspectiva marxista. Para tanto, partindo das formulações da Teoria Marxista da Dependência, mais precisamente de Ruy Mauro Marini e Orlando Caputo, este artigo se propôs a apresentar as aproximações e divergências com a literatura marxista levantada sobre o assunto. Assim, buscando apresentar as bases de constituição do capital produtivo nas economias dependentes; como operam os mecanismos de transferência de valor como o intercâmbio desigual; e, principalmente, as implicações para o sentido da indústria doméstica nestas economias.
Palavras-chave: Teoria Marxista da Dependência; América Latina; transferência de valor; intercâmbio desigual; capital produtivo; indústria.
Abstract
This work aims to analyze the problems and challenges of industries in Latin American economies in contemporary capitalism, from a marxist perspective. Therefore, the objective is to discuss the similarities and divergences between the Dependency Theory of Marxism (from Marini and Caputo point of views) and marxist literature found in academic jornals. To summarize, the purpose of this study is to present in which ground productive capital were formed in dependent economies; how the mechanism of unequal exchange operates; and, mainly, the implications for domestic industry development in these economies.
Descriptors: Marxist Theory of Dependency; Latin America; transfer of value; unequal exchange; productive capital; industry.
Resumen
El objetivo de este trabajo es analizar los problemas y desafíos de la industria en las economías latinoamericanas en el capitalismo contemporáneo, desde una perspectiva marxista. Por lo tanto, a partir de las formulaciones de la Teoría marxista de la Dependencia, más precisamente de Ruy Mauro Marini y Orlando Caputo, este artículo se propone presentar las aproximaciones y divergencias con la literatura marxista planteadas sobre el tema. Así, buscando presentar las bases para la constitución de capital productivo en economías dependientes; cómo operan los mecanismos de transferencia de valor como intercambio desigual; y, principalmente, las implicaciones para el rumbo de la industria nacional en estas economías.
Palabras clave: Teoría Marxista de la Dependencia; América Latina; transferencia de valor; intercambio desigual; capital productivo; industria.
Introdução
Adiscussão acerca da posição das economias latino-americanas na divisão internacional do trabalho e o sentido da indústria doméstica sempre permeou a formação do pensamento na região. Atualmente, tem sido recorrente as preocupações sobre um possível processo de enfraquecimento da indústria, intensificado na década de 1990, nestas economias. Muito se atribui esse enfraquecimento à demarcada consolidação da agenda econômica neoliberal, assim, a arrancada em direção à desnacionalização de setores estratégicos aliada a entrada (e, mais fortemente, a saída) de capital estrangeiro são evidências assertivas sobre o aprofundamento da dependência às custas deste processo.
É neste contexto que este artigo tem como objetivo apresentar as bases históricas e teóricas da Teoria Marxista da Dependência - TMD para compreensão do desenvolvimento desigual e do subdesenvolvimento na América Latina, evidenciando a abordagem de um de seus fundadores, Ruy Mauro Marini, sobre as categorias de transferência de valor como intercâmbio desigual e dependência, bem como ressaltando a contribuição de Orlando Caputo sobre o aprofundamento da dependência na indústria latino-americana no capitalismo contemporâneo.
Para tanto, o artigo está organizado em três seções. A primeira visa estabelecer as origens e fundamentos da TMD, bem como suas principais divergências ao pensamento cepalino. A segunda parte trata da discussão clássica apresentada por Ruy Mauro Marini sobre as categorias transferência de valor como intercâmbio desigual e dependência. A terceira parte discute as modalidades da categoria transferência de valor como intercâmbio desigual - deterioração dos termos de intercâmbio, serviços da dívida, remessas de lucros e apropriação da renda - e sua articulação nas economias latino-americanas por meio da contribuição de um teórico contemporâneo da TMD, Orlando Caputo, ressaltando o contexto de aprofundamento da dependência, refletida fundamentalmente no aumento dos lucros, das remessas, da desnacionalização e pela estagnação do investimento na região.
Origens e fundamentos da Teoria Marxista da Dependência
Os movimentos que influenciaram as formulações da TMD constituem um momento histórico singular: as décadas de 1950 e 1960 se caracterizaram pelos processos de luta anti-imperialista na América Latina, sobretudo diante das possibilidades históricas que poderiam ser forjadas dado o êxito da revolução cubana. Adicionalmente, já se revelava o esgotamento do processo de industrialização por substituição de importação, principalmente no que se refere a entrada massiva de capital internacional nas economias da região. Martins1 explicita tais elementos fundantes do paradigma marxista da teoria da dependência:
influenciada pela revolução cubana, pelos limites do desenvolvimentismo na região e pela ofensiva política, social e cultural terceiro-mundista, propõe-se a interpretar a formação social latino-americana utilizando o marxismo de forma criativa, libertando-o da visão dogmática dos partidos comunistas.1(229)
A apropriação pelo marxismo da categoria dependência não foi um processo isento de contradições. Osorio2 ressalta esse caminho por meio de dois grandes processos que marcam o curso do novo marxismo latino-americano nos anos sessenta. O primeiro deles, como já mencionado, refere-se ao triunfo da Revolução Cubana, que teve como efeito aprofundar a crise política e teórica do marxismo ortodoxo em torno da interpretação do capitalismo na região e também recolocar o importante tema da atualidade da revolução. O segundo fator que reforça o auge do marxismo acerca da categoria da dependência é a crise que já se manifestava no pensamento da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - CEPAL em suas propostas políticas - como a vigência de uma burguesia nacionalista e a de um capitalismo autônomo - frente à crescente integração do processo produtivo das economias da América Latina com o capital estrangeiroa.
Esses dois processos exigiram uma leitura da tese de Marx sobre a contradição entre forças produtivas e relações de produção, que não pode ser compreendida restrita aos contextos nacionais. Sua interpretação se associa à compreensão do desenvolvimento desigual que apresenta a acumulação na escala mundial e da conformação de "elos fracos" na cadeia imperialista, como se referia Lenin.3 Nesta perspectiva, a visão da CEPAL de um sistema centro-periferia foi sendo substituída pela noção de um sistema de economias imperialistas e dependentes.
