Crit Revolucionária, 2023;3:e009
Artigo original
https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2023.v3.e54
i Universidade Nove de Julho – Uninove. São Paulo, SP, Brasil.
ii Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública – FSP. São Paulo, SP, Brasil.
iii Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública – FSP. São Paulo, SP, Brasil.
iv Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública – FSP. São Paulo, SP, Brasil.
v Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública – FSP. São Paulo, SP, Brasil.
vi Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública – FSP. São Paulo, SP, Brasil.
vii Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública–FSP, Curso de Economia e Gestão em Saúde. São Paulo, SP, Brasil.
viii Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública–FSP, Curso de Economia e Gestão em Saúde. São Paulo, SP, Brasil.
Autor de correspondência: Alex Henrique Brasil Brião de Oliveira alexbr.oliveira01i@gmail.com
Recebido: 26 jul 2023
Revisado: 02 ago 2023
Aprovado: 04 ago 2023
https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.v3.e54
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A superpopulação relativa, conceito da teoria marxista, determina que o capitalismo tenha o exército industrial de reserva, composto por uma população trabalhadora adicional ou supérflua, além do que o sistema capitalista realmente necessite. O objetivo deste artigo é analisar como Cristina Possas conceitua esta superpopulação, dialogando estritamente com o olhar teórico, tratando a marginalização como uma das consequências inerentes ao capitalismo, e como, 22 anos após, Sarah Maria Escorel de Moraes e Hayda Josiane Alves repaginam o tema da marginalização, trazendo abrangência sobre os reais impactos que a exclusão social pode gerar na sociedade e no ser humano. Usou-se o ensaio crítico como modalidade textual e como método de análise do conteúdo.
Descritores: Capitalismo; Economia da saúde; Saúde pública; História econômica; Exército de reserva; Desenvolvimento industrial.
EL PENSAMIENTO ECONóMICO DE CRISTINA POSSAS SOBRE LA SOBREPOBLACIóN BAJO EL CAPITALISMO LATINOAMERICANO POR SARAH ESCOREL Y HAYDA ALVESResumen: La superpoblación relativa, un concepto de la teoría marxista, determina que el capitalismo tiene un ejército industrial de reserva, compuesto por una población trabajadora adicional o superflua, más allá de lo que realmente necesita el sistema capitalista. El objetivo de este artículo es analizar cómo Cristina Possas conceptualiza esta sobrepoblación, dialogando estrictamente con el punto de vista teórico, tratando la marginación como una de las consecuencias inherentes al capitalismo, y cómo, 22 años después, Sarah Maria Escorel de Moraes y Hayda Josiane Alves replantea el tema de la marginación, abarcando los impactos reales que la exclusión social puede generar en la sociedad y en los seres humanos. Se utilizó el ensayo crítico como modalidad textual y como método de análisis de contenido. Descriptores: Capitalismo; Economía de la Salud; Salud pública; Historia económica; Ejército de reserva; Desarrollo industrial. |
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CRISTINA POSSAS' ECONOMIC THOUGHT ON SURPLUS POPULATION UNDER LATIN AMERICAN CAPITALISM AND ITS CONSEQUENCES BY SARAH ESCOREL AND HAYDA ALVESAbstract: Relative superpopulation, a concept of Marxist theory, determines that capitalism has an industrial reserve army, composed of an additional or superfluous working population, beyond what the capitalist system really needs. The objective of this article is to analyze how Cristina Possas conceptualizes this overpopulation, strictly dialoguing with the theoretical point of view, treating marginalization as one of the inherent consequences of capitalism, and how, 22 years later, Sarah Maria Escorel de Moraes and Hayda Josiane Alves repackage the theme of marginalization, covering the real impacts that social exclusion can generate in society and in human beings. The critical essay was used as a textual modality and as a method of content analysis. Descriptors: Capitalism; Health economics; Public health; Economic history; Reserve army; Industrial development. |
Ao longo dos séculos a relação de trabalho vem sendo moldada e amplamente estudada dentro da sociedade. Desde as sociedades primitivas, essa relação de trabalho humano é construída com base nas necessidades temporais e espaciais dos povos, iniciando-se de forma intuitiva, com o foco em satisfazer as necessidades biológicas e de sobrevivência dos grupos.
