Crit Revolucionária, 2024;4:e007

Artigo de debate

https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2024.v4.43

ENSAIO CRíTICO SOBRE A CORRUPçãO NA PRODUçãO CIENTíFICA BRASILEIRA

Ana Alice MARQUESi    

i  Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva. São Paulo, SP, Brasil.

Autor de correspondência: Ana Alice Marques aamarques14@gmail.com

Recebido: 20 jul 2023
Revisado: 23 ago 2023
Aprovado: 14 out 2024

https://doi.org/10.14295/2764-49792RC_CR.v4.43

Copyright: Artigo de acesso aberto, sob os termos da Licença Creative Commons (CC BY-NC), que permite copiar e redistribuir, remixar, transformar e criar a partir do trabalho, desde que sem fins comerciais. Obrigatória a atribuição do devido crédito.

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Resumo

Corrupção é fenômeno de interesse internacional, que vem ganhando espaço na agenda pública e também na produção acadêmica. No intuito de captar como a corrupção vem sendo debatida na produção científica brasileira, foi feita uma revisão assistemática, contemplando também como o assunto é debatido no campo da Saúde. Foi intuito também tecer crítica marxista a concepção mais comum de corrupção. As revisões de literatura demonstraram que houve aumento da produção a partir da década de 2010, sendo maioria no campo do Direito. Os estudos são majoritariamente de âmbito público, sem especificar poder ou esfera de governo e tem maior uso de referências estrangeiras. Há necessidade de ampliação nos estudos, inclusive com leituras críticas ao discurso dominante, como foi o caso do questionamento feito sobre a separação entre “público” e ”privado”, ”político” e ”econômico” da definição de corrupção. Destacou-se uma visão marxista de corrupção enquanto ideologia do Estado Capitalista.

Descritores: Corrupção; Revisão; Crítica marxista.

ENSAYO CRITICO SOBRE LA CORRUPCIóN EN LA PRODUCCIóN CIENTíFICA BRASILEñA

Resumen: La corrupción es un fenómeno de interés internacional, que ganó espacio en la agenda pública y en la producción académica. Para captar cómo la corrupción ha sido debatida en la producción científica brasileña, se realizó una revisión asistemática, contemplando también como se debate el tema en el sector de salud. Se pretendía tejer una crítica marxista a la concepción más utilizada de corrupción. La literatura demostró que ha habido un aumento en la producción sobre corrupción desde 2010, con mayoría en el campo del derecho. Los estudios son en su mayoría de ámbito público, sin especificar poder o esfera de gobierno y tienen mayor uso de referencias extranjeras. Es necesario ampliar los estudios, incluyendo lecturas críticas del discurso dominante, como los cuestionamiento sobre la separación entre ”público” y ”privado”, ”político” y ”económico” en la definición de corrupción. Se destacó una visión marxista de la corrupción como ideología del Estado capitalista.

Descriptores: Corrupción; Revisión; Crítica marxista.

   

CRITICAL ESSAY ABOUT CORRUPTION IN BRAZILIAN SCIENTIFIC PRODUCTION

Abstract: Corruption is a phenomenon of international interest, which has been gaining space in the public agenda and also in academic production. To capture how corruption has been debated in Brazilian scientific production, an unsystematic review was carried out, also covering how these theme appears in health sector. Also intended to make a Marxist critique of the most used conception of corruption. Literature have shown that there has been an increase in production since the 2010s, the majority is in law field. The studies are mostly of public scope, without specifying power or sphere of government and use most of foreign references. There is a need for expansion in studies, including critical readings of the dominant discourse, as was these approach of the separation between ”public” and ”private”, ”political” and ”economic” in the definition of corruption. A Marxist view of corruption was highlighted as an ideology of the Capitalist State.

Descriptors: Corruption; Review; Marxist criticism.