No marxismo, a reflexão sobre a dependência se apoiou, inicialmente, nos trabalhos que tinham como denominador comum negar o caráter feudal da formação social latino-americana. O trabalho pioneiro neste sentido foi o de Sergio Bagú intitulado, "Economía de la sociedade colonial: ensayo de história comparada de América Latina”.4 Um antecedente também importante foi o trabalho de André G. Frank,5,6 em que criticava a teoria do desenvolvimento e as teses de uma América Latina feudal, ressaltando a ideia central sobre o desenvolvimento do subdesenvolvimento, propiciando uma nova tendência em torno da dependência e marcando um "divisor de águas" fundamental para o tratamento do assunto.5,6
Constituída a partir da segunda metade da década de 1960, as principais referências da TMD foram Ruy Mauro Marini, Vania Bambirra e Theotônio dos Santos. Seus três fundadores foram dirigentes da Organização Revolucionária Marxista (ORM) Política Operária - Polop, e questionavam posições etapistas e dogmáticas tomadas pelo Partido Comunista Brasileiro - PCB. Ademais, sustentavam que a revolução brasileira deveria ter um caráter socialista, opondo-se à tese do papel da burguesia interna como um agente revolucionário.7
O arcabouço teórico da TMD, por sua vez, se delimita essencialmente pela lei do valor de Marx e pela teoria do imperialismo, conforme apresentado por Carcanholo:8
Teoria marxista da dependência é o termo pelo qual ficou conhecida a versão que interpreta, com base na teoria de Marx sobre o modo de produção capitalista, na teoria clássica do imperialismo e em algumas outras obras pioneiras sobre a relação centro-periferia na economia mundial, a condição dependente das sociedades periféricas como um desdobramento próprio da lógica de funcionamento da economia capitalista mundial.(192)
Nesse sentido, a TMD, à medida em que se vale da unidade dialética entre desenvolvimento e subdesenvolvimento, enquanto dois processos intrinsecamente vinculados dentro do modo de produção capitalista, conduz ao entendimento de que a dinâmica no seio da formação histórica da América Latina deve, portanto, corresponder às necessidades e interesses do capitalismo internacional. Este que, por sua vez, também delimitaria o progresso na região. Logo, "o que se tem é um capitalismo sui generis, que só adquire sentido se o contemplamos na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto em nível nacional, quanto, e principalmente, em nível internacional".9(2)
Assim, conforme destaca Marini,9 em um primeiro momento, a integração da região ao mercado mundial vigoraria sob a condição de colônia produtora de metais preciosos. Nesse sentido, contribuiria para o desenvolvimento do capital comercial nas metrópoles e da grande indústria - esta que lançaria as "bases sólidas à divisão internacional do trabalho".9(5)
Em seguida, ao passo que a indústria se estabelecia como o eixo central da acumulação global, os países latino-americanos se voltariam para a produção e exportação de bens primários, em particular bens alimentícios e matéria-prima, garantindo aos países centrais a especialização nas atividades industriais por meio do rebaixamento dos salários e dos custos com matéria-prima.
Com efeito, é a relação com os centros capitalistas europeus, sobretudo a posição em que se encontra na divisão internacional do trabalho, o determinante para as possibilidades de desenvolvimento na região:
[...] é a partir de então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência.9(4)
A consequência da incorporação da América Latina ao sistema capitalista engendrou uma mudança qualitativa para os países centrais, pois propiciou o deslocamento da acumulação no sentido da produção de mais-valia relativa. Para além disso, conforme aponta Marini9,10 e que será mais bem analisado no próximo item, da oferta abundante de bens primários decorreu uma acentuada queda nos preços destes produtos, enquanto os preços dos produtos industriais não apresentaram grandes variações.
A questão sobre a deterioração dos termos de troca, por sua vez, representou um dos pontos de divergência entre as formulações da TMD e a abordagem proposta pela CEPAL. Tanto que, ao tratar do assunto, Marini destaca que "Celso Furtado tem comprovado o fenômeno, sem chegar a retirar dele todas as suas consequências".9(46)
O pensamento cepalino sobre os problemas das economias latino-americanas surge como contraposição ao esquema de desenvolvimento liberal baseado na Teoria das Vantagens Comparativas formulada por David Ricardo, uma vez que tal instrumental era utilizado comumente para ratificar a posição latino-americana de produtora de bens primários. Contudo, sem lastro na realidade, a consequência do liberalismo econômico não poderia ser outro:
Ao contrário do que afirmava a teoria das vantagens comparativas, o resultado dessas práticas era um lento e progressivo descenso dos preços dos produtos primários em relação aos industriais, que se acelerava durante as crises da economia mundial. De 1876-1880 a 1911-1913, os preços dos produtos primários haviam se deteriorado em relação aos produtos industriais, caindo de um índice 100 para 85,8[%].1(216)
O crescimento econômico cada vez mais obstaculizado nos países periféricos gerou o acúmulo de tensões sociais, tais que desembocaram em discussões sobre o papel do Estado e a existência de uma burguesia nacional revolucionária, capaz de subverter a ordem no sentido de seus interesses (que, em tese, deveriam ser diferentes daqueles das oligarquias agroexportadoras). Entre 1940 e 1950, o resultado foi no sentido da redefinição das políticas internas, o novo paradigma denominou-se "nacional-desenvolvimentismo, que teve sua mais alta expressão e seu centro de difusão na CEPAL. Os grandes formuladores do pensamento cepalino, em sua fase inicial, foram Raúl Prebisch e Celso Furtado".1
Este novo paradigma, todavia, apresentava como solução para a dependência latino-americana o fortalecimento do processo de industrialização, este que deveria ser forjado pelo Estado nacional, como alternativa à falta de uma burguesia nacional forte e ao desinteresse do capital estrangeiro.11,12 Nesse contexto, ocorreria a substituição gradual das importações, na seguinte ordem: bens de consumo leves, bens de consumo duráveis e bens de capital. Entretanto, na medida em que o Partito Socialista Italiano - PSI avançava, as necessidades de exportação para sustentar esta indústria também ocorriam, tal que se apresentava como um problema essencialmente fruto da dependência: a deterioração dos termos de troca que, para Prebisch e Furtado, ocorria: (i) pela baixa elasticidade-renda dos produtos primários; (ii) pelo excedente de mão de obra rural; e (iii) pelas diferenças entre a organização dos trabalhadores e empresários nos países centrais e periféricos.1
Em síntese, a análise cepalina se distancia sobremaneira da TMD na medida em que, por mais que questione alguns dos problemas que permeiam a realidade latino-americana e a situação de dependência, a resposta dada reforça as relações capitalistas (e, mais importante, não visa rompê-las), além de não questionar as relações estabelecidas no marco do mercado mundial para o diagnóstico da deterioração dos termos de troca. Ademais:
Segundo o autor [Marini], ao contrário do que supunha a Cepal, a tendência no capitalismo era a de repassar os aumentos de produtividade aos preços. Isso é assim em razão da concorrência que alimenta o sistema e impõe à cada capital particular as leis do capital em geral. Para o autor, é a partir da concorrência que se deve entender a redução dos preços e a deterioração dos termos de troca.1(241)
Marini9 ainda ressalta que em países como o Brasil, por mais que o processo de industrialização tenha possibilitado uma extensão do mercado interno, jamais se conformou uma verdadeira economia industrial, dado que não garantiu um desenvolvimento econômico significativo na região. A indústria se manteve subordinada às atividades primárias, estas sim que configuravam o centro da acumulação:
Para os fins a que nos propomos, é suficiente fazer notar que, por significativo que tivesse sido o desenvolvimento industrial no seio da economia exportadora (e, por consequência, na extensão do mercado interno), em países como Argentina, México, Brasil e outros, não chegou nunca a conformar uma verdadeira economia industrial, que, definindo o caráter e o sentido da acumulação de capital, acarretasse uma mudança qualitativa no desenvolvimento econômico desses países.9(21)
Consequentemente, enfatiza que a abordagem da insuficiência de capitalismo e a solução da industrialização, na verdade, aprofundariam a dependência, não podendo, portanto, ser a alternativa para a superação da condição subordinada em que se encontram as nações latino-americanas. Tal como expressa Marini:
A consequência da dependência não pode ser, portanto, nada mais do que maior dependência, e sua superação supõe necessariamente a supressão das relações de produção nela envolvida.9(4)
Diante do exposto, é valido notar que as origens da TMD, bem como as contribuições sobre as formações sociais latino-americanas por ela dispostas, apontam para uma teoria crítica aos movimentos que atenuam ou potencializam os impasses intrínsecos oriundos da posição de subordinação que fora submetida a região dentro da lógica da acumulação capitalista, mas que também não se desvencilha da conjuntura em que se insere e não se abstém de refletir concretamente as transformações necessárias ao sistema.
Transferência de valor como intercâmbio desigual e dependência à luz da visão de Ruy Mauro Marini
Em 1973, com a publicação de Dialética da dependência, Marini9 destaca a particularidade da dependência nas economias da América Latina, ressaltando a problemática da transferência de valor às economias capitalistas centrais como intercâmbio desigual. Neste sentido, o autor elucida a categoria superexploração de forma mais completa, contemplando em sua construção teórica os diversos determinantes históricos, econômicos e políticos que constituem as realidades dessas economias dependentes. Com o objetivo de revelar qual a relação dialética existente nos países dependentes, Marini explicita como a forma em que as economias subdesenvolvidas se inserem no mercado mundial, acaba por condicioná-las a criar internamente, por meio da relação entre o capital e o trabalho, a superexploração da força de trabalho. Assim, há uma relação dialeticamente construída, entre dependência e superexploração, em que esta última ocorre como forma de compensar o que se perde na primeira, diante das assimetrias das relações mercantis determinadas no mercado mundial. Nessa perspectiva, Marini9 acrescenta e aclara que:
Em meu ensaio tratei de demonstrar que é em função da acumulação de capital em escala mundial, e em particular em função de seu instrumento vital, a taxa geral de lucro, que podemos entender a formação da economia dependente. No essencial, os passos seguidos foram examinar o problema desde o ponto de vista da tendência à baixa da taxa de lucro nas economias industriais e colocá-lo à luz das leis que operam no comércio internacional, e que lhe dão o caráter de intercâmbio desigual.(185)
A articulação entre o nacional e o internacional se postula, então, como essencial para a compreensão do desenvolvimento desigual - entendido como desdobramento da lei do valor e do modo de produção capitalista.
Desta perspectiva, a dependência se explicita na medida em que a não-identidade entre o valor produzido e apropriado pelas diferentes economias implica nas desigualdades estruturais das formações econômico-sociais - ou seja, na maior exploração das economias dependentes.7
Decerto, o vínculo estabelecido entre estes países não pode ser explicado fora da unidade dialética entre desenvolvimento e subdesenvolvimento,
[o]u melhor, entende que esse processo pressupõe desenvolverem-se determinadas economias - no sentido do desenrolar das leis gerais do modo de produção capitalista - em ritmo mais acelerado do que outras.8(193)
Nesse sentido, sob as determinações da divisão internacional do trabalho, a dependência é essencialmente uma condição para a existência do sistema capitalista. Deste modo, tal explicação transcende os limites das constatações óbvias baseadas em relações de interdependência das economias nacionais. Significa dizer que, à luz das leis que regem o modo de produção capitalista, a expansão da acumulação nos países centrais é possibilitada em detrimento das economias dependentes, apontando, portanto, para o fato de que o subdesenvolvimento é componente intrínseco deste sistema.8
Dentro deste contexto, a inserção da América Latina na lógica da acumulação mundial, conforme apresentado no item anterior, não tem como razão meramente suprir as necessidades físicas da produção capitalista; esta relação, ao ser analisada sob o prisma da dependência, se estabelece justamente no sentido de proporcionar às economias centrais um grau superior de expansão da produção e da circulação de mercadorias, culminando em um novo eixo de acumulação por meio da produção de mais-valia relativa, e contraditoriamente obrigando as economias periféricas a manter sua produção com base na superexploração da força de trabalho. Como bem observado por Luce:7
Em outras palavras, ao se tornar mundial o mercado capitalista configura-se como uma totalidade integrada. Entretanto, ao segmentar-se entre economias industriais e não industriais (mais tarde, economias industriais imperialistas e economias industriais dependentes), tal totalidade revela-se uma mesma totalidade integrada, porém diferenciada.(28)
Por sua vez, a mais-valia relativa é definida como "uma forma de exploração do trabalho assalariado que, fundamentalmente com base na transformação das condições técnicas de produção, resulta da desvalorização real da força de trabalho".9(7)
Isto é, torna-se indispensável para o aumento da mais-valia relativa, além do aumento da produtividade, a redução do valor dos bens-salário, pois, dessa forma, conservando a mesma jornada de trabalho, a relação entre o trabalho excedente (a mais-valia) e o trabalho necessário (o capital variável - os salários) se dará em sentido favorável ao capitalista - a redução da segunda, invariavelmente, acarreta o aumento da primeira.