Inicia-se aqui a análise da relação do trabalho humano a partir da pré-história, na era paleolítica, ou ‘idade da pedra’ (2 milhões a.C.). Ela é marcada pela produção do primeiro utensílio fabricado pelo homem, estendendo-se até o início do período neolítico (10.000 a.C.). Neste último período, a economia baseia-se na subsistência, na qual os itens produzidos não são acumulados ou comercializados, tendo por finalidade a propriedade coletiva e a sobrevivência.1
Adentrando ao período mesolítico, observa-se o desenvolvimento da agricultura (cereais, aveia, dentre outros) e da moradia. Assinala-se, também, a divisão sócio-sexual do trabalho, no qual os homens eram os responsáveis por manter o sustento da família e a segurança do local. Já as mulheres tinham o papel de cuidar dos filhos e da organização habitacional. Na última fase da pré-história, com a habilidade da manipulação de metais permitindo a produção de instrumentos mais resistentes, a produção começa a caminhar para o formato de especialização do trabalho.1
Avançando nesta análise específica da história, e caminhando para o período da alta idade média, observa-se que o modelo de trabalho predominantemente estabelecido foi o ‘agrário-feudal’, dominado por uma camada privilegiada (senhores feudais e altos dignitários da igreja, dentre outros). Assinala-se ainda, que o formato de trabalho era voltado, primordialmente, para estrutura familiar em terras e lotes arrendados aos camponeses (propriedade privada), com jornadas produtivas muito extensas.1
O “capital” na baixa idade média passa a ser uma medida universal de valor das mercadorias, que eram acumuladas por seus produtores, com base nos acordos sociais. A especialização do trabalho se fortalece dentro da organização social, agrupando-se por corporações de ofícios e associações profissionais, com estipulação de preços e caminhando para o cooperativismo moderno. O comércio e o artesanato contribuíram assim para a formação da burguesia (uma nova classe social).1
Na primeira metade do século XV, o impacto na produtividade dos alimentos, considerando a larga exploração das terras, culmina com o fim da idade média. Em outra vertente, o surgimento das doenças, como a peste negra, uniu forças para a revolta dos camponeses e da burguesia contra a nobreza feudal, corroborando para o fortalecimento das relações comerciais. Assinala-se, então, nesse período, a transição da relação social versus senhor, para uma relação social baseada no antagonismo burguês versus proletário, sendo esta considerada uma marca do capitalismo.1
Já na segunda metade do século XVIII, no contexto da industrialização, especialmente do setor têxtil, observa-se o aperfeiçoamento do maquinário à vapor e o fortalecimento das relações comerciais de bens e mercadorias, com a migração do formato de produção do campo para as linhas fabris. Migração esta acompanhada de salários baixos e a alta demanda (largas jornadas de trabalho insalubres e sem penalidades ao empregador), com foco na geração dos altos lucros para os seus donos.1 Assim, ter em mente este brevíssimo histórico ajuda a compreender a relação entre trabalho-saúde e as consequências do modo de produção capitalista nesta relação.
A análise da evolução das relações de trabalho nas sociedades humanas, desde a pré-história até a idade moderna, denota as inúmeras mudanças existentes e alterações dos acordos sociais em cada período da evolução dos povos. Observa-se também, como consequência da industrialização que, autores como Marx, analisam em suas obras, as condições e relações de trabalho às quais os indivíduos são submetidos dentro do modo de produção capitalista.
Marx descreve as relações de trabalho nas linhas de produção como desgastantes e insalubres. Relata também que essas jornadas extenuantes da classe operária, solicitadas pelos capitalistas e objetivando o aumento da produção geram impactos relevantes na saúde dos trabalhadores e, consequentemente, na produção a longo prazo.2 Afinal, para Marx3(45) “a riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias e a mercadoria individual como sua forma elementar”.
Ressalta ainda Marx que, a despeito da manutenção e conservação do maquinário fabril, não se observa nessa mesma uma preocupação com a saúde do trabalhador, estando estes subordinados às determinações econômicas e políticas vigentes. O excesso da carga e a sua execução em situações e meios desfavoráveis (insalubres) produzem impactos diretos sobre a saúde do indivíduo e na sociedade.