INTRODUçãO

Corrupção é um assunto de interesses e contribuições multidisciplinares, o Direito, a Administração, a Sociologia, a Economia, a Ciência Política1 entre outras disciplinas se utilizam de abordagens paradigmáticas diversas como: econômica, política, cultural, psicológica, filosófica, linguística entre outros no debate do tema.2

A produção científica brasileira sobre corrupção no campo das ciências políticas e sociais tem aumentado nas duas últimas décadas. Porém, até meados dos anos 90 ela aparecia escassa, sendo motivada pelo impulso proporcionado por organizações internacionais como Banco Mundial, a criação da Transparência Internacional, entre outras, que enfocaram na importância do combate à corrupção, inclusive para o desenvolvimento das nações. Após esta indução internacional, em conjunto com os escândalos de corrupção no Brasil, muito midiáticos como ”Mensalão” e ”Lava-Jato”, houve um aumento significativo dessa produção.3

Corrupção, na literatura científica, tende a ser um conceito polissêmico havendo muito pouco consenso sobre ele. Há claramente divergências na interpretação do fenômeno, embora também haja um uso majoritário de definições baseadas em organizações internacionais1 como a Transparência Internacional que interpreta corrupção como “o abuso de poder delegado para ganho privado”.4(77) Esta definição está ligada a uma ideia clássica de corrupção que opõe público e o privado.1,2

No intuito de captar como a corrupção vem sendo debatida na produção científica brasileira, foi feita uma revisão assistemática, onde se destacaram para serem usado nesse ensaio: três revisões de literatura,1-3 e outros dois textos5,6 que demarcam a abordagem da corrupção na literatura. Também foi intuito problematizar alguns conceitos enraizados na definição mais clássica de corrupção, a partir de uma visão marxista. Por último e descriminado está também uma revisão sobre o tema da corrupção no campo da saúde, utilizando a Biblioteca Virtual em Saúde – BVS. Este estudo se justifica a partir do entendimento de que a corrupção é fenômeno de interesse internacional, que vem ganhando espaço na agenda pública e também na produção acadêmica brasileira e que pode se beneficiar de uma discussão crítica sobre o tema.

É interessante ressaltar que esse é um ensaio de pensamento político, entendendo pensamento como uma “capacidade humana de desvelar aparências [, que se faz dentro de uma lógica. E entendendo política como] elemento simbólico e material de expressão do poder, fundamental para construção e mudança social”.7(116-117)

DESENVOLVIMENTO

Uma primeira característica destacada com relação às publicações brasileiras sobre a corrupção, é a maior produção sobre o tema a partir do Direito, como mostra uma revisão de literatura no campo das ciências humanas e sociais aplicadas.3 Essa revisão somada a outra no campo da ciência política,1 ressaltam um aumento importante da produção científica entre 2014e 2017 e associam o fato aos escândalos de corrupção no país, “Mensalão” e/ou “Operação Lava-Jato” e a forma midiática de divulgação desses casos. Também se observa que até 1996 não havia artigos científicos sobre corrupção como tema central, e que a década de 2010 sextuplica o número de publicações quando comparada à de 1990.1

Outro fato histórico destacado e que impulsiona o debate da corrupção é a criação de organismos como a Transparência Internacional (1993) e o envolvimento de instituições multilaterais como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional – FMI e Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE no combate a corrupção.1,5 De tema pouco debatido, a corrupção passa a ser considerada “o maior inibidor do desenvolvimento econômico equitativo”1(127) nas palavras de James Wolfensohn¹, presidente do Banco Mundial à época. A Reunião Geral Anual do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional de 1996 também é um evento marcante, quando figuras de alto escalão das instituições declararam compromisso público no combate a corrupção.1 A partir de então foram criadas recomendações e diretrizes políticas nesse sentido, em especial para países menos desenvolvidos que foram atreladas como condições para apoio internacional e investimentos, sendo essas coerentes com uma ideologia liberal de mercado, que obviamente se pretendia expandir nesses locais.5