Para que este novo padrão de acumulação se reproduza, necessita-se de uma oferta cada vez maior de alimentos, uma vez que tais são parte constitutiva dos salários.
O efeito dessa oferta (ampliado pela depressão de preços dos produtos primários no mercado mundial, tema a que voltaremos adiante) será o de reduzir o valor real da força de trabalho nos países industriais, permitindo assim que o incremento da produtividade se traduza ali em taxas de mais-valia cada vez mais elevadas.9(8)
À vista disso, a América Latina ao se integrar ao mercado mundial como produtora de alimentos se localiza como parte fundamental do processo de acumulação nos países centrais.13,14
Em contrapartida, conforme o capital se desenvolve, o aumento da capacidade produtiva do trabalho acarreta o aumento paulatino do capital constante global (traduzido, neste caso, pelas matérias-primas), e consequentemente evidencia a tendência de queda da taxa de lucro, na medida em que tal se conforma pela relação entre a mais-valia produzida e o capital adiantado (somatório dos capitais constante e variável) e se equaliza pela concorrência intercapitalista.
Sendo a tendência decrescente da taxa de lucro inerente à acumulação capitalista no sentido do desenvolvimento das forças produtivas, torna-se decisiva a existência de fatores que atuem contra este movimento: seja pelo aumento da mais-valia ou pela diminuição do capital constante.
Neste estágio, é da necessidade de superação deste obstáculo que os países dependentes se localizariam na divisão internacional do trabalho:
[...] é mediante o aumento de uma massa de produtos cada vez mais baratos no mercado internacional, que a América Latina não só alimenta a expansão quantitativa da produção capitalista nos países industriais, mas também contribui para que sejam superados os obstáculos que o caráter contraditório da acumulação de capital cria para essa expansão.9(9)
Contudo, este processo deflagra uma contradição:
Trata-se do fato suficientemente conhecido de que o aumento da oferta mundial de alimentos e matérias primas tem sido acompanhado da queda dos preços desses produtos, relativamente ao preço alcançado pelas manufaturas.9(9)
Notoriamente que por conta de as economias dependentes não disporem de aumento da produtividade relativamente elevado ao se comparar com os países centrais, não há razão aparente para que os elementos constitutivos do valor das mercadorias se reduzam, pelo contrário, o trabalho socialmente necessário na produção aumenta.
Sendo assim, verifica-se que o desenvolvimento do mercado mundial e a formação de mecanismos econômicos capazes de aprofundar a dependência conformam uma relação orgânica, de tal forma que as relações mercantis se orientam tanto para em alguns casos acomodar a lei do valor, como, em outros, para infringi-la. Em que pese, se estabelece uma relação dialética de aceitação e negação do intercâmbio de equivalentes:
Nesse sentido, quando prestamos atenção no momento da determinação negativa do valor (negação do intercâmbio de equivalentes), vemos que ele ocorre com maior frequência e assume caráter estrutural e sistemático em certo conjunto de economias, que são as do capitalismo dependente. Nestas, a lei do valor expressa mais diretamente a violação do valor, enquanto nas economias centrais seu momento predominante - ou que se expressa mais diretamente - é o intercâmbio de equivalentes, em que os preços ou orbitam próximos de seu valor, ou estão mais suscetíveis à atuação da lei do nivelamento da taxa de lucro.7(31)
No caso em que a lei do valor tende a ser aplicada, a lógica por de trás das transferências de valor reside no fato de que o aumento da produtividade implicará em um aumento da produção de mais-valia, a partir do momento que a maior capacidade produtiva do trabalho permitir que o valor individual da mercadoria seja menor do que a média geral do setor. Logo, na medida em tal mercadoria se realizará pelo valor das condições gerais do mercado, este capitalista se apropriará de uma mais-valia extraordinária.
Portanto, ao se transpor tal raciocínio para as relações entre nações que compõe a mesma esfera de produção, em especial nações industriais, percebe-se que os lucros extraordinários, ainda que apropriados em detrimento de outros capitais, estão limitados pela lei de equalização da taxa de lucro. Marini9 assinala:
E assim como, por conta de uma maior produtividade do trabalho, uma nação pode apresentar preços de produção inferiores a seus concorrentes, sem por isso baixar significativamente os preços de mercado que as condições de produção destes contribui para fixar. Isso se expressa, para a nação favorecida, em um lucro extraordinário, similar ao que constatamos ao examinar de que maneira os capitais individuais se apropriam do fruto da produtividade do trabalho.(11)
Por seu turno, no caso das trocas que envolvem esferas de produção distintas, mais propriamente manufaturas e bens primários, a transferência de parte do valor gerado pelas economias dependentes para as economias centrais decorre do fato destas possuírem tanto o monopólio da produção, quanto uma maior composição orgânica do capital, refletido na produtividade. A via pela qual a troca desigual se sucede é o preço, nesse sentido, as economias industriais vendem:
seus produtos a preços superiores a seu valor, configurando assim uma troca desigual. Isso implica que as nações desfavorecidas devem ceder gratuitamente parte do valor que produzem, e que essa cessão ou transferência seja acentuada em favor daquele país que lhes venda mercadorias a um preço de produção mais baixo, em virtude de sua maior produtividade.9(11)
Evidentemente, neste caso a lei do valor não atende à sua determinação positiva de troca de equivalentes: em que a difusão da produtividade do trabalho, a fim de se nivelar uma média global e equalizar a taxa de lucro, não se expressa.
A partir disso, na medida em que as economias que detém maior produtividade do trabalho produzem abaixo do preço de produção e não são coagidas a vender pelo valor de fato associado àquelas mercadorias, realizam suas mercadorias no mercado mundial por um preço demasiado superior ao valor - "ou capturam riqueza que flui para si além daquela que foi gerada por ele".7(36)
Sendo assim, o preço de produção e a formação da taxa de lucro média no âmbito do mercado internacional são determinantes para que tal processo se efetive, uma vez que é por meio da segunda que as economias industriais se apropriam de mais valor do que produzem.
