Crit Revolucionária, 2023;3:e008
Ensaios - Marxismos Latino-americanos
https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2023.v3.55
i Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública – FSP, Departamento Ciclo de Vida, Saúde e Sociedade. São Paulo, SP, Brasil.
ii Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Vice-Reitoria de Ensino de Graduação e Pós-graduação – VRE, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva– PPGSC. Fortaleza, CE, Brasil.
iii Governo do Estado de São Paulo – GESP, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo – SES, Grupo de Planejamento e Avaliação. São Paulo, SP, Brasil.
iv Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública – FSP, Especialização em Economia e Gestão em Saúde. São Paulo, SP, Brasil.
v Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará – FSCMPA, Mestrado Profissional em Gestão e Serviços em Saúde. Belém, PA, Brasil.
vi Universidade de São Paulo – USP, Escola de Artes, Ciências e Humanidades – EACH, Mestrado em Gerontologia. Guarulhos, SP, Brasil.
vii Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública – FSP, Especialização em Economia e Gestão em Saúde. São Paulo, SP, Brasil.
Autor de correspondência: Andrey Oliveira da Cruz aocruz@usp.br
Recebido: 26 jul 2023
Revisado: 02 ago 2023
Aprovado: 04 ago 2023
https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.v3.55
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Neste ensaio, com olhar para o pensamento político-econômico em saúde, destacam-se as principais contribuições de Nelson Rodrigues dos Santos contidas em um de seus importantes trabalhos: “O Dilema Estatista II: Como é forjado o espaço das Políticas Públicas com exemplos da Área da Saúde”; autor, brasileiro, professor, médico e gestor público de saúde, foi um dos principais atores da Reforma Sanitária Brasileira. Ao mesmo tempo, procura-se inserir na análise de Santos, aspectos do artigo de Thomas Porcher “Gasto Público: por que tanto ódio?”, um economista e professor francês, crítico da economia ortodoxa e da austeridade fiscal como pretextos para a falta de incentivo às políticas sociais na Europa. O nosso objetivo foi buscar uma articulação entre os dois autores. Como método, foi utilizada a análise de conteúdo e, estruturalmente, dividiu-se o texto em três partes: breve biografia dos autores, apresentação propriamente dita das contribuições para o campo da política econômica contidas nos textos pré-selecionados e considerações finais.
Descritores: Políticas públicas; Gastos públicos com saúde; Economia e organizações de saúde.
EL PENSAMIENTO POLíTICO-ECONóMICO EN SALUD DE NELSON RODRIGUES DOS SANTOS Y LA MIRADA SOBRE EL GASTO PúBLICO DE THOMAS PORCHERResumen: En este ensayo, con una mirada al pensamiento político-económico en salud, se destacan los principales aportes de Nelson Rodrigues dos Santos contenidos en una de sus importantes obras: “El Dilema Estatista II: Cómo se forja el espacio de las Políticas Públicas con ejemplos del Área de la Salud”; autor, brasileño, profesor, médico y gestor de salud pública, fue uno de los principales actores de la Reforma Sanitaria brasileña. Al mismo tiempo, se intenta insertar aspectos del artículo “Gasto público: ¿por qué tanto odio?” de Thomas Porcher, economista y profesor francés, crítico de la economía ortodoxa y la austeridad fiscal como pretextos para la falta de fomento de políticas sociales en Europa. Nuestro objetivo era buscar un vínculo entre los dos autores. Como método se utilizó el análisis de contenido y, estructuralmente, el texto se dividió en tres partes: breve biografía de los autores, presentación de los aportes al campo de la política económica contenidos en los textos preseleccionados y consideraciones finales. Descriptores: Políticas públicas; Gasto público en salud; Organizaciones de economía y salud. |
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POLITICAL-ECONOMIC THINKING IN HEALTH BY NELSON RODRIGUES DOS SANTOS AND THE LOOK AT PUBLIC SPENDING BY THOMAS PORCHERAbstract: In this essay, with a look at political-economic thinking in health, the main contributions of Nelson Rodrigues dos Santos contained in one of his important works stand out: “The Statist Dilemma II: How the space of Public Policies is forged with examples from the Health Area”; author, Brazilian, professor, doctor and public health manager, was one of the main actors of the Brazilian Sanitary Reform. At the same time, an attempt is made to insert aspects of Thomas Porcher's article “Public Spending: why so much hate?”, a French economist and professor, critical of orthodox economics and fiscal austerity as pretexts for the lack of encouraging social policies in Europe. Our objective was to seek a link between the two authors. As a method, content analysis was used and, structurally, the text was divided into three parts: brief biography of the authors, presentation of the contributions to the field of economic policy contained in the pre-selected texts and final considerations. Descriptors: Public policies; Public spending on health; Economics and health organizations. |
OBrasil vive há décadas numa conjuntura político-econômica de constantes ofensivas aos programas de apoio social. Dentre eles, destaca-se o Sistema Único de Saúde – SUS, a maior política social já realizada no país.