Além de serem de maioria no campo do Direito, os estudos que abordam corrupção são predominantemente qualitativos (72%); de âmbito público (87%); sendo a abordagem realizada de forma geral (69%), ou seja, não se referindo a um dos Três Poderes (Executivo, 22%; Legislativo, 5%; e Judiciário, 4%), nem mesmo a uma esfera de governo (nacional, 50%; transnacional, 15%; federal, 17%; estadual, 7%; e municipal, 11%). E essas mesmas características se repetem em estudos no campo específico da administração.3 Percebe-se, dessa forma, que o interesse das pesquisas está na esfera pública, embora o fenômeno também ocorra na esfera privada, podendo reforçar certo senso comum de que o problema se restringe ao Estado, aos partidos e à classe política.1 Também aborda pouco as esferas como Legislativo e Judiciário, sendo que quando abordam o último o fazem não como passível de corrupção, mas em sua atuação em procedimentos legais e julgamento de processos.3

Outra característica da produção acadêmica brasileira é a maior citação de autores estrangeiros, em especial Rose-Ackerman,3 autora que possui um pensamento das causas e consequências da corrupção no campo econômico, com explicação microindividual, que coaduna com uma perspectiva associada à lógica de mercado e às instituições multilaterais destacadas anteriormente.2 Os temas discutidos nos artigos também parecem convergir com a agenda internacional dessas organizações, pois depois de corrupção, termos como ”combate”’, ”compliance”, ”efeito”, são os que mais aparecem em títulos, e palavras chaves.3

O mesmo dado se expressa de maneira diferente a partir de divisão proposta por Vitullo:1 que classifica publicações com enfoque convencional, que seriam os que não questionam o uso do tema da corrupção na disputa política, e um segundo grupo heterodoxo, que tem uma abordagem mais crítica. E a maioria dos estudos se basearam em enfoque convencional (84,9%), dentre eles estão os que vão de acordo com definições e perspectivas das organizações multilaterais, preocupados em oferecer indicadores, métodos de avaliação e combate à corrupção, sem questioná-las. Os quais muitas vezes também são estudos que não conseguem se distanciar do modo como a mídia aborda o tema.1

Como evidenciado anteriormente a corrupção é abordada através de diferentes paradigmas e quatro deles serão comentados: o econômico, o cultural, o neoinstitucionalista e por fim o herotoxo ou chamado aqui de crítico. Segundo Vannucci,6 os três primeiros são diferentes embora não irreconciliáveis. No primeiro, corrupção é uma escolha individual baseada no cálculo de custo-benefício desse ato, comportamento chamado de rent-seeking ou self-seeking. Já o culturalismo compreende que a corrupção está intrinsecamente ligada com questões morais, éticas, normativas da cultura de dada sociedade, dessa forma a corrupção estaria mais ou menos propícia à cultura. Ainda, a neoinstitucionalista dá enfoque nos mecanismos de relações corruptas, bem como o papel que as instituições têm em forjar as crenças dos atores sociais sobre a viabilidade da corrupção. Esta última conquistou hegemonia nos artigos científicos brasileiros e mesmo de outros países, pois, segundo Vitullo,1 é a leitura que vem sendo impulsionada pelos organismos internacionais que pautam, desde os anos 1990, a luta contra a corrupção.1

Com relação ao paradigma econômico, uma das principais autoras e, já mencionada antes por ser muito citada nos estudos brasileiros, é Rose-Ackerman.6 Em sua teoria, a corrupção é um produto de uma escolha racional individual, que tem consequências e influências nas organizações. Para a autora6 são avaliados os riscos de punições bem como a gravidade dessas versus as recompensas em função dos atos corruptos que podem ser financeiras, mas também podem ser de outra natureza, como conquista de poder e outros. Então esta teoria parte do pressuposto que a percepção do indivíduo é eminentemente racional e que os indivíduos estão sempre em busca de seus interesses num mundo de poucos recursos. Corrupção é definida como uma infração de normas/regras, formais ou informais dentro de uma relação entre o principal/trustera e o agente na busca pelos interesses do primeiro.6

a  Principal/truster é alguém que delega poder de decisão a um agente no sentido de buscar e realizar os interesses do primeiro.