Isto exposto, cabe reter que, de forma mais geral, a categoria transferência de valor como intercâmbio desigual, cunhada pela TMD, além de expressar as transferências de valor em geral, tratadas na teoria da acumulação de Marx, alcança conteúdo fundamental no desdobramento histórico do mercado mundial, sendo o aspecto-chave para explicar o desenvolvimento desigual que caracteriza a lei do valor e o modo de produção capitalista enquanto economia mundial. Luce7 nos explicita que o segredo da dependência se apoia na não identidade entre o quantum de valor produzido e de valor apropriado entre as diferentes economias, sendo que transferência de valor e intercâmbio desigual, na visão de Marini,9 caracterizam uma mesma tendência particular nas economias dependentes, explicando o desdobramento contraditório da lei do valor como simultânea assunção e violação do intercâmbio de equivalentes.7 Para os teóricos da TMD, com destaque para Marini,9 a categoria transferência de valor como intercâmbio desigual consiste em uma explicação significativa que situa na produção e apropriação de valor as causas para as desigualdades estruturais que marcam as relações de exploração nas economias dependentes, para além da temática da defasagem entre os preços dos produtos manufaturados e dos produtos primários, que preocupava a Cepal, sendo a deterioração dos termos de intercâmbio uma das formas de manifestação, mas não a própria essência das transferências de valor.
Os fundadores da TMD ao tratarem da categoria transferência de valor como intercâmbio desigual priorizaram duas formas que ganham materialidade na realidade concreta: a) a deterioração dos termos de intercâmbio e b) as remessas de lucros, royalties e dividendos. Luce7 argumenta que, embora tenham se concentrado no exame dessas duas formas, não significa que sua teorização deixe de lado a importância que assumem, também, as formas da dívida externa (e interna), com o serviço da dívida - remessas de juros - e da apropriação da renda da terra. Essas quatro formas da categoria transferência de valor como intercâmbio desigual serão explicadas na próxima seção do artigo, sendo articuladas às economias latino-americanas por meio da contribuição de um teórico mais recente da TMD, Orlando Caputo, o qual ressalta o aprofundamento da dependência na indústria contemporânea do continente da América Latina.
Aspectos da indústria dependente no contexto contemporâneo: o destaque para a contribuição de Orlando Caputo
Antes de apresentar a contribuição de Orlando Caputo acerca da caracterização da condição de dependência da indústria latino-americana no capitalismo contemporâneo, cabe explicitar as configurações que assumem a transferência de valor como intercâmbio desigual na América Latina nesse contexto, o que impõe reflexos sobre o caráter do setor industrial nas economias dependentes.
Nesse sentido, Luce7 identifica como quatro as manifestações da transferência de valor como intercâmbio desigual: (i) deterioração dos termos de intercâmbio; (ii) serviço da dívida (remessas de juros); (iii) remessas de lucros, royalties e dividendos; (iv) apropriação da renda diferencial e de renda absoluta e de monopólio sobre os recursos naturais.
A deterioração dos termos de intercâmbio relaciona-se imediatamente com a esfera comercial. Conforme já fora tratado neste artigo, essa representação esteve no cerne das divergências entre os formuladores da TMD e o pensamento cepalino. Ao declínio nos preços das exportações brasileiras, conduzindo a uma queda dos termos de intercâmbio, os economistas desta vertente explicavam que isto se dava às diferenças evidentes da difusão do progresso técnico. Enquanto para Marini, se este fenômeno aparecia como lastreado no preço, sua essência estaria na produção de valor e nas relações do mercado mundial.
A partir de um documento disponibilizados pela CEPAL em 1949, Luce7 destaca que, entre 1876 e 1947, a queda nos termos de intercâmbio na América Latina foi de 40%:
Seu significado deve ser assim entendido: com o mesmo montante de divisas ou a mesma receita de exportações, as economias latino-americanas conseguiam comprar, ao fim do período da comparação, 40% menos em produtos importados (como máquinas, equipamentos e insumos industriais), que elas não produziam internamente.7(54)
Para as décadas compreendidas entre 1950 e 2008, também se utilizando de dados divulgados pela CEPAL, o autor chama a atenção para o fato de que, exceto para os países produtores de petróleo e exportadores fundamentalmente de materiais metálicos e desconsiderando o efeito da alta demanda chinesa por produtos primários no início dos anos 2000, as demais nações apresentaram queda significativa dos preços das matérias primas vis-à-vis dos produtos industriais. Ademais, essa situação desfavorável dos termos de intercâmbio implica não apenas em crises recorrentes no balanço de pagamentos, mas também na reprodução ampliada da dependência.
Em relação ao pagamento do serviço da dívida, localizado na esfera financeira, Luce7 destaca que esta modalidade tem origem na independência dos países latino-americanos, na medida em que alguns foram obrigados ao pagamento de indenizações às antigas metrópoles e outros necessitavam de armamentos para garantir o processo. De todo modo, os ciclos de endividamento externo destas economias assumem caráter sistêmico ao passo que, na maioria destes países, os empréstimos externos se destinam majoritariamente para o refinanciamento de dívidas antigas, soma-se a isto o fato de que o serviço da dívida ocupa boa parte dos orçamentos destes países.
As remessas de lucros, royalties e dividendos, por sua vez, caracterizam a esfera tecnológica da dependência e é a forma como se expressa mais fortemente o investimento externo, pois demarca a contrapartida da fase de "exportação de capitais" do sistema capitalista.15,16 Luce7 aponta para a discrepância entre as remessas de lucros enviadas para as matrizes das multinacionais norte-americanas que se instalaram na América Latina e o somatório entre as novas entradas de capitais e o lucro reinvestido - o primeiro montante supera sobremaneira o segundo. É evidente, portanto, como o capital externo adentra os países latino-americanos e se apropria duplamente da mais-valia produzida internamente: na medida em que converte em capital reinvestido, seguindo a lógica da acumulação, e ainda mais absurdo remete à matriz mais valor do que de fato significou sua efetiva participação.