De acordo com Nelson Rodrigues dos Santos, líder histórico da luta pela democracia e pelo direito universal à saúde no Brasil, o SUS foi a política pública que mais avançou, que foi mais aguerrida e que mais soube politizar ao final da ditadura e na construção da Constituição Federal.1 De fato, um dos marcos históricos mais importantes dessa conquista, senão o mais, foi a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, na qual ficou explícito que a saúde é direito do cidadão e dever do Estado.
Apesar disso, segundo Gastão Wagner de Sousa Campos,2 nenhum governo ou partido político assumiu o financiamento e a implementação do SUS como prioridade nacional; pelo contrário, e como consequência, tem-se assistido nos últimos 30 anos à mercantilização de espaços e processos públicos de saúde das mais diversas maneiras e apoiada, repetida e constantemente, pela política econômica do Estado brasileiro. Em sua concepção, os sistemas universais de saúde são organizações não mercantis inseridas em nações capitalistas nas quais a cultura de proteção social se mantém viva na sociedade e nas políticas de Estado, independentemente do crescimento econômico, e que os conceitos de efetividade e eficiência não deveriam, em hipótese alguma, estar deslocados da perspectiva pública da inclusão social.
Da mesma forma, a sustentabilidade dos sistemas de saúde universais deve permanentemente ser garantida por políticas de Estado que tenham o financiamento como prioridade e que não privilegiem mercados privados.2 Apesar disso, o Banco Mundial – BM, instituição financeira que efetua empréstimos para países em desenvolvimento, em seu relatório do ano de 2017, considerou que o Brasil deveria incentivar a privatização, a terceirização e o fim da gratuidade dos serviços de saúde. Em complemento, o BM afirma que o Brasil tem gasto excessivo em saúde, sem aprofundar sua análise na constatação de que a maior parte desse gasto em saúde (54%) é destinado a uma minoria com saúde suplementar (25%).3
Não apenas no campo teórico, essas recomendações de fato fazem parte de um movimento político e cultural em direção à mercantilização da assistência à saúde dentro e fora do Brasil. O National Health System – NHS do Reino Unido, por exemplo, sofreu na última década pressão política que tem alterado profundamente os princípios que regeram sua criação, embora com magnitude diferente nos diferentes países do Reino Unido, isto é, de maneira mais intensa na Inglaterra e menos profundamente na Escócia. Em linhas gerais, observou-se no NHS aumento considerável no nível de terceirização de serviços e profissionais de saúde entre 2013 e 2020 – sistema que não objetivava o lucro em sua essência, foi progressivamente substituindo sua rede de serviços e servidores públicos por instituições multinacionais com fins lucrativos. Ressalta-se, ainda, a constatação de estudo recente que demonstrou perda de eficiência, eficácia e aumento de mortes evitáveis no Reino Unido nesse período e em função dessas mudanças.4
No Brasil, na mesma direção da onda neoliberal, observa-se no campo político progressivo subfinanciamento e desfinanciamento do SUS e incentivos fiscais para o sistema privado, com a participação de grandes mídias em deteriorar a imagem do SUS e favorecer a propaganda de empresas privadas de saúde.5 Simultaneamente, temos carência de um Estado em sintonia com as diretrizes de organização do sistema público, gerando permanente tensão entre as esferas federal, estadual e municipal e ausência de ordenamento dos processos de descentralização e regionalização.6
A renúncia de arrecadação fiscal observada no Brasil constituiu nos últimos 20 anos verdadeiro incentivo aos planos privados de saúde, patrocinando, paradoxalmente, a atividade econômica e os gastos em saúde dos estratos sociais menos vulneráveis, isto é, aqueles com maior renda. E não se pode imaginar que as medidas políticas que têm sustentado essa condição foram forjadas ao acaso. De fato, o núcleo do poder decisório do Estado brasileiro é coberto por planos privados de saúde e sobre ele recaem toda sorte (ou azar, para as camadas mais vulneráveis da população) de pressões do mercado globalizado de empresas e produtos privados de saúde.
Segundo Ocké-Reis,7
[...] não é recomendável naturalizar a renúncia – aceitá-la como natural, uma vez que resultou da ação humana, condicionada por interesses econômicos e políticos, em certo período histórico –, tampouco manter desregulada sua aplicação – afastada de valores, normas e práticas que possibilitem o exercício do controle governamental sob o marco constitucional do SUS. Afinal de contas, a renúncia pode gerar situação tão regressiva da ótica das finanças públicas – ao favorecer os estratos superiores de renda e o mercado de planos de saúde […].7(2037)
Entre 2003 e 2015, a somatória de recursos que o Estado brasileiro deixou de arrecadar em razão de renúncia fiscal foi de aproximadamente 331,5 bilhões de reais, montante que poderia ter sido empregado, à título de exemplo, na atenção primária à saúde e em serviços de média complexidade.7
No sentido dessas constatações, o presente ensaio crítico pretende discutir, no campo do pensamento econômico em saúde, as contribuições de um importante personagem do movimento sanitarista brasileiro, Nelson Rodrigues dos Santos, utilizando-se como base um de seus importantes trabalhos, “O Dilema Estatista II: Como é forjado o espaço das Políticas Públicas com exemplos da Área da Saúde”, publicado na Revista Saúde em Debate em 1990.