Na perspectiva culturalista os padrões de ética importam quando se trata de corrupção. Nesse paradigma existe um olhar para tradições culturais, normas, valores interiorizados pelos indivíduos, os quais os moldam moralmente e isso impacta em suas decisões quanto a se engajar ou não em atividades corruptas. Existe a crença que a diferença entre níveis de corrupção em determinados países se deve a essas questões culturais, e desse ponto de vista pode ser problemático, pois cria uma hierarquia implícita entre sociedades, geralmente associando corrupção a países que não incorporaram a cultura ocidental, sua visão de modernidade e de desenvolvimento.5 Neste sentido é que alguns estudos questionam a cultura individualista que exalta ambição no neoliberalismo, defendendo que essa pode favorecer uma tendência a corrupção.6

No Brasil estudos dessa natureza por vezes associam a colonização portuguesa a práticas clientelistas e patrimonialistas e por fim à corrupção.5 Na revisão de Macedo e Valadares,3 apenas dois autores brasileiros aparecem na lista de mais citados, um deles é José Murilo de Carvalho3, que trata da relação do brasileiro com a lei e a corrupção, trazendo um entendimento da questão a partir de questões culturais e políticas brasileiras ao longo da história. Isto demonstra o uso e penetrabilidade que a abordagem culturalista ainda tem nos estudos brasileiros.

O paradigma neoinstitucionalista, por sua vez, investiga as relações corruptas, suas normas e sanções informais. Nessa abordagem existem alguns mecanismos que operam dentro de organizações complexas e sistemas corruptos, como por exemplo, a interiorização das normas informais (tem relação com que ela chama de first-party control”), sanções que um agente corrupto pode aplicar a outro, retirando-o benefícios, ou mesmo por formas violentas (”second-party control”).6 O primeiro autor brasileiro mais citado nos estudos nacionais é Fernando Filgueiras,3 o qual tem abordado o tema nessa perspectiva neoinstitucionalista segundo Macedo e Valadares.3

Já a abordagem denominada por Vitullo1 heterodoxa trouxe alguns questionamentos trazidos por artigos científicos com relação ao tema da corrupção na disputa política. Por exemplo, o uso da corrupção no sentido da criminalização da política e demonização do Estado, bem como estigmatização de partidos populares. Por muitas vezes tanto a mídia quanto estudos explicitam a corrupção apenas ao âmbito público, enfocando geralmente a classe política, em especial em partidos populares, o que serve justamente para descrédito da política. É neste caminho que a corrupção ficou muito associada a partidos populares como, por exemplo, no caso do Partido dos Trabalhadores – PT no Brasil. Há também a crítica à tomada da corrupção como o principal problema de uma nação, portanto encobrindo problemas estruturais do modo de produção, o que o autor classificou como ”manipulação populista da corrupção tida como fonte de todos os males do país”1(122) e ”estreitamento do debate público e naturalização da ordem social”.1(120)

A crítica nos estudos aponta para um ”preconceito contra as classes populares e exaltação do suposto virtuosismo das classes médias”,1(121) que seria uma ideia de que por terem menos condições financeiras, as classes populares estão mais suscetíveis a aceitar a corrupção, enquanto a classe média sustenta um discurso moralista anticorrupção. Também há um questionamento quanto ao papel do Judiciário e da grande mídia, que por vezes se passa por instâncias suprapolíticas, embora em realidade estejam envoltos a uma gama de interesses políticos e financeiros.1

Outro debate muito importante tem relação ao uso do combate à corrupção como estratégia para implantação de agenda neoliberal, desregulamentadora e privatizadora. Pois, segundo os critérios de organizações internacionais como o Banco Mundial, o mercado, a limitação de competências estatais com a privatização, a desregulamentação são as ferramentas poderosas para controlar a corrupção. Autores1 fazem a crítica a essa “reafirmação do neoliberalismo como senso comum dominante e exaltação do mercado”,1(121) bem como o “protagonismo das instituições internacionais na propagação da anticorrupção”.1(121) O interesse dessas organizações é econômico ao se utilizar da pauta anticorrupção para ocultar esses mesmos critérios culturais no âmbito da empresa privada. Sob a égide da competência capitalista, se justificaria comportamentos corruptos no âmbito privado como a rapina, o tráfico de influências e o financiamento privado de organismos públicos.1 E esse é um claro exemplo de como o político não está dissociado com econômico e como a distinção delimitada entre público e privado obscurecem elementos analíticos importantes.

