Crit Revolucionária, 2024;4:e006
Artigo original
https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2024.v4.36
i Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Departamento de Psicobiologia. São Paulo, SP, Brasil.
Autor de correspondência: Guilherme Luiz Fernandes guilhermelf7@gmail.com
Recebido: 18 jul 2023
Revisado: 02 set 2023
Aprovado: 14 out 2024
Financimento: CNPq #141445/2021-1 e Capes Código 001
https://doi.org/10.14295/2764-49792RC_CR.v4.36
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Pesquisas epidemiológicas mostram que as últimas décadas foram marcadas por prevalência elevada de distúrbios e problemas de sono, como a duração inadequada de sono, insônia e sonolência excessiva diurna. Entretanto, as estratégias empregadas para o combate dessa “epidemia” foram largamente ineficazes, especialmente em um âmbito populacional. Levanta-se a hipótese que uma das principais medidas elaboradas para conter essa crise, a higiene do sono, não leva em conta as mediações históricas, sociais, políticas e econômicas que incidem e determinam o comportamento de dormir. Esse ensaio busca resgatar, por meio de revisão narrativa, etapas importantes no desenvolvimento do modo de produção capitalista e seus efeitos na inserção do sono na sociedade. Por fim, propõe-se um diálogo de conceito de saúde que leve em consideração as dinâmicas que geram os conflitos, que por consequência, pioram o sono da população.
Descritores: Sono; Saúde do sono; Jornada de trabalho; Neoliberalismo.
UNA VISIóN CRíTICA DE LA SALUD DEL SUEñOResumen: La investigación epidemiológica muestra que las últimas décadas han estado marcadas por una alta prevalencia de trastornos y problemas del sueño, como sueño de duración inadecuada, insomnio y somnolencia diurna excesiva. Sin embargo, las estrategias empleadas para combatir esta “epidemia” fueron en gran medida ineficaces, especialmente a nivel de la población. Se plantea la hipótesis de que una de las principales medidas diseñadas para contener esta crisis, la higiene del sueño no tiene en cuenta las mediaciones históricas, sociales, políticas y económicas que afectan y determinan el comportamiento del sueño. Este ensayo busca rescatar, a través de una revisión narrativa, algunas etapas importantes en el desarrollo del modo de producción capitalista y sus efectos en la inserción del sueño en la sociedad. Finalmente, se propone un diálogo sobre el concepto de salud que tenga en cuenta las dinámicas que generan conflictos, que, en consecuencia, empeoran el sueño de la población. Descriptores: Sueño; Salud del sueño; Jornada laboral; Neoliberalismo. |
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A CRITICAL OUTLOOK AT SLEEP HEALTHAbstract: Epidemiological research shows that the last decades have been marked by a high prevalence of sleep disorders and problems, such as inadequate sleep duration, insomnia, and excessive daytime sleepiness. However, the strategies employed to combat this “epidemic” were largely ineffective, especially at a population level. It is hypothesized that one of the main measures designed to contain this crisis, sleep hygiene, does not take into account the historical, social, political, and economic mediations that affect and determine sleeping behavior. This essay seeks to analyze, through a narrative review, important stages in the development of the capitalist way of production and its effects on the societal insertion of sleep. Finally, it is proposed a dialogue on the concept of health that considers the dynamics that generate conflicts, which, consequently, worsen the population's sleep. Descriptors: Sleep; Sleep health; Working day; Neoliberalism. |
Desde 1980, levantamentos epidemiológicos populacionais identificam prevalência elevada de sono de má qualidade, queixas e distúrbios de sono. Dentre as estratégias de enfrentamento elaboradas, foi concebida a noção de higiene do sono, com recomendações baseadas em evidências que informam condutas e comportamentos para que os indivíduos incorporem práticas para um sono mais saudável. Apesar da constante revisão e aprimoramento dessas recomendações, não se observa um impacto relevante da higiene do sono na prevenção ou redução da prevalência de distúrbios e problemas de sono. Desenvolve-se aqui a hipótese de que isso se deve a uma visão da saúde do sono biologizante e centrada no indivíduo, prescindindo da localização sócio-histórica que o sono apresenta atualmente. Pesquisas acerca do uso do tempo1 mostram que a duração de sono se encontra em função da duração da vigília, a qual é eminentemente dedicada ao trabalho. As ideologias e necessidades materiais, no momento neoliberal do capitalismo, minam o tempo de repouso da classe trabalhadora, e por consequência, o tempo para dormir. A configuração desses elementos no Brasil, país de capitalismo dependente e com forte presença da precarização do trabalho, realiza mediações complexas com o tempo de dormir do indivíduo.