Nesse sentido:
A dependência tecnológica e financeira, a saída de recursos superando os montantes investidos, a apropriação da mais valia extorquida dos trabalhadores do capitalismo dependente para irrigar as casas matrizes demonstram que, em vez de um impulso ao desenvolvimento tecnológico, o investimento externo capitalista atua como veículo de desenvolvimento do subdesenvolvimento.7(67)
Tendo em vista as configurações que assumem as transferências de valor como intercâmbio desigual na realidade concreta da América Latina, Orlando Caputo17 assinala que, no atual estágio de desenvolvimento do sistema capitalista, o aprofundamento da dependência na região se destaca pelo notável papel que desempenha o capital produtivo das multinacionais estrangeiras conjuntamente com o capital financeiro, ao passo em que se percebe um aumento dos lucros apesar da estagnação dos investimentos no setor industrial.
Para tanto, o autor parte da análise de que nos países centrais o capital produtivo prepondera sobre o capital financeiro. Para comprovar tal afirmação, apresenta que os juros líquidos sobre os resultados do primeiro estiveram em queda desde o início dos anos 1990, quando tal representava 60%, e desde o início dos anos 2000 se mantiveram em 22%. Além disso, ressalta que o capital produtivo nestas regiões deixou de ser um grande devedor para se tornar credor.
Dessa forma, Caputo17 salienta que apenas quando se atribui ao capital produtor de bens e serviços a sua verdadeira posição sobre o capital financeiro, que é possível atribuir como realmente é a dominação do capital sobre o trabalho:
Son las grandes empresas mundiales productoras de bienes y servicios las que comandan el capitalismo mundial, apoyadas en el capital financiero. Es en estas condiciones en que la relación de explotación del capital sobre el trabajo aparece de nuevo con mayor nitidez.17(10)
Esta mudança de relação entre os capitais fora somente possibilitada pela ocorrência de dois fatores cruciais: a queda da taxa de juros nos países centrais e o aumento dos lucros líquidos das empresas produtoras de bens e serviços, este último sobretudo proveniente dos lucros gerados no exterior.
O autor apresenta que a reestruturação da economia norte-americana no sentido de investimentos maiores em tecnologia e aumento dos lucros totais das empresas locais só fora possível por meio dos retornos propiciados pelos investimentos fora do país. Nesta análise, demonstra que entre 1987 e 2006 a porcentagem dos ganhos recebidos do exterior representavam 16% dos ganhos totais e passam a ser 25% no final do período.
No que se refere à indústria de transformação, os lucros gerados no exterior são ainda mais relevantes, uma vez que a partir de 1999 tais superaram os lucros gerados no interior da economia americana, sendo este o resultado do processo de globalização que favorece os países desenvolvidos, possibilitando os investimentos no exterior e o comércio internacional:
Como las crisis cíclicas han afectado seriamente las ganancias de la industria domestica del sector de la manufactura y las ganancias recibidas desde el exterior como tendencia han seguido creciendo estas superaron en el año 2000 en un 40% a las ganancias de la industria manufacturera de los Estados Unidos. El impacto de la crisis cíclica de inicios de los años noventa fue tan manifiesto que las ganancias recibidas llegaron a representar tres y cuatro veces las ganancias de la industria manufacturera entre los años 2001 y 2003. Posteriormente las ganancias al interior de la economía estadounidense se han recuperado en forma mucho más acelerada que el crecimiento de las ganancias recibidas en el exterior de tal manera que estas superan en 2005 y 2006 en algo más al 30% las ganancias de la indústria manufacturera al interior de Estados Unidos.17(15)
Desta perspectiva, Caputo17 destaca que a influência do capital produtivo e financeiro nos países latino-americanos se apresenta de maneira combinada: o primeiro via investimentos diretos (possibilitado essencialmente por crédito internacional, dada a baixa taxa de juros nos países de origem); e o segundo via dívida externa. Essa atuação conjunta possibilitou a desnacionalização das principais empresas da América Latina, além de se observar um aumento da dívida externa da região e o crescimento negativo dos investimentos. Em que pese, tal situação se consolidar a partir da reestruturação nesta região, assentada especialmente na globalização e na agenda neoliberal a partir dos anos 1990.
Um dos elementos que reflete o início dessa atuação conjunta e potencializada do capital produtivo das multinacionais e do capital financeiro na América Latina, de acordo com Caputo,17 seria a mudança de composição nas remessas enviadas ao exterior:
Desde 1990 a 2000, las rentas remesadas por las inversiones extranjeras aumentan desde 47.500 millones de dólares aproximadamente a un poco más de 82.700 millones de dólares. En términos absolutos el crecimiento global se explica especialmente por el gran aumento de las utilidades e intereses de la inversión extranjera directa y por las remesas de las rentas correspondientes a las inversiones en cartera en los mercados de capitales de varios países de la región que han sido desarrollados y profundizados como parte de la globalización y de las políticas neoliberales. [...] En 1990 las remesas totales eran explicadas en un 83% por los interesses de la deuda externa. En 1995, los intereses explican el 48,3%, y las remesas conjuntas de la IED y de la inversión en cartera explican el 51.7%.17(24)
A partir dos anos de 1990, portanto, as remessas de lucros passariam a ser superiores ao pagamento de juros da dívida. Assim, mesmo na América Latina, predomina o capital produtivo das multinacionais.
O autor enfatiza o papel do baixo nível de investimento nos países latino-americanos, tanto em novos ativos quanto naqueles já existentes na região, apesar dos lucros exorbitantes propiciados por ela, como elemento fundamental para a reprodução do subdesenvolvimento:
En 1980, la inversión global de América Latina equivalía al 53% de las inversiones globales de Estados Unidos. En los últimos años sólo equivale a cerca de un 20%. Esto contrasta con el gran crecimiento de la inversión extranjera. Pero en realidad la inversión extranjera ha venido fundamentalmente a comprar empresas ya existentes.17(20)
A partir disso, constata que, no ano 2000, das 200 maiores empresas exportadoras da região, 98 pertenciam a grupos estrangeiros. Ainda, entre 1998 e 2000, das 100 principais indústrias, 58 eram estrangeiras e controlavam cerca de 62% das vendas. Ainda reforça que os investimentos estrangeiros diretos se orientaram majoritariamente para as principais empresas da região, de modo que a queda relativa deste montante estaria associada aos limites do processo de desnacionalização.