No Capitalismo, e principalmente a partir dos economistas clássicos, há uma separação conceitual entre o econômico e o político. Porém, essa ideia que dissocia o econômico do político é enganosa, e se presta como mecanismo de defesa da ordem social do capital. Marx justamente elucida a face política da economia, pensa o capital como uma relação social em que a produção capitalista existe devido à luta de classes e a intervenção coercitiva do Estado na expropriação do produtor. O Estado foi e é essencial nesse processo que é base do capitalismo, e dessa forma fica evidente que a esfera econômica se apoia na política.8 E, ainda, que atuação do Estado não seria suprapolítica ou acima da divisão de classes, mas é um instrumento das classes dominantes para perpetuação do poder instituído nessa sociabilidade.

Sobre essa fragmentação Borón9 adverte:

Porque para o marxismo nenhum aspecto ou dimensão da realidade social pode teorizar-se à margem –ou com independência– da totalidade na qual aquele se constitui. É impossível teorizar sobre “a política”, como o fazem a ciência política e o saber convencional das ciências sociais, assumindo que aquela existe em uma espécie de limbo posto a salvo das prosaicas realidades da vida econômica. A “sociedade”, por sua vez, é uma enganosa abstração sem ter em conta o fundamento material sobre o qual se apóia. A “cultura” entendida como a ideologia, o discurso, a linguagem, as tradições e mentalidades, os valores e o “sentido comum” somente pode sustentar-se graças a sua complexa articulação com a sociedade, a economia e a política.9(196, destaques do autor)

A separação vai ser possível historicamente porque, por primeira vez, nesse sistema de produção onde os proprietários privados, donos da produção, não têm atrelado a esta função, outra social e pública. Em sistemas pré-capitalistas, quem detinha o poder econômico, também detinha o político, jurídico e militar, as relações eram de dependência e esses grupos tinham obrigação de, por exemplo, cobrar impostos, fazer a proteção individual, entre outros. No Capitalismo se desenvolve uma esfera de poder dedicada a fins privados (poder de classe) e as funções jurídicas, sociais, incluindo o aparato coercitivo são do Estado.8 Ou seja, uma separação também entre o privado e o público.

Para agregar a essas reflexões críticas, vale citar o autor marxista Armando Boito Junior,10 argumenta justamente que “a distinção entre o público e o privado é uma criação histórica, datada e ideológica do Estado capitalista”.10(10) Em sua perspectiva de análise, a corrupção seria “uma criação ideológica (uma representação inconsciente, deformada e interessada da realidade) do Estado Capitalista.”10(13) Deformada e interessada, porque ajuda a reafirmar essa separação ainda que apenas formal entre público e privado, e ajudando a encobrir o caráter de classe do Estado capitalista.10 O autor10 sintetiza seu pensamento:

Portanto, afirmar que a corrupção tem raízes sociais e é parte constitutiva do Estado capitalista pode ser um bom começo, mas está longe de oferecer aos trabalhadores um conhecimento científico que possa guiar uma crítica socialista à corrupção. Essa só começa quando se tem claro que a própria ideia de corrupção é uma figura ideológica burguesa e serve, em primeiro lugar, para encobrir o fato de que as instituições, os equipamentos, os bens e os recursos humanos do Estado capitalista não são “públicos”, mas sim recursos a serviço dos interesses gerais da classe dominante.10(15, destaque do autor)

Boito Júnior10 em seu texto também vai discorrer sobre como cada classe social se relaciona com a corrupção, ele defende que a única classe unívoca e que defende a bandeira contra a corrupção é a classe média. Primeiramente, a burguesia tem uma relação dita ambivalente, porque gostaria pode usar a corrupção numa disputa com frações de sua classe, mas ao mesmo tempo teme que a corrupção possa vir a revelar a verdadeira natureza do Estado. Já a classe operária combate a corrupção, mas como parte da problemática da desigualdade na distribuição das riquezas que a assola. Para o operariado a luta contra a corrupção não está no centro de suas pautas, questões como: “a concentração da propriedade, a concentração da riqueza, a exploração do trabalho e a própria condição privilegiada dos burocratas e dos políticos burgueses profissionais”10(16) é que são percebidas como danosas a classe.