A respeito do impacto da saúde do trabalhador a longo prazo na produção, destaca-se como exemplo, a teoria da preguiça, que devido à capacidade de trabalho diminuída do indivíduo por motivos de saúde (desconhecidos à época), resultava na redução da produtividade individual. Os donos da produção, à época, reforçavam que o comportamento dos trabalhadores era ocasionado por preguiça, ao invés de relacionado a um estado de saúde.4
Partindo desta discussão, pode-se perceber que a saúde do trabalhador, impactada negativamente pelo ambiente de trabalho, iria permitir evolução a longo prazo a produção necessário da exclusão de parte da classe trabalhadora do sistema produtivo, e, consequentemente, contribuir para o desemprego.
Hayda Josiane Alves é graduada em Enfermagem pela universidade Estadual de Campinas – UNICAMP (2004), tem mestrado em Enfermagem pela mesma universidade (2007) e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ (2013) com tema Programa Bolsa Família, Saúde da Família e processos de exclusão e inclusão social: um estudo de caso no município de Silva Jardim/RJ, sob orientação da, então, co-autora do artigo em estudo, Sarah Maria Escorel de Moraes e, ainda apresenta estágio de pós-doutoramento pelo Departamento de Antropologia/IFCH/UNICAMP e Prevention Sciences Research Center/Morgan State University.
É Professora Adjunta do Curso de Graduação em Enfermagem do Instituto de Humanidades e Saúde de Rio das Ostras – Universidade Federal Fluminense – UFF e Professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da UFF. Membro do Internacional Collaboration for Participatory Health Research – ICPHR, compondo o Kids in Action, sub-grupo dedicado à pesquisa participativa em saúde com crianças, adolescentes e jovens. Ainda é membra da Rede de Educação Popular e Saúde. Tem experiência nas áreas de saúde coletiva com foco em educação popular em saúde e pesquisa-ação participativa em saúde. Desenvolve investigações no entorno dos temas: política social; saúde de adolescentes e jovens; enfermagem em saúde coletiva, educação popular e saúde.
Já Sarah Maria Escorel de Moraes é graduada em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1977), tem mestrado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1987), tem doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1998) e pós-doutorado pela Lancaster University (2013). No Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes ocupou a presidência durante as gestões 2000–2003 e 2003–2006 e, desde 2015, é membra do Conselho Consultivo. Atualmente é pesquisadora titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz, onde atua desde 1985.
Trabalhou como assessora entre 1980 e 1982 no Ministério da Saúde da Nicarágua, junto com seu então marido na época Sérgio Arouca e entre 1983 e 1985 na Secretaria Municipal de Saúde. Lecionou sobre saúde coletiva e políticas sociais de saúde na Universidade Estadual de Londrina entre 1989–2008, em nível de pós-graduação, bem como na Fundação Oswaldo Cruz desde 1986 até os dias de hoje. Seus principais temas de estudo são a exclusão social, o impacto das políticas e programas de saúde na redução da pobreza e das desigualdades sociais, assim como dos programas sociais e de saúde direcionados a grupos vulneráveis, em especial, pessoas em situação de rua. Além disso se dedica ao estudo da participação social em saúde com vistas a estudar as instâncias de participação da sociedade em saúde como a atuação dos Conselhos e Conferências de Saúde.
Por fim, a autora cujo pensamento está sendo analisado é Cristina Possas de Albuquerque. Ela é graduada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/Rio (1971), especialização em epidemiologia do trabalho e clínica do trabalho pela Università degli Studi di Milano (1984), tem mestrado em ciências sociais pela UNICAMP (1980), doutorado em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1988) e pós-doutorado em ciências da saúde pela Universidade de Harvard (1993).