Esse periódico, criado em 1976, é uma publicação do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde – CEBES5 e foi um importante veículo de divulgação de estudos, pesquisas e reflexões sobre saúde coletiva, inclusive no período pós ditadura militar. O artigo apresenta diversos números e informações das áreas de ciências sociais, economia e política para denunciar a relação entre sociedade e Estado no Brasil da época e suas consequências para a área da saúde.5 Destacando-se que muito do apontado continua intenso no cenário atual e, por isso, a recuperação do tema nos dias atuais é essencial.
Para agregar valor à discussão, lançou-se mão do capítulo “El Gasto Público: ¿por qué tanto odio?” do livro “Tratado de economía herética: para poner fin al discurso dominante”, do economista francês Thomas Porcher,8 professor universitário e crítico da economia ortodoxa e da austeridade fiscal como pretexto para a falta de incentivo às políticas sociais na Europa.
Sendo assim, este trabalho está dividido em três partes: síntese das biografias dos autores; descrição dos principais tópicos do artigo Nelson Rodrigues dos Santos,5 incorporando, sempre que possível, aspectos da obra de Thomas Porcher, vista sobretudo por meio do capítulo de seu livro mais recente; considerações finais, resumindo as principais contribuições para o campo da política econômica contidas nos textos pré-selecionados.
Nelson Rodrigues dos Santos é um médico brasileiro formado pela Universidade de São Paulo – USP (1961), com especialização em Saúde Pública (1969) e doutorado em Medicina Preventiva (1967) pela mesma instituição. Constituindo-se em uma das lideranças na luta pela democracia e pela reforma sanitária brasileiras, também foi professor titular de Saúde Coletiva na Universidade Estadual de Londrina – UEL, professor assistente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – FSP/USP e professor colaborador na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.9
“Nelsão”, como é chamado pelos amigos, iniciou sua aproximação com a saúde pública após um convite de assistente do médico Samuel Pessoa, tendo “deslanchado” na cidade de Londrina ao coordenar o departamento de Saúde Comunitária da UEL na década de 1970, sendo inclusive preso pelo Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna – DOI-Codi devido a sua militância na universidade e sua antiga filiação ao Partido Comunista Brasileiro – PCB.10
Após sua libertação e se sentindo impedido de atuar conforme sua ideologia, em 1977 aceitou o convite da Organização Pan-Americana da Saúde – OPAS, em Brasília/DF, e participou do Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde – PPREPS/OPAS, capítulo anterior ao II Simpósio da Câmara dos Deputados de 1982 (convocado pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES e pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO) e da VIII Conferência Nacional de Saúde de 1986, movimentos precursores do SUS.10
Nelson exerceu diversos cargos em gestão de saúde pública além de consultor da OPAS, entre eles, Secretário Executivo do Conselho Nacional de Saúde – CNS do SUS, coordenador da Comissão Interinstitucional de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, coordenador do Escritório de Municipalização da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e membro da Coordenação da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas.9
Atualmente, é membro do Conselho Superior e Fiscal (e um dos fundadores) do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA, entidade privada sem fins lucrativos criada em 1994, formada por especialistas, professores e estudiosos do Direito Sanitário, Saúde Coletiva e Gestão Pública do SUS, que tem por missão a proteção e defesa do direito da saúde das pessoas e valorização do direito sanitário.11
Frequentemente, Nelson Rodrigues dos Santos participa de eventos, publica artigos e opiniões em diversos meios, como nas eleições brasileiras de 2018 no site do CEBES ao contextualizar que há uma hegemonia real neoliberal há 30 anos no país e, que até 2002, a contra-hegemonia tinha forças desenvolvimentistas, democráticas e populares; desde 2003, está inerte ou apenas presente no discurso ao preferir a governabilidade e optar pela assimilação do Estado pelo capital financeiro.12
Em 2021, através do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz– CEE-Fiocruz, publicou sobre a conjuntura pandêmica e o SUS, num artigo dividido em quatro tópicos: referencial pré-pandêmico, período pandêmico, inusitado senso comum e proposta. Ao longo do texto, discorre sobre a manutenção do nível de impotência da Atenção Básica para efetivar a mudança de modelo do SUS, limitações de financiamento, relação público-privada e a resistência frente às ações de enfraquecimento do sistema de saúde. Na sequência, relata a falta de integração entre as esferas federal, estaduais e municipais, o impacto econômico da pandemia e, por último, apresenta uma proposta para Prioridade estratégica à assunção e construção da diretriz constitucional da Regionalização/Hierarquização.13