Entretanto, é a classe média que mais se identifica com a pauta anticorrupção. Boito Júnior10 explica que isso se dá devido a sua condição econômica e a ideologia meritocrática. Nesta ideologia as diferenças sociais são concebidas “como resultado das diferenças individuais de dons e méritos de cada um” 10(17), ela “apresenta uma visão deformada da desigualdade social e deformada de tal maneira que justifica vantagens salariais e sociais dos trabalhadores de classe média”10(17). Segundo o autor, a solução dada por eles seria reforma jurídica e moral.

O conceito de classe social é bastante caro ao marxismo, por isso mesmo faz-se interessante ressaltá-lo brevemente. Galvão,11 destaca duas concepções, de Poulantzas e Bensaïd, sendo que o primeiro entende classe como principalmente relacionada ao lugar que o conjunto de agentes sociais ocupa no processo de produção, sem entretanto, descartar a importância de aspectos políticos e ideológicos, para além dos econômicos em sua concepção. Já o segundo a concebe enquanto uma relação, por vezes conflitual com outras classes. A autora11 relembra a divisão da classe em si que seria sua inserção nas relações produtivas e classe para si, que é subjetivo e diz do se reconhecimento da classe em si, de sua inserção na produção. Com relação, especificamente a classe média, que se destacou mais acima como defensora do combate a corrupção, Galvão11 vai explicitar que sua definição está mais atrelada a ideologia do que a base material, sendo justamente a ideologia meritocrática sua definidora.11

Pensando então de maneira crítica, político e econômico não estão dissociados, bem como a separação entre o que é público e privado é apenas formal/artificial, pois ocorre apenas em termos jurídicos. Dessa forma, não convém nessa perspectiva definir corrupção a partir de um confronto entre interesses públicos e privados, definição comumente utilizada, aqui refutada.

Por fim, as três revisões de literatura utilizadas1-3 apontam para lacunas e a necessidade de mais estudos sobre a temática da corrupção tanto na ciência política, quanto nas ciências sociais e no campo da administração. Apontam a necessidade de ampliar a temática para pesquisas no âmbito privado; com esferas e poderes específicos, com metodologia quantitativa,3 abordagens que ultrapassem a ideia clássica de que corrupção é um fenômeno de entrechoque entre público e privado;2 leituras críticas ao discurso dominante, que questionem o uso da corrupção ou anticorrupção na disputa política.1

A CORRUPçãO NOS ESTUDOS NA áREA DA SAúDE

O tema da corrupção ainda necessita de mais estudos conforme afirmado anteriormente. Quando se trata da corrupção na saúde, o campo de estudos é ainda mais escasso. Em 2021 no Brasil foi publicado um livro intitulado “Corrupção e saúde”,4 organizado pela iniciativa da Transparência Internacional no Brasil e da Fundação Konrad Adenauer, no sentido de produzir reflexões que durassem mais que o período da pandemia, no qual vieram à tona escândalos de corrupção no setor. Ligia Bahia4 em um capítulo desse livro concorda que o tema é pouco debatido e expõe que internacionalmente os trabalhos costumam atribuir corrupção: “aos maus governos, à debilidade das instituições públicas, e aos problemas de governança”,4(73-74) frequentemente em países menos desenvolvidos, condizente com a perspectiva defendida pelas organizações internacionais e com os achados das revisões de literatura.1-3

Isso corrobora com os poucos resultados obtidos em uma primeira aproximação com a literatura na segunda metade de 2021 em que utilizou-se os descritores “corrupção” e “saúde pública” com conector “and” na base de dados BVS. Foram encontrados apenas 22 resultados e três deles foram lidos dada a pertinência do assunto. Todos tomaram corrupção como o uso do poder público para interesses privados, uma perspectiva comumente utilizada e próxima a definição dada pelas instituições unilaterais.