Trabalhou com pesquisa na avaliação do desenvolvimento neuropsicomotor da criança na faculdade de medicina da UNICAMP entre 1974 e 1976, em seguida entre 1976 e 1977 foi pesquisadora na Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz), assessora da secretaria municipal de saúde de Campinas entre 1977 e 1984, sendo que entre 1983 e 1984 foi cedida à direção do Instituto de Saúde do Estado de São Paulo. Retornou alguns anos antes ao campo acadêmico como professora titular do departamento de medicina preventiva na UFMG de 1982–1983 e professora adjunta na PUC Campinas entre 1981–1984. Em 1983, passou a lecionar na Fiocruz e mais tarde atuou na coordenação da pós-graduação, funções que mantém até o momento.
Ela colabora como pesquisadora do departamento de doenças populacionais emergentes na Universidade de Havard desde 1994. Suas principais linhas de pesquisa são a desigualdade social e doenças infecciosas emergentes.
Em 1986, durante a VIII Conferência Nacional de Saúde, Possas redigiu um texto em defesa da reforma sanitária brasileira. Suas contribuições nos anos seguintes contribuíram com a criação do SUS, através da Constituição Brasileira de 1988. Para alguns autores, Cristina Possas foi a precursora do conceito de reforma sanitária brasileira5
Em um período mais contemporâneo, tem trabalhado como cientista da saúde pública, com foco em doenças infecciosas e sua relação com o ecossistema social. Atuou na elaboração de programas de pesquisa do Programa Nacional Doenças Sexualmente Transmissíveis – DST e Acquired Immunodeficiency Syndrome – AIDS e colaborou internacionalmente com a Agência Nacional Francesa de Pesquisa em AIDS e Hepatites Virais (ANRS), sendo premiada por isso. Outras doenças (re)emergentes, como aquelas de cobertura vacinal, febre amarela e COVID-19, estão no seu foco de pesquisa mais recente.
O contexto em que a análise dos textos deste artigo se insere é diferente, pois a produção de cada um ocorreu em momentos históricos distintos. A primeira edição do livro de Cristina foi publicada em 1981 pela editora Graal, período em que terminava seu mestrado em ciências sociais e trabalhava como assessora da secretaria municipal de saúde de Campinas. A década de 1970 foi caracterizada pela centralização dos programas sociais, como a saúde e a previdência, através da criação do Ministério da Previdência e Assistência Social, do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social – Sinpas, do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – Inamps e do Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social – Iapas. Somente na década de 1980 é que se assinala um movimento contrário, por influência de organismos internacionais, como a Organização Pan-Americana da Saúde – OPAS no Ministério da Saúde, no sentido de se superar o modelo hegemônico e desenvolver alternativas para políticas sociais.
Em 1979 ocorre o I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, da Câmara dos Deputados, em que, pela primeira vez, apresenta-se a proposta do Sistema Único de Saúde – SUS. Em 1980 foi criado o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde – Prev-Saúde, inspirado nas propostas da Conferência de Alma Ata, que priorizava a atenção primária e a participação popular, guiados por princípios como universalização, hierarquização e regionalização.6 No entanto, o modelo proposto era conflitante com o vigente, não conseguindo vingar. Fervilhava, naquele período, movimentos da sociedade civil reivindicando acesso aos serviços de saúde e uma maior participação popular nas políticas de saúde. Houve a criação de instituições como Centro Brasileiro de Estudo em Saúde – Cebes, em 1976 e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – Abrasco, em 1979 naquele momento.
Em 1979, o cenário internacional do segundo choque do petróleo leva a uma crise econômica, com disparada da inflação nos mercados globais. No final da década de 1970, a ditadura enfrenta uma crise político-ideológica e fiscal. Inicia-se então, neste cenário de crises e nos anos 1980 o movimento sanitário com afirmações ativas de políticas de saúde e participação social iria provocar mudanças significativas propondo um sistema de saúde com as seguintes características: i) ser abrangente e não focado apenas nos setores sociais excluídos; ii) ter representação direta da sociedade nas decisões; iii) propor mudança no relacionamento entre Estado e sociedade, no qual o Estado tem o papel de acolher propostas da sociedade, e esta, por sua vez, deve representar os interesses e reivindicações dos grupos sociais; iv) finalmente, apresentar a contraposição da concepção de controle social ao controle privado do Estado, por segmentos sociais com maior poder de acesso.6
Nas décadas de 1990 e de 2000, ocorreram avanços significativos na rede de proteção social no país, quando começaram a ser implementadas as conquistas sociais reconhecidas na Constituição de 1988. Assim, a saúde e a assistência social entram para o rol dos direitos sociais, financiados com fontes diversificadas de recursos.