De forma geral, cabe deixar mais evidente a condição da indústria dependente na América Latina. Destacamos quatro aspectos estruturais. Em primeiro lugar, Campos18 avalia que a preferência do capital produtivo internacional - por meio dos Investimentos Diretos Estrangeiros - IDEs - pelas economias latino-americanas, no século XX, decorreu dos seguintes aspectos:
Por serem os países com maiores contingentes populacionais e com expressiva concentração de renda, Brasil, Argentina e México encontravam-se, na América Latina, como os destinos mais cobiçados [...]. Dos US$ 4,5 bilhões de IDE ingressados na América Latina entre 1956 e 1960, Argentina, Brasil e México respondiam por 44% do total, ou quase US$ 2 bilhões. Mesmo que esses IDEs fossem transferência de máquinas e equipamentos já amortizada nas economias centrais, e, por isso, com expressiva defasagem tecnológica, a América Latina mostrava-se altamente carente deles.18(17)
Em segundo lugar, é importante ressaltar que a entrada destas corporações na América Latina denotou uma nova fase do imperialismo, em que a internacionalização produtiva se tornava decisiva para o processo, na medida em que ingressavam na estrutura produtiva da região - sobretudo nas atividades industriais mais tecnológicas -, com uma forma de organização e produção própria e, logo, incorporavam uma série de setores sociais dentro da sua dinâmica de interesses. Este movimento, portanto, configuraria na região o aprofundamento da dependência externa, a partir da conjugação entre as multinacionais e a burguesia local.
Isso se deu de modo tal que, em terceiro lugar, o processo de industrialização na América Latina engendrou um aprofundamento da dependência, haja vista que se constituiu sobretudo via intervenção do capital estrangeiro sobre a produção interna. Por conseguinte, tal situação, determinou "o modo específico como os ciclos reprodutivos dar-se-iam, engendrando diferentes problemas, seja na circulação, na produção ou no circuito monetário".19(108) A atuação do capital estrangeiro, portanto, se organiza da seguinte forma:
Parte desse capital estrangeiro que entra na primeira fase (C1) compra meios de produção e força de trabalho do próprio país dependente, mas outra parte sai de imediato desta nação, na medida em que compra meios de produção do exterior. Isso não acontece apenas na economia dependente, mas nela ocorre de forma mais aguda, ao mesmo tempo em que responde "à própria estrutura de seu processo histórico de acumulação de capital" [...]. Quanto às fases de acumulação e produção, vale frisar que o capital estrangeiro é o que controla e tem "acesso mais direto à tecnologia implícita" nos meios de produção [...], sendo que este condicionante de dependência tecnológica restringe o desenvolvimento de circuitos de acumulação complementares e estabelece limites à expansão do departamento de produção de máquinas e equipamentos de meios de produção (Departamento I).19(108,109)
Em quarto lugar, esta dinâmica, ao passo que garante para empresa estrangeira maiores condições para o aumento da produtividade - justamente pelo acesso à tecnologia e custos de produção menores -, conduz para a agudização do processo de concentração e centralização do capital, uma vez que a cada ciclo de produção acumula maior massa de mais valia produzida por deterem maior composição orgânica do capital. E, consequentemente, minando as possibilidades de desenvolvimento via capital nacional. Neste sentido, Trindade et al.19 argumentam:
Permanecendo essa realidade por alguns ciclos de produção, faz-se presente uma concentração de capital por parte dessa empresa. Mesmo quando a tecnologia que a colocou nessa posição barateie, dando a oportunidade de outras empresas lhe terem acesso, a concentração de capital que se operou na primeira empresa lhe faz capaz de, nesse momento, dar um novo salto qualitativo em sua produção, com novas inversões tecnológicas que reduzam seu custo ainda mais, o que lhe confere a posição absoluta de direção e liderança sobre o mercado e a economia. 19(109)
Por sua vez, merece menção o caráter mais atual da condição de dependência da indústria latino-americana. Conforme argumenta Osorio,20,21 o atual padrão de reprodução do capital na América Latina, a partir dos anos 1980, tem seu foco na desindustrialização e reprimarização da pauta exportadora como traço marcante da estrutura produtiva atual. Esse padrão guarda significativas semelhanças aos valores de uso produzidos no agromineiro exportador do início do século XX, porém diferencia-se deste último pelas maiores elaborações tecnológicas utilizadas na produção. A condição exportadora vem do fato de que os setores eixos das economias dependentes latino-americanas produzem mercadorias para serem realizadas prioritariamente no mercado externo. O aumento expressivo do fluxo de comércio internacional dessas economias a partir de 2000 e o tipo de bem exportado conformam a inserção primário-exportadora e o lugar da América Latina dependente no mercado mundial.
Nota-se que o capital estrangeiro foi um dos atores privilegiados na reconfiguração do mundo periférico a partir dos anos 1980. Aqui nos referimos ao capital estrangeiro atuando como bancário-financeiro e se apropriando de juros decorrentes do mercado de dívida pública.20 Veremos mais à frente o protagonismo central do capital estrangeiro no equilíbrio do balanço de pagamentos e na atividade econômica interna.
Por sua vez, os anos 2000 viriam para mostrar um retorno do desenvolvimento ancorado nas exportações primárias, levando ao que Osorio20 afirma que o período de industrialização foi uma excepcionalidade na história da região. Para se ter uma ideia, de acordo com o relatório realizado pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial - IEDI,22 a participação da indústria no Produto Interno Bruto - PIB brasileiro sofreu uma retração de 21,4% para 12,6%, entre 1970 e 2017. Esse mesmo quadro é percebido no conjunto dos países da América Latina.
As transformações ocorridas após a crise estrutural do capitalismo a partir do final dos anos 1970 introduziram nova configuração no mercado mundial, buscando enfrentar a tendência da queda da taxa de lucro dos capitais situados nas economias centrais. Dentre as mudanças nesta situação destacam-se: a reestruturação produtiva com deslocamento de partes da produção para os países de capitalismo dependente em busca de utilizar os menores custos com a força de trabalho e o crescente processo de financeirizaçãob.23-27 Neste sentido, pode-se comentar sobre a interligação entre o fenômeno desindustrializante e reprimarizador da pauta exportadora das economias latino-americanas com a financeirização, qualificando melhor o desdobramento da atual fase da dependência nesses países.