Uma segunda forma de abordar corrupção que se repetiu na literatura tem relação às tentativas de classificar e demarcar tipologias. Mujica, Zevallos e Prado12 destacaram algumas tipologias (conforme a natureza penal) e modalidades (conforme os casos levantados em pesquisa) de corrupção que se distribuem diferentemente a depender dos níveis do aparato burocrático do sistema de saúde. Para estes autores, o suborno e a colusão são os tipos de práticas de corrupção que mais se repetem em diferentes níveis dos sistemas de saúde. Braga no livro “Saúde e Corrupção” (2021)13 também menciona que documentos de instituições internacionais no tema como da European Comission e do Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento – PNUD tem tipologias bem semelhantes e expõe essas do PNUD:

i) suborno para a prestação de serviços médicos;

ii) corrupção nas compras;

iii) conflito de interesses;

iv) uso indevido de posições de alto nível;

v) reivindicações indevidas de reembolso;

vi) fraude e apropriação indevida de medicamentos e dispositivos médicos.13(105)

Ainda com relação à temática, Suarez-Rozo et al.14 e Mujica, Zevallos e Prado12 mostraram uma preocupação com o tema no campo da saúde. O primeiro estudo aborda a corrupção como uma das causas da crise para o sistema de saúde colombiano e o segundo estudo foi base para elaboração de um plano de luta contra corrupção no ministério da Saúde no Peru. Bahia destaca que no Brasil não existe legislação voltada para o combate da corrupção na saúde.4

Mas, embora não se tenha uma legislação específica, existem dentro do sistema de saúde brasileiro (Sistema Único de Saúde – SUS), diversos mecanismos que servem ao seu controle. Um deles é o próprio controle social previsto nas leis 8.08015 e 8.14216 que regulamentam o SUS, organizando-o através de conselhos de saúde: Conselho Nacional, Conselhos Estaduais, Municipais, Locais que tem como uma das finalidades a fiscalização da movimentação de recursos, além das Conferências de Saúde (Nacionais, Estaduais e Municipais), Comissão Bipartite e Tripartite. Além disso, existe a atuação dos Tribunais de Contas da União (TCU) e dos Estados (TCE) que, no setor da saúde, realizam auditorias, levantamentos sobre gastos, entre outros. Portanto, no arcabouço do sistema existem estruturas que fazem o controle independente de uma diretriz direcionada especificamente ao combate à corrupção.

Outro artigo encontrado na BVS foi o de Lopes e Toyoshima,17 estudo quantitativo no qual demonstraram de duas maneiras que há impacto da corrupção na eficiência de políticas públicas de educação e de saúde. Eles observaram que o aumento de 10% na proxy de corrupção conduz a uma queda de, aproximadamente, 0,3% no escore de eficiência estadual destas políticas.17 Não negando o impacto negativo da corrupção, porém, convém advertir que também no campo da saúde se faz o uso do tema na disputa política-econômica, muitas vezes sendo utilizado para justificar a falta de recursos no SUS. Enquanto o que está comprovado é que há um subfinanciamento do sistema, dentre outros motivos devido a Desregulamentação das Receitas da União – DRU retirando recursos da Seguridade Social, a renúncia fiscal de atividades de saúde o que gera perda de arrecadação para o SUS, só para citar alguns deles. E a partir da Emenda Constitucional 95, que limita os gastos públicos por 20 anos (2017 a 2036), o SUS passa a ser desfinanciado.18

Dessa forma, infere-se que a corrupção na saúde pública, contraditoriamente, é um assunto ainda pouco explorado na academia embora haja preocupação real ao redor do tema e impacto nas políticas públicas de saúde juntamente com uso político-econômico da questão