Mais recentemente, em maio de 2022, no lançamento do livro “O longo amanhecer do Sistema Único de Saúde: reflexões para o SUS reexistir”,14 organizado por Fabiano Tonaco Borges, Nelson, chamado de o homem da esperança, afirmou que o SUS é um processo histórico que está saindo do papel, pois eram dezenas de militantes na década de 1970, agora são milhares; e mesmo que esse amanhecer seja longo, o sol vai raiar, cabendo a todos lutar com a mesma garra, coerência e intensidade, porque vale a pena re-existir.14
Já Thomas Porcher, é um economista, professor e ensaísta francês nascido em 1977 na comuna Drancy – subúrbio no nordeste de Paris, departamento de Seine-Saint-Denis –, filho de um imigrante vietnamita professor de administração e uma costureira de grandes marcas de origem italiana. Concluiu seu doutorado em Economia pela Universitè Paris-XIII Villetaneuse com a tese “Recettes pétrolières et financement de la lutte contre la pauvreté: le cas de la République du Congo” publicada em livro.15
De um movimento intelectual em formação, Porcher objetiva influenciar debates sobre as eleições europeias e retirá-las de um jogo entre 'progressistas' e 'nacionalistas'. Além da presença constante na mídia, publica artigos em revistas científicas, alguns entre os 5% mais citados do mundo, e, mesmo lecionando em uma escola privada de negócios – professor associado de Economia na Paris School of Business – PSB – não vê contradição com seus princípios heterodoxos.16
Desde 2016, Porcher é membro de uma associação denominada Les Économistes Atterrés, visibilizada em 2010 a partir de um manifesto composto por 10 falsas evidências,17 a fim de demonstrar a ineficiência e a injustiça das propostas ortodoxas. O coletivo busca provocar reflexões coletivas e propor alternativas às políticas de austeridade dos atuais governos, através de publicações e intervenções em reuniões públicas ou nos meios de comunicação que as solicitem.17
Entre seus artigos, o mais citado é “Hedging strategies in energy markets: The case of electricity retailers”18 publicado na revista Energy Economics, em que aborda as atividades de varejistas de eletricidade, os melhores portfólios de acordo com horários específicos e a eficiência de carteiras de hedge intradiário.18
Quanto aos livros de sua autoria, o mais conhecido é o best-seller “Traité d'économie hérétique: en finir avec le discour dominant”8 (Tratado de Economia Herética: para por fim ao discurso dominante), com mais de 50 mil exemplares vendidos em diversas línguas,8 em que apresenta um contra-argumento para que os leitores não aceitem como inevitável o discurso dominante, as chamadas verdades econômicas.
Em 2018, Thomas Porcher, Raphaël Glucksmann, Claire Nouvian e outras personalidades francesas criaram um partido político chamado Place Publique – PP; porém, em 2019, após o PP entrar na campanha do Partido Socialista – PS francês, Porcher anunciou sua saída do PP, declarando-se decepcionado e dizendo não querer ser um fiador de esquerda do PS, nem que o PP fosse uma nova embalagem de um produto ultrapassado
Participou, ainda, de várias comissões de transição energética no Ministério da Ecologia na França, com estudos incluídos em relatórios do Governo e da Assembleia Nacional daquele país. Como palestrante frequente na mídia, foi classificado no Top 50 de economistas mais seguidos do mundo em 2018, no Top 50 de personalidades do ano na França em 2019 e no Top 50 de economistas mais influentes do mundo em 2020.20
Apesar de seu perfil antiliberal, incrédulo nos méritos dos mecanismos de mercado que beneficiem a sociedade, Thomas possui grande exposição midiática devido a frequentes convites para promover seu livro e para expor suas heresias, sendo considerado brilhante na missão de desconstruir os discursos dominantes que visam manter cidadãos numa economia cada vez mais liberal, em que a Bolsa de Valores não financia mais a empresa, mas a empresa financia a Bolsa.21
Tamanha exposição, porém, tem gerado os mais diversos ataques vindos de jornalistas da grande mídia: “cientista para televendas”, “capaz de tudo para obter sucessos”, “charlatão”, “pseudo-economista”. Porcher, por outro lado, além de responder a alguns ataques e fake news, afirma que incomoda o fato de ele não estar trancado em um canto e que a luta deve ocorrer em todos os lugares, inclusive nas redes sociais e debates.22
Em uma participação recente no canal “Le Media” no YouTube, com cerca de 150 mil visualizações em uma semana, Thomas declara que o discurso do presidente francês Emmanuel Macron e do jornal Le Figaro são desonestos, pois a dívida pública da França deve ser analisada de forma técnica, comparada a outros países, e não de forma política com objetivo de quebrar os serviços públicos.23
Santos,5 em seu texto publicado na revista Saúde em Debate, n. 27, discorre sobre a visão do governo em dar prioridade a políticas voltadas à privatização da saúde com o discurso de que há um déficit orçamentário.