O governo Collor de Melo (1990–1992) vetou a repartição de recursos entre os componentes da seguridade social, mesmo estes previstos na Constituição, dificultando a sua implementação, em termos de garantias de fontes de financiamento. Apesar disso, os diferentes governos que o sucederam deram prioridade à área social.
Nos governos Lula da Silva (2003–2010), se comparado ao período anterior, há um aumento expressivo no investimento econômico e político na área social, embora mantenha a qualidade de ser mais distributivo e não redistributivo. Por exemplo, a criação, em 2003, do Programa Fome Zero, com ações emergenciais no combate à fome e à pobreza e do Programa Bolsa Família, que assumiu lugar de destaque como política social, sendo reconhecido mundialmente como uma experiência exemplar. Um dos pontos de relevância é a exigência do cumprimento de compromissos por parte dos beneficiários nas áreas da saúde e educação, herança dos programas de bolsas do governo Fernando Henrique Cardoso.
Outros programas também foram implantados ou incrementados, como aqueles voltados à inclusão no sistema educacional, como a criação de bolsas, a valorização do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM como porta de acesso ao Sistema de Seleção Unificada – Sisu, o Programa Universidade para Todos – Prouni, e o Fundo de Financiamento Estudantil – Fies, mecanismos de ampliação do acesso ao ensino superior. Outro fator referente a este período foi a política econômica de consistente aumento real do salário-mínimo, reconhecidamente um dos meios mais eficazes de combate à desigualdade social e de distribuição da renda. Em 2005, por exemplo, o salário-mínimo aumentou para o dobro do ano anterior.
Assim, as políticas de renda para a população menos favorecida, via salário-mínimo, previdência social, assistência social e programa de transferência de renda permitiram, através do incremento da renda da base da pirâmide, uma mobilidade social ascendente, que por sua vez, auxiliou, inclusive, no crescimento econômico.
Marx foi um grande colaborador e teórico sobre a temática da classe trabalhadora e os efeitos do capitalismo sob a mesma. Ainda sob o olhar da população trabalhadora, focando na população excedente, observou também que esta era um produto necessário da acumulação ou ainda necessário ao desenvolvimento do lucro dentro do modelo capitalista. A população se converte, desse modo, em alavanca da acumulação capitalista e em uma condição de existência do seu modo de produção.
Essa população excedente e não inserida do mercado de trabalho é chamada de exército industrial de reserva, disponível e vista, dentro do modelo capitalista, como necessária para manter o equilíbrio.2 Na Figura 1, demonstra-se um esquema para esclarecer, de forma resumida, essa relação capitalista descrita por Marx, com a formação da superpopulação relativa, considerada exército de reserva.
Figura 1. Relação do modelo capitalista com a formação do exército de reserva.
Fonte: Elaborada pelos autores (2021).
Em teoria, a superpopulação relativa em sua totalidade é considerada como um exército de reserva e poderia ser absorvida no modelo capitalista como mão-de-obra a ser usada pelas indústrias, quando necessário. Vale ressaltar, que esta condição humana de desemprego, que faz com que os indivíduos que estão inseridos no grupo de exército industrial de reserva se coloquem em condição de exploração, aceitando a desvalorização de seus salários e benefícios, contribuindo para que o sistema capitalista trabalhe o controle de preços, mecanismos ativos da lei da oferta e demanda do mercado de trabalho, gerando mais acumulação do capital, mantendo, assim, o equilíbrio do sistema capitalista. Para melhor compreensão, como complemento ao esquema anterior, acrescenta-se a Figura 2.
Figura 2. Efeito da lei da oferta e da procura pela dominação, aplicado à superpopulação relativa/exército de reserva
Fonte: Elaborada pelos autores (2021).