CONSIDERAçõES FINAIS

As revisões da literatura científica brasileira sobre corrupção demonstraram que houve aumento da produção a partir da década de 2010, que a maioria dos estudos sobre corrupção se situam no campo do Direito, ainda que esse seja um tema multidisciplinar, recebendo contribuições da Economia, Administração, Ciência Política, Sociologia, entre outros. Os estudos são majoritariamente de âmbito público, com abordagem geral, sem especificar poder ou esfera de governo e tem maior uso de referências estrangeiras.1-3

Foram destacadas quatro abordagens da corrupção: econômica, culturalista, neoinstitucionalista, e heterodoxa, sendo que a neoinstitucionalista é hegemônica nos estudos. Conforme a abordagem econômica, de cariz neoclássica, a corrupção é uma escolha individual baseada no cálculo de custo-benefício desse ato, comportamento chamado de rent-seekingb ou self-seeking. Já na abordagem culturalista a corrupção está intrinsecamente ligada com questões morais, éticas, normativas da cultura de dada sociedade, neste sentido a ideia de um “deve ser”, ou seja, uma forma de moralizar o comportamento individual seria a saída para se combater a cultura da corrupção. Já a abordagem neoinstitucionalista dá enfoque em mecanismos de relações corruptas, bem como o papel que as instituições têm nas crenças dos atores sociais sobre a viabilidade ou não das práticas corruptas e sua sanção legal.5 Por último, o que ficou chamado por abordagem heterodoxa, ou ainda, como uma perspectiva crítica sobre a corrupção foram estudos que questionaram o uso da corrupção na disputa política. Esses, não à toa, são minoria.1

b  Um exemplo de rent-seeking (busca por renda) é quando uma empresa faz lobby junto ao governo para doações, subsídios ou proteção tarifária. A busca por rent-seeking vem de várias formas, de lobby ou doação de fundos. Por exemplo, se você doar dinheiro, mas não os explicitar em seus impostos, isso pode ser considerado uma forma de rent-seeking.

Alguns dos tópicos destacados por Vitullo1 como fonte de crítica nesses artigos heterodoxos foram: criminalização da política e demonização do Estado, estigmatização de partidos populares vinculados a corrupção, manipulação populista da corrupção tida como fonte de todos os males do país, ”reafirmação do neoliberalismo como senso comum dominante e exaltação do mercado”,1(121) bem como o ”protagonismo das instituições internacionais na propagação da anticorrupção”.1(121)

Nesse ensaio a crítica se deu principalmente à definição mais comumente usada de corrupção que coloca em confronto uma noção própria sobre ”o público” e ”o privado” que parte de pressupostos, no mínimo, questionáveis, como por exemplo: “o abuso de poder delegado para ganho privado”.5(77) Numa perspectiva crítica marxista esta definição já parece não satisfazer, uma vez que, os limites bem demarcados entre público e privado, político e econômico são questionados nessa abordagem. Para além desse questionamento, destacou-se um autor marxista Armando Boito Junior10 que pensa a corrupção enquanto uma ideologia do Estado Capitalista e percebe a classe média como maior defensora porta voz do discurso anticorrupção. Para esse entendimento explicitou-se a compreensão de classe no marxismo e mais especificamente da classe média, através da autora Andreia Galvão11.

A abordagem do tema sobre corrupção na saúde condiz com as concepções e perspectivas majoritárias impulsionadas pelos organismos de financiamento internacionais. Ainda que haja uma preocupação em relação ao tema, este é relativamente pouco estudado na saúde. Por fim, todas as revisões da literatura compiladas, apontaram para a necessidade de ampliação nos estudos sobre corrupção na academia brasileira, favorecendo estudos, por exemplo, no âmbito privado; com esferas e poderes específicos, com metodologia quantitativa;3 e com leituras críticas ao discurso dominante, que questionem o uso da corrupção ou anticorrupção na disputa política,1 o que justifica esse ensaio.

REFERêNCIAS

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