Segundo Amaral,24 a atual fase pode ser nomeada de dependência neoliberal financeira-tecnológica. Amaral argumenta que:
[...] a natureza atual de nossa condição dependente: ela não passa mais pela superexploração como traço distintivo, ainda que a superexploração esteja mais do que nunca presente, mas passa pela nossa inferioridade tecnológica, que nos faz apenas produzir, sem autonomia na criação, os padrões cada vez efêmeros de produção que o desenvolvimento tecnológico autônomo dos países centrais vai impondo ao resto do planeta.24(135)
Em uma visão complementar, Raposo28 pondera sobre a dimensão fictícia no atual padrão de reprodução do capital na América Latina. Segunda a autora, as economias latino-americanas constituem-se como plataformas de especulação financeira e fictícia e, por sua vez, afetam o desenrolar do ciclo do capital industrial na economia dependente. E além disso, o lado fictício no atual padrão influencia em cada etapa do ciclo do capital.
A simbiose entre a financeirização (dominância do capital fictício) e a desindustrialização com reprimarização da pauta exportadora na América Latina é incontornável. Visto que a esfera da produção proporciona uma obtenção de lucros sem ter de passar pelo processo produtivo, os ganhos da esfera financeira são mais atrativos em relação à esfera produtiva. Dito de outra maneira, é perceptível que nas economias a financeirização estimula a diminuição da formação bruta de capital em favor da especulação. Desse modo, esse processo possui implicação sobre a relação entre capital e trabalho, com uma tendência para rebaixamento salarial e a adoção de medidas por parte do Estado para reduzir o salário indireto - precarização da saúde e da educação pública, por exemplo -, acrescido de pressões do setor financeiro para ganhos de curto e médio prazo.28 Nesse sentido, os processos de desindustrialização, reprimarização e, consequentemente, o baixo dinamismo econômico aparecem como desdobramentos da financeirização subordinada, que por sua vez é marca constitutiva do capitalismo contemporâneo, com especial desenvolvimento na América Latina.
Considerações finais
Notadamente a contribuição de Caputo para compreender melhor os limites da análise Marini nos ajudam a complementar melhor o papel do contexto de aprofundamento da dependência, refletida fundamentalmente no aumento dos lucros, das remessas, da desnacionalização e pela estagnação do investimento na região no contexto contemporâneo.
Notoriamente, o papel que cumpre a América Latina no novo estágio de acumulação do sistema capitalista destaca o aprofundamento da dependência, uma vez que ao garantir a produção e reprodução do capital apropriado pelos países centrais, a situação de estrangulamento econômico e social se agudiza. A análise de Caputo parece ser profícua em ressaltar este aspecto.
Além do mais, é evidente que a agenda econômica neoliberal engendrou um processo de recuo da estrutura industrial da região, uma vez que o capital produtivo das multinacionais ao adentrar na América Latina e se apoderar de grande parte dos ativos já existentes com o mínimo de investimento possível, garante que tais países se mantenham em posições tecnológicas e possibilidades de ganhos inferiores aos realizados nos países centrais. Neste sentido, Marini e Caputo se complementam ajudando a traçar com maior precisão o cenário das economias dependentes latino-americanas no capitalismo contemporâneo.
aNo começo dos anos 1960 o pensamento da Comissão Econômica para América Latina - Cepal, agência da Organização das Nações Unidas, liderada pelos economistas latino-americanos Raúl Prébisch, Celso Furtado, Aníbal Pinto etc., inicia sua crise após ter sido hegemônico e inovador no continente latino-americano desde sua fundação ao final dos anos 1940. Para o auge e declínio do pensamento cepalino, ver Osorio.2
bO processo de financeirização, de acordo com vários autores marxistas,23-25, constitui-se na marca do capitalismo contemporâneo, tendo a dominância do capital fictício na dinâmica do movimento do capital. A categoria marxiana de capital fictício é essencial para analisar a crise contemporânea e compreender as formas cada vez mais abstratas que o capital adota. Seu princípio básico refere-se à capitalização de uma renda derivada de uma mais-valia futura, assumindo especificamente as formas de capital bancário, bolsa de valores e dívida pública, todos identificados por Marx26 em sua época. Ao mesmo tempo, contemporaneamente, o mercado de derivativos e as criptomoedas podem ser somados às formas de capital fictício.27
Referências
2. Osorio J. Teoría marxista de la dependencia. Ciudad de México, DF: Itaca; 2016.
3. Lenin VI. O imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Centauro, 2005.
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6. Frank A.G. Capitalismo y subdesarrollo en América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI; 1970.
8. Carcanholo MD. 2013. O atual resgate crítico da teoria marxista da dependência. Trab Educ Saude. 2013;11(1):191-205. https://doi.org/10.1590/S1981-77462013000100011.
9. Marini RM. Dialética da dependência. 10a ed. Ciudad de México: Editora Era; 1990.
10. Marini RM. A acumulação capitalista mundial e o subimperialismo. Outubro. 2012;(20):27-70.
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13. Katz C. Peculiaridades del neoliberalismo en América Latina. Pacarina del Sur [Internet]. 2015 [citado 15 ago. 2022];7(25). Disponível em: www.pacarinadelsur.comindex.php?option=com_content&view=article&id=1211&catid=14 Fuente: Pacarina del Sur - http://pacarinadelsur.com/nuestra-america/abordajes-y-contiendas/1211-peculiaridades-del-neoliberalismo-en-america-latina - Prohibida su reproducción sin citar el origen
14. Monge RQ. Las crisis económicas en el sistema capitalista: prisma latinoamericano: elementos para su historia. Pacarina del Sur. 2010 [citado 15 ago. 2022];(42). Disponível em: http://pacarinadelsur.com/nuestra-america/abordajes-y-contiendas/146
16. Xavier GL. O imperialismo na América Latina e a atualidade da teoria marxista da dependência. Rev Katalysis. 2018;21(2):387-95. https://doi.org/10.1590/1982-02592018v21n2p387.
22. Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. Um mal brasileiro: declínio industrial em setores de maior tecnologia. São Paulo: IEDI; 2019 citado 16 ago. 2022]. Disponível em: https://iedi.org.br/artigos/top/analise/analise_iedi_20190418_industria.html
26. Marx K. O capital: crítica da economia política. Lv. 3. São Paulo: Boitempo; 2017.
27. Nakatani P, Marques RM. Capitalismo em crise. São Paulo: Expressão Popular; 2020.