Marx, em sua análise, indica que o desemprego estrutural é assim uma condição desse modelo capitalista.2 Em teoria, esse exército de reserva deveria ser reabsorvido como mão-de-obra pelas indústrias quando necessário a fim de manter o ciclo do capitalismo. Contudo o que se observa é que frequentemente esse exército é formado por uma grande massa marginal.
Esse conceito é o ponto de partida do texto de Cristina Possas “Saúde e trabalho: a Crise da Previdência Social” (1989),8 que reforça o entendimento de que a superpopulação relativa, principalmente dos países da América Latina, não pode ser considerada por completo como um exército de reserva a ser reabsorvido pelas indústrias, devido a uma alta predominância da população com baixa qualificação da mão-de-obra e ainda pela tardia industrialização desses países. Possas também crítica a responsabilização que o sistema obrigatoriamente tenha que assumir essa população como contingente por uma questão social de marginalização, devendo ser uma abordagem paralela a economia.
Já no texto de Alves e Escorel7 “Massa marginal na América Latina: mudanças na conceituação e enfrentamento da pobreza 40 anos após uma teoria”, as autoras debatem sobre pobreza e marginalidade após a era de ouro do pós-segunda guerra mundial, como consequências sociais diretas da concentração de riqueza e exploração da força de trabalho imposta pelo capitalismo. Nesse texto, também é relatado como a questão da pobreza, suas causas e consequências, foram abordadas amplamente por diferentes conotações, teorias e países, inclusive com um olhar específico sobre o impacto da existência humana aos afetados por essas condições.
Possas8 e Alves e Escorel7 trazem os estudos de Nun9 nos quais abordam o fato de que nem toda a superpopulação relativa pode ser considerada como exército industrial de reserva, principalmente em países de desenvolvimento tardio, como são os países que compõem a América Latina, nos quais grande parcela da população fica à margem do sistema produtivo, sem conseguir adentrar nele e, portanto, permanecendo fora do mercado.
Relativo ao conceito de massa marginal, Possas7(44) cita:
Nun (1969) conceitua a massa marginal como parte afuncional ou disfuncional da superpopulação relativa, afirmando que não tem sentido continuar tratando todo o excedente de população como se constituísse um exército industrial de reserva, desde que sua maioria não transcenderá o estado de mero fator virtual a respeito da organização produtiva dominante. Estabelecendo assim uma distinção analítica entre o Exército industrial de reserva e o que se decidiu denominar de massa marginal possuindo ambas as articulações distintas como parte da superpopulação relativa.7(44)
Este foi considerado um viés de análise da população excedente no modelo capitalista. Nun9 propõe então que a superpopulação seja dividida e mais bem estudada conforme a Figura 3.
Figura 3. Superpopulação: Exército industrial de reserva e Massa Marginal
Fonte: Elaborada pelos autores (2021).
Nun9 ao estudar a fundo os conceitos propostos por Marx em 1867, identifica que essa superpopulação não é 100% direcionada ao exército industrial de reserva e que este quadro se agrava em países da América Latina. O autor relata também que o movimento de expansão e redução do exército de reserva é o que regula os movimentos gerais dos salários, e, consequentemente, os ciclos do mercado, reforçando este ponto da teoria de Marx. Marx, já em sua teoria, reflete sobre trabalhadores com empregos temporários e não sobre o grupo que se afastou de forma crônica do mercado.
Possas8 afirma que o conceito de exército industrial de reserva se trata de uma teoria de população necessária da força de trabalho disponível – uma população para o capital e que este conceito não explica nem se propõe a explicar as condições de existência populacionais, como taxas de natalidade e mortalidade e nem atender ao restante da população não diretamente produtiva.
Alves e Escorel7 não encerram o tema da integração dos trabalhadores de maneira marginal de forma precária e desigual, aceitando isto apenas como um dos componentes da exclusão da teoria de exército industrial de reserva. Trazem também o pensamento de Quijano10, que ampliou o debate sobre a relação informal no trabalho, definindo como ‘polo marginal' o conjunto de ocupações ou atividades estabelecidas geralmente em torno do uso de recursos residuais, ou desligadas da produção, de caráter disfuncional ao sistema de acumulação capitalista, problematizando a realidade carencial crescente no tecido social urbano. Ademais, amplia a discussão da tese sobre a massa marginal e que, anos depois, reflete-se no abandono da referida tese, não porque as questões sociais não fossem importantes, mas, ao contrário, porque, como uma matriz explicativa da pobreza, esse conceito não permitia caracterizar todas as questões de desigualdades sociais e efeitos perversos do capitalismo para além da esfera do trabalho. Entretanto, para Possas8, concordando com o posicionamento de Cardoso,11 admite que o tema da massa marginal não deveria ser uma discussão entre acumulação e miséria, e, sim, uma constatação do conceito restrito aos sistemas produtivos.