Remontando à década de 1970 no Brasil, cita o milagre econômico e a ampliação da dependência externa pelo aumento das importações e dos financiamentos, acrescida, na década de 1980, pela fuga de capitais – transferência de ativos ao exterior – e casos de desvio no sistema de importações por parte dos bancos. Além disso, a dívida pública interna associada aos bancos privados e agências financeiras com altos juros promovidos pelo Banco Central a fim de atender as demandas da elite brasileira.5,24
Já na década de 1990, houve intensificação da concentração de renda no mundo, queda do mercado de consumo, fuga de investimento produtivo e uma grande circulação monetária no setor privado, com restrição da atenção do estado para as classes médias e pobres e cortes do governo brasileiro nos recursos de destinação social.5
Nesse aspecto, Thomas Porcher aprofunda a discussão ressaltando a falsa evidência de que o gasto público signifique a retirada de dinheiro do Produto Interno Bruto – PIB e que sua redução seja positiva para a sociedade. Para Thomas, deve-se comparar as magnitudes, ou seja, afirmar que um país tem uma despesa, por exemplo, de 55% do PIB no setor público não significa que apenas o restante (45%) foi destinado ao setor privado. Segundo o economista Christophe Ramaux,20 caso fosse utilizado o mesmo método de cálculo, o gasto privado ultrapassaria 200% do PIB. Por outro lado, mesmo quando a despesa pública é considerada alta, como na França, a tomada de decisão é determinada socialmente, financiados pela coletividade, resultando em uma das mais baixas taxas de pobreza do mundo entre os aposentados.20
No Brasil, porém, observa-se um movimento oposto. Santos5 descreve que há uma transferência do capital público ao privado com: Subsídios ao crédito e matérias-primas – principalmente ao setor agropecuário –, e despesa estimada em 3% do PIB ao ano; incentivos e isenções fiscais; venda de produtos de empresas estatais abaixo do valor estipulado no mercado, como os combustíveis pela Petrobrás; privatização dos procedimentos e decisões das instituições públicas; absorção de empresas privadas por meio do bancos públicos; maiores taxas de lucro do setor empresário no mundo.
Para Porcher,20 quando a função estatal é substituída pelo setor privado, pode haver um alívio na carga tributária, todavia uma parcela da população será excluída de usufruir do serviço, além do que a privatização dos serviços públicos pode produzir uma fixação do preço que não será reembolsável, levando ao aumento da desigualdade – como no modelo adotado pelos Estados Unidos da América.
Ademais, no cenário brasileiro há uma queda vertiginosa de investimento do Estado devido ao pagamento de dívidas internas e externas e desmodernização das empresas estatais por alguns motivos: não atualização dos preços e tarifas; altos juros engajados pelo Banco Central.5
No início do século XXI ainda persiste essa queda vertical, principalmente com a ascensão do neoliberalismo, vivencia-se uma situação social de saúde no qual há um desmonte do Estado brasileiro que leva a uma desmodernização das empresas estatais e com isso leva uma desresponsabilização do governo federal de suas atribuições.25
Nessa linha, a inflação é o principal instrumento/argumento utilizado pela classe dominante e a classe privilegiada, que se apropriam da renda, uma vez que a renda nacional é composta por: lucros, juros, especulação imobiliária, juros, gastos públicos entre outros. Além disso, a pressão da inflação recai naqueles que se utilizam da moeda interna, ou seja, a classe dos assalariados, pequenos empresários e autônomos, pois grande parcela da elite brasileira tem a sua renda em banco no exterior (fuga de capitais), e um dos grandes motivos da permanência da inflação é a política governamental que adota os gastos públicos e os salários como os únicos componentes da renda.5
A dívida pública, então, levaria consigo uma carga para gerações futuras que sentiram o aumento da taxa de juros que dificulta o empréstimo, ou seja, uma estagnação na rotatividade do dinheiro circulante; porém, Porcher20 afirma que não há relação entre o montante do gasto público e o montante da dívida pública, sugerindo um aumento dos gastos públicos com a finalidade de reduzir a dívida pública e um consequente aumento do PIB, ou seja, rotatividade do dinheiro circulante internamente.
Por fim, há diversas tentativas da classe dominante que defendem a redução dos gastos públicos com a finalidade de atacar a esfera do Estado para privatizar os serviços e ter lucro,20 em que o grande perdedor é o cidadão excluído socialmente por não ter a garantia do direito à saúde pelo Estado.
As propostas da Saúde como direito no Brasil apresentam seu desenvolvimento histórico pautado nos movimentos de redemocratização do país, especialmente o da reforma sanitária, que incluía um projeto em prol de interesses coletivos como resposta à crise da saúde durante o período da ditadura militar brasileira, mais especificamente como um movimento pelo direito à saúde ou mesmo de revolução do modo de vida.26
Ainda se tratando da reforma sanitária, Paim25 esquematiza três modalidades na dependência da correlação de forças na conjuntura de transição democrática: revolucionária, pactuada e por colapso. O formato e o conteúdo da reforma, por sua vez, estariam relacionados a características invariantes, como o controle social do sistema de saúde, a criação de instrumentos de gestão democrática e a construção de alianças políticas para o direito à saúde. O uso dessas proposições permitiu a construção da proposta de uma reforma sanitária inserida na Constituição Federal de 1988, reconhecendo a saúde como direito fundamental e dever do Estado brasileiro, vinculando sua obtenção às políticas sociais e econômicas para redução do risco de agravos e acesso às ações de recuperação, promoção e proteção.