Trazendo mais pontos a esse tema, não focando apenas no processo produtivo, as autoras Alves e Escorel,7 sob ótica da teoria da marginalidade, complementam que o risco social para o capitalismo latino-americano após segunda guerra mundial, referente ao fenômeno das massas que se aglomeravam nas periferias das grandes cidades do continente, como sendo um evento de transição entre a modernidade urbana e o decadente atraso rural, uma disfuncionalidade. Reconhecem ainda a sua importância histórica referente a essa teoria, explicando que essa matriz foi abandonada em virtude da emergência do conceito de ‘exclusão social’ e da questão em escala global, sai da questão míope de apenas analisar o polo marginal, adicionando relações, mudanças culturais, políticas e aspectos econômicos vinculados aos processos de globalização e reestruturação produtiva, dando origem a uma “nova pobreza” em massa nos países latino-americanos.
Possas8 também conceitua a questão da extrema pobreza ou pauperismo como classificação, representando uma das camadas da superpopulação relativa, sendo encontrada no extremo inferior dessa divisão (passando por exército ativo dos trabalhadores, exército industrial de reserva em sentido estrito e exército industrial de reserva em sentido lato ou secundárias), usando Marx para exemplificar de que se trata dos incapazes para o trabalho.
O pauperismo se encontra dentro do grupo das formas secundárias, estas que dificilmente serão absorvidas pela produção e que serão marcadas pela condição contínua e crônica de desemprego, que ocorre por motivos inerentes ao capitalismo e seu sistema produtivo: ruptura de relações de produção, progresso técnico, elevação na composição orgânica do capital e moderna divisão do trabalho, afastando aqueles de maior idade ou quando se tornam supérfluos.
Prossegue então Possas,8 apontando então a causa central do conceito de massa marginal e dos grandes contingentes populacionais afuncionais, que estas não estão nem sequer disponíveis para competir no mercado de trabalho, fazendo com que o sistema produtivo não consiga absorvê-las, nem mesmo nos períodos de auge econômico, porque não lhes é necessária. Traz ainda uma explicação adicional, de que, nos casos da população de reserva são submetidas a processos intermitentes de absorção e repulsão do mercado.
Uma das explicações que contribui para o complexo cenário acima é a racionalização do sistema produtivo e o desenvolvimento de novas tecnologias, fazendo com que o sistema ofereça menos oportunidades de trabalho, impactando a todos os países, mais fortemente os subdesenvolvidos, no qual temos como exemplo os países da América Latina. Nestes últimos, ainda se observa o processo de industrialização tardia, o êxodo das populações do campo e de outras relações de produção, que muitas vezes não conseguem ser absolvidas pelos processos mais complexos de grandes capitais. Ademais, após sua breve inserção, podem ser rapidamente postas a margem. Sem conseguir retornar às origens, formando assim as grandes e crescentes massas humanas periféricas.
Com uma maior profundidade, abordando mais aspectos excludentes a que são submetidas essa população considerada “sobrante” pelo capitalismo, Alves e Escorel7 consideram que seja insuficiente analisar a questão apenas como pobreza, já que o impacto gerado nessa população é muito maior.
O resultado da precarização das relações de trabalho e a fragilidade do sistema afetam processos de privação material e simbólica, gerando um modelo conceitual de exclusão social – impactando o que a Organização Mundial da Saúde – OMS considera como determinantes sociais de saúde – passando por trajetórias de vulnerabilidade até rupturas de vínculos em várias das dimensões da existência humana em sociedade: econômico-ocupacional, sociofamiliar, política, cultural e da vida.
A questão social dos contingentes populacionais de reserva a margem do sistema produtivo é definida por Possas8 como uma discussão que não deve ser feita dentro de aspectos da natureza econômica, mas sim de nível social e político e analisá-la como resultado de “contradições entre acumulação e miséria” não incorpora toda a complexidade que alavanca a acumulação capitalista, sendo esta população não apenas ser analisada do ponto de vista de sua absorção (ou não) nos sistemas produtivos.
Relaciona ainda que o exército industrial de reserva tem um papel de serventia no capitalismo regulando o movimento salarial e que para produção capitalista não basta a quantidade de força de trabalho disponível fornecida pelo incremento natural da população necessitando também um exército industrial de reserva que não dependa desse limite natural. Se este contingente populacional, marginalizada economicamente é ou não crescente não é a questão central e sim qual é a magnitude de suas proporções e as dimensões políticas e sociais que assumem. Ainda a autora defende que, por mais que represente uma grande parte da população da América Latina, esse padrão de desenvolvimento não vem a ser um obstáculo para a expansão capitalista na região.
Enquanto isso, Alves e Escorel7 analisam essa questão sob perspectiva atual de exclusão social com muito mais profundidade. Para as autoras, sim, a causa direta da massa marginal é o processo de acumulação capitalista que gera exposição dos indivíduos as vulnerabilidades econômicas em conjunto com as precariedades da proteção social apontando as consequências nos processos que impossibilitam o indivíduo de realizar plenamente sua condição humana e ser cidadão, estar inserido na comunidade, sociedade e sua Nação, recebendo as devidas proteções sociais para isso. Deve este ainda ser um problema a ser combatido por leis, políticas públicas, esferas de governo, organismos internacionais e setores públicos e privados.
Apesar de que as principais origens desses processos de exclusão se fundamentam e originam-se na dimensão econômica, o combate e a busca de soluções não deve se reduzir exclusivamente a ela, adicionando também o contexto sociocultural que legitima e reproduz estas condições. Deve-se reconhecer a relação entre inclusão social e direitos humanos assim desenvolvendo medidas para a promoção e proteção dos direitos, promovendo a coesão social, priorizando os alvos de intervenção, trazendo a questão para o debate público a fim de orientar a formação de políticas e o desenvolvimento de ações profundas e não apenas rasas melhorias das condições que tocam os grupos dos excluídos sociais.
O presente artigo faz uma relação entre o pensamento de Cristina Possas8, no livro “Saúde e Trabalho - A Crise da Previdência Social”, e o artigo de Hayde Alves e Sarah Escorel7, “Massa Marginal na América Latina”. Ambos os trabalhos em que este texto se baseou se debruçam sobre a relação de trabalho no capitalismo e as consequências sociais e de saúde.
Historicamente, o artigo de Alves e Escorel se encontra dentro de um período em que as políticas públicas de seguridade social começam a ser implementadas, devido aos avanços constitucionais de 1988. Na época, o maior exemplo de política estatal que foi instituído foi o Programa Bolsa Família, que cobrava compromissos dos seus beneficiários na área de educação e saúde.
Enquanto isso, o livro de Possas situa-se em um período em que estava sendo organizada a VIII Conferência Nacional de Saúde, tendo sido considerada uma das idealizadoras do SUS e uma das responsáveis pela Reforma Sanitária.
Os conceitos de exército industrial de reserva são explorados nas duas obras, contudo, ao citar os textos de Nun, concordam que esse termo não é o suficiente para descrever a existência da marginalidade. Esta última, muito prevalente nos países com desenvolvimento do capitalismo tardio, devido, entre outras coisas, a maior concentração pelo capital e as mudanças das forças produtivas que geram um quadro de desemprego crônico.
No contexto do avanço tecnológico, da racionalização do sistema produtivo e da precarização das relações de trabalho avança a marginalização e o pauperismo, aumentando a informalidade nas condições de trabalho, cenário que faz reaver a necessidade da tematização da “massa marginal” e sua compreensão.
Todos os autores planejaram o tema, pesquisaram a literatura, realizaram a análise, a interpretação dos dados e a revisão final encaminhada para publicação.
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