Apesar dos avanços com a promulgação da carta constitucional no âmbito da definição de direitos sociais, como da saúde, esses não asseguravam a efetividade dos direitos e deveres constituídos.26
Santos5 traz para o debate o cenário de desenvolvimento das forças produtivas brasileiras da década de 1980 e 1990, quando o país se coloca como oitavo PIB do mundo, apesar de importante contraste com o tamanho da dívida social acumulada, sendo somente 40% da população constituinte do mercado de consumo de sociedade industrial, renegando ao restante importante condições de atraso no contexto socioeconômico do Estado.
Esse cenário parte de um projeto bem estabelecido de acúmulo do capital nas atividades econômicas do Tesouro, fazendo com que a própria massa salarial do país se situasse em apenas 38% da renda nacional de 1988, com um déficit habitacional de pelo menos 11 milhões de moradias, além do alto índice de analfabetismo e de pobreza absoluta. Por conseguinte, a mesma doutrina de que o desenvolvimento social somente ocorre a partir do desenvolvimento econômico permitiu a acentuação cada vez maior da marginalização das atividades na área social, papel intensificado e consolidado a partir dos anos de projeto ditatorial militar, persistente no contexto neoliberal que vivemos até hoje.
Porcher19,20 exara o entendimento de que os economistas do mundo inteiro tendem a visualizar a redução do gasto público como meta a ser perseguida, em razão do entendimento deste como ineficaz do ponto de vista econômico ao colocar em risco gerações futuras no contexto de dívida fiscal impossível de ser paga. Nesse contexto, para Santos5 a cristalização de um discurso onde as políticas públicas na área social devem ser exercidas em uma baixa oferta de serviços para pequena parcela da população confere a eixos sociais – como saúde, previdência e assistência social – exercício meramente paternalista do Estado, característica imposta historicamente pelas classes dominantes.
A intensa dependência do Estado brasileiro aos interesses externos e grupos dominantes internos apresenta raízes oriundas do processo de fundamentação do Brasil colônia, marcado por absoluta centralização do Poder de Estado no Poder Federal, com centralização do processo decisório; pela identificação do Estado central como maior proponente de políticas públicas e promotor de desenvolvimento das forças produtivas; e pela formulação de castas sociais com relação pautada no parasitismo dos serviços públicos do Estado, que assume papel de investidor nas atividades do prejuízo e de repassador de lucros.5
No mesmo sentido, Porcher19,20 dialoga sobre como o formato do gasto público determina como uma sociedade pretende confiar ao serviço público para bens de serviços de retorno à sociedade, como qualidade da proteção social e redução de desigualdades. Para o autor, a mera comparação de economias divergentes por meio de indicadores como a do montante do gasto público em relação ao PIB não seria o suficiente para indicar maior dívida pública e, por consequência, limitar o investimento do setor público.
Para ambos os autores, a redução do gasto público com serviços sociais somente serve para a manutenção de velhas políticas públicas antissociais. Mais ainda, reduzir serviços como os pagamentos de seguridade social, ou os investimentos em educação e saúde dizem muito sobre o lugar que o ser humano ocupa em suas sociedades. Em geral, o efeito de redução dos gastos públicos apresenta efeito direto sobre as classes médias e pobres, uma vez que, na ausência desses serviços, são os que não apresentam possibilidade de qualquer outra forma de proteção social.5,18
No que diz respeito ao modelo de consumo em saúde, Santos5 exemplifica a caracterização histórica de um Estado segmentado por subsistemas de acordo com o estrato social a que serve: população economicamente passiva; trabalhadores rurais de relações de produção recente; trabalhadores urbanos de menor e de maior qualificação; pequenos proprietários urbanos; médios proprietários urbanos; e grandes proprietários e aplicadores. À população economicamente passiva e aos trabalhadores rurais destinam-se instituições públicas de baixíssimos orçamentos, com atividades ambulatoriais e práticas em sedes sindicais e santas casas. Tratando-se dos trabalhadores urbanos e pequenos e médios proprietários, acrescia-se à oferta o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – INAMPS como financiador de serviços médicos hospitalares, principalmente através da rede privada de saúde, ou consumo da prática liberal em suas diversas formas de apresentação. Seguindo-se o estrato até os grandes proprietários, visualiza-se a intensificação da cobertura acumulada com consumo de serviços diagnósticos e terapêuticos de custos médios e altos. O classismo do sistema na oferta de serviços revela nesse contexto o não reconhecimento, pela sociedade e pelo Estado, de direitos fundamentais como acesso à saúde e seus geradores.
Não se trata de anacronismo histórico, porém, refletir que as críticas ressaltadas por Santos5 a respeito da marginalização dos programas sociais no Estado brasileiro se mantêm ainda nos dias atuais. A definição de um SUS operacional27 dialoga com o conceito da universidade operacional de Chauí,28 que tratam sobre extrato de políticas ultraneoliberais pautadas no ajuste fiscal permanente e de propagação de contrarreformas dos direitos sociais no contexto de crise do capitalismo. Nesse contexto, educação, saúde e outros serviços de direito social se ancoram no Estado criticado por Santos,5 onde o pressuposto ideológico básico do mercado como eixo central da modernização e racionalização das atividades estatais perdura até a atualidade.
A existência do SUS, teve início num contexto social no período da Ditadura Militar, em meados de 1970, em que ocorreu um êxodo populacional, concentrando a população de baixa renda nas periferias de grandes e médias cidades, o que intensificou a concentração de renda e a desigualdade social, com aumento da tensão social.5
A resposta do Estado foi a ampliação da oferta de serviços sanitários e de saúde para essa população, ainda que com recursos limitados. Concomitantemente, centros universitários realizaram um movimento para estudo e promoção de políticas que garantissem a saúde pública de maneira mais eficaz. Sendo assim, em meados de 1980, diversos municípios já possuíam Unidades Básicas em seu território, antecipando o que seria concretizado em 1988 por meio constitucional.5
Em 1990, as leis n. 8.08029 e n. 8.142,30 inspiradas no sistema de saúde público europeu, foram promulgadas após diversos estudos promovidos por centros de ensino acadêmico e debates de especialistas do ramo, demonstrando os efetivos resultados da expansão da rede de atendimento público, com melhora nos casos de várias enfermidades. O SUS passa a ser então garantido por lei, aumentando de forma drástica o atendimento à saúde para uma parcela mais ampla da população, ao mesmo tempo que ocorriam ajustes na arrecadação fiscal de modo a arrecadar recursos para garantir esse direito.5
Desde então, os inquestionáveis avanços do SUS a favor das necessidades e direitos da população constituem patamar inabdicável de realizações, conhecimento e práticas. No âmbito da atenção básica (AB), aumentou a integração das ações promotoras, protetoras e recuperadoras da saúde, apoiadas em diagnósticos epidemiológicos, sociais, formação profissional e processos de trabalho em equipe, constatando na prática que a resolutividade pode chegar a 80% dos atendimentos às necessidades de saúde.5
A excelência do SUS, portanto, comprovada nos últimos 30 anos de serviço, tem vários obstáculos ao aumento de efetividade, como o gasto insuficiente no setor público de saúde que soma apenas 3,9% do PIB nacional – muito abaixo dos 8,0% recomendados por diversos sistemas públicos de saúde no mundo. Destes já parcos recursos, parte é encaminhada para outras áreas, além do “engavetamento” de diversas propostas que visam aumentar a parcela da renda destinada à saúde pública.5
Há uma clara priorização da saúde privada, incentivada por vários mecanismos, em detrimento da pública, tendo em vista que o Estado não aloca recursos suficientes para o cumprimento efetivo dos deveres do SUS. Ademais, o governo não possui representantes que promovam debates e políticas públicas para colocar em pauta a destinação de recursos que otimizem o serviço prestado pelo SUS à população.5
Nesse ponto, Porcher18 argumenta que para qualquer economista da atualidade existe uma crença de que países que reduziram o gasto público tiveram excelentes resultados com baixas taxas de desemprego, tendo em vista que o alto gasto público significa ineficácia do ponto de vista econômico e compromete a segurança financeira das gerações futuras, por gerar uma dívida pública impossível de ser paga; por outro lado, não é lembrado que esse mesmo gasto está intimamente relacionado a setores como educação, segurança e saúde, o que implica garantia de uma vida digna e segura aos cidadãos.
O gasto público então passa a ser tratado como um montante de investimentos que deve ser reduzido a qualquer custo, em prol de indicadores econômicos, e não como essencial para a segurança social de uma sociedade, sendo utilizado de forma estratégica para maximizar a utilidade dos serviços públicos. A redução desses gastos traduz-se num ataque sucinto às classes médias e pobres que não possuem uma amplitude de recursos necessária para adquirir serviços de qualidade no setor privado.20
Como um reflexo da confiança da sociedade no Estado, o gasto público é essencial para a garantia dos direitos do cidadão em um país onde a efetividade do serviço público, ainda que criticada, seja oferecida para todos e promova um ambiente saudável para o Estado democrático de direito.20
Contrariamente, a questão da dívida pública é usada para justificar reduções no orçamento nacional, sob o argumento de que os países deveriam oferecer maior proteção aos cidadãos, porém não dispõem de meios. Entende-se, por outro lado, que na atualidade os malefícios e agravamentos causados por situações de dívidas não são sentidos de forma tão intensa quanto serão sentidos no futuro. No entanto, não existe causa direta entre o montante da dívida pública e o montante dos gastos públicos, quebrando o paradigma de que a dívida pública e investimentos públicos estão intimamente ligados. Desse modo, o Estado deve admitir um papel de políticas fiscais expansionistas para garantir os direitos da população, utilizando os recursos de forma eficiente e efetiva para garantir um bom funcionamento do aparato público.20
Assim sendo, em um cenário infértil ao crescimento do sistema público de saúde, são necessárias reformas que foquem na construção de um aparato público favorável ao SUS, que governem, precipuamente, com base nos interesses públicos e regulem o setor privado, de modo que a existência desses dois setores seja harmônica, complementar e que os direitos dos cidadãos sejam foco da economia.5,20
O “Dilema Estatista II” de Nelson Rodrigues5 traz também uma importante reflexão a respeito da legitimidade do espaço das políticas públicas envolvendo a área da saúde e os impactos das readaptações da relação sociedade-estado.
Segundo Santos,5 o pensamento político-econômico que concebe o liberalismo prevê o Estado Mínimo, reprimindo qualquer intervenção do Estado, com as leis de mercado acima das leis morais e da democracia. Esse conjunto de pensamentos ocasionou a grande depressão de 1930 e a partir da década de 1980, o continente latino-americano foi palco do chamado neoliberalismo, considerado como uma indubitável farsa ideológica. Os indícios desta farsa seriam: a criação de subsídios para alcançar os recursos ainda vinculados ao Estado; formato moderno e sutil para facilitar transferências de renda; enfraquecimento e desmoralização do Estado subdesenvolvido; e intenção de influenciar nos movimentos democráticos socialistas.
Seguindo nessa linha, Santos5 conclui que: a) países centrais se fortalecem por meio da desregulação de setores e das privatizações; b) países subdesenvolvidos necessitam modernizar suas indústrias para concorrer internacionalmente; c) a falta de eficiência do Estado facilita o cenário para o setor privado. Ou seja, aqueles que preconizam a redução dos gastos públicos querem atacar a esfera do Estado de bem-estar para privatizá-lo e colher benefícios próprios.20
Em relação à área da saúde, Santos5 destaca em seu texto os fluxos de financiamento público nos anos antecedentes à publicação de seu trabalho, em especial, as dinâmicas concernentes aos hospitais universitários, onde a evolução e investimento foram gerados pelo setor privado, apesar dos recursos provindos do poder público. Para os serviços de saúde de alto custo como: transplantes, tomografia, ponte-safena, marcapasso, cateterismo cardíaco e quimioterapia, entre outros, o convênio Instituto Nacional de Medicina Previdenciária/Sistema Único Descentralizado de Saúde – INAMPS/SUDS prévia tabelas de preços compensatórios, índice de desempenho hospitalar até 230% acima da despesa corriqueira. Estes serviços, de alta modernidade, recorrem a mais de 30% do financiamento total e, apesar das vantagens, por serem financiados por recursos públicos, deveriam estar disponíveis à toda a população, inclusive para a de renda mais baixa.
Segundo Santos,5 enquanto estes serviços não sofrem os impactos da inflação, retração dos repasses federais e atrasos de pagamento por meses, a Atenção Primária em Saúde – APS sofre brutal retração no seu financiamento.
Portanto, ficam evidentes as sérias consequências dessa política, como a pressão do próprio sistema público sob a população dos trabalhadores para pagar por assistência em saúde do próprio bolso, a utilização da maior parte dos recursos públicos para pagamento de serviços de maior complexidade – paradoxalmente encabeçados por instituições do sistema privado, que se mantém em posições favoráveis de lucro.5
Ainda nesse sentido, Porcher18 faz uma provocação similar sobre a substituição do serviço público pelo privado – o usuário torna-se cliente – e questiona como se admirar quando setores inteiros da população, antes não rentáveis, ficam abandonados à própria sorte.
Por fim, na visão de Santos,5 os grupos ligados aos serviços de alto custo articulam para manter preponderantes os serviços de mais alto nível, focando apenas nos trabalhadores mais qualificados e abandonando o restante da população – a farsa liberal.
O texto de Nelson, publicado em 1990 (período pós Constituição Federal), discorre sobre o cenário político, econômico e social brasileiro nas décadas de 1970 e 1980, abordando os mecanismos das classes dominantes para concentrar ainda mais a renda e criar condições para a permanência dos próprios privilégios. Enquanto Porcher, em livro publicado cerca de 30 anos depois, no contexto europeu, argumenta que inclusive a redução dos gastos públicos tem a finalidade de privatizar serviços e gerar mais lucros à elite, excluindo socialmente o cidadão.
Os reflexos desses mecanismos englobam os mais diversos aspectos, sob a justificativa de que os gastos públicos aumentam a dívida do país e impactam gerações futuras, em um discurso aliado a subsídios para a iniciativa privada e redução drástica de recursos de destinação social – educação, saúde, previdência e assistência social –, evidenciando uma tentativa de desmonte de serviços estatais, que passam a ter apenas função paternalista para as classes médias e pobres.
Na saúde, especificamente, é gerado um panorama segmentado por subsistemas que alimentam o classicismo da oferta de serviços e dificultam a percepção de direitos fundamentais pela sociedade, fortalecendo ainda mais a desigualdade e tensão sociais. Somando-se a isto, a concentração dos recursos da saúde em procedimentos de alta complexidade, comprados diretamente da esfera privada, fragilizam as ações da AB inclusiva.
Nelson e Porcher, porém, posicionam-se no polo contrário, alertando que não há relação entre o montante da dívida pública e do gasto público, e que este deve ser definido socialmente conforme sua essencialidade na estratégia de maximização da utilidade dos serviços estatais e da garantia dos direitos da população, tendo em vista que são financiados coletivamente.
Portanto, o formato do gasto público determina o que a sociedade pode esperar do Estado em relação à qualidade da proteção social, redução de desigualdades e garantia de uma vida digna e segura aos seus cidadãos.
Todos os autores contribuíram igualmente na elaboração do texto.
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