Marx2 descreveu que o processo de consolidação e expansão do capital transpôs barreiras geográficas, técnicas e culturais, incluindo o esmaecimento dos limites entre trabalho diurno e noturno. Ainda, a intensa expropriação de mais-valia absoluta característica desse período de consolidação do capitalismo não só evidenciou os limites do sono humano, mas também a relação entre a luta de classes, jornada de trabalho e horas de repouso. A tendência de expansão contínua do capital se desenvolve numa nova etapa com a crise do capitalismo dos anos 1970–80, configurando a chamada “sociedade 24/7”3 e estabelecendo novas formas, inclusive ideológicas, de subjugação do tempo de sono e de repouso ao tempo de trabalho.
O objetivo desse ensaio é traçar um panorama do desenvolvimento histórico-social do comportamento de dormir nas sociedades ocidentais, especialmente a partir do século XIX, combinando pesquisas biomédicas e estudos marxistas, de maneira a construir uma alternativa crítica e radical da saúde do sono.
A relevância dos chamados “comportamentos de saúde” foi amplamente destacada a partir dos anos 2000, com base no acúmulo de evidências que apontam a influência de comportamentos como prática de atividades físicas, alimentação e o uso de tabaco e álcool sobre a mortalidade.4 Nesse contexto, a emergente literatura sobre o sono também estabeleceu relação entre o ato de dormir, mortalidade5,6 e a saúde em geral.6 De um ponto de vista da saúde coletiva, há outro aspecto fundamental na relação entre saúde e sono, que consiste nas elevadas taxas de prevalência de distúrbios e problemas de sono,7,8 além de significativa carga de doença9,10 para a população. Especificamente com relação a mortalidade, a duração de sono fora do recomendado (meta-análises incluem estudos com seguimento de um até 30 anos) resultou em risco aumentado de 10 a 23% na mortalidade geral.5,6 Dentre as consequências para a saúde geral, é possível elencar aumento no risco de diabetes mellitus tipo 2, eventos cardiovasculares, obesidade e hipertensão, dentre outros.6
É possível constatar que, atualmente, uma parcela significativa da população mundial é acometida por distúrbios ou problemas de sono.11 Entre os problemas de sono, podemos elencar má qualidade de sono, curta ou longa duração de sono (já que ambos estão associados com desfechos negativos à saúde), queixas ou sintomas como sonolência excessiva diurna, ronco, sono leve, dentre outros. Os distúrbios de sono mais comuns incluem a apneia obstrutiva do sono (AOS) e a insônia crônica.12,13
A percepção de que se dorme cada vez menos na sociedade moderna motivou uma série de investigações, de maneira a esclarecer a dimensão do problema, seus impactos na saúde e mecanismos fisiológicos. O desenvolvimento das pesquisas também levantou dados acerca dos efeitos negativos da longa duração de sono, mostrando que há um tempo total de sono ideal para cada indivíduo, nem restrito, nem excessivo. Apesar da variabilidade da literatura acerca dos limiares de curta ou longa duração de sono, parte significativa do corpus especializado, inclusive estudos brasileiros, consideram como curta a duração de menos de seis horas, e como longa duração mais de oito horas. Levantamentos epidemiológicos em diferentes países encontraram prevalências de curta duração de sono de 30%14 nos Estados Unidos da América, 11,6% no Irã15 e 35,9% na França.16 Um estudo conduzido em São Paulo avaliou a duração de sono medida objetivamentea, e encontrou taxas de 27,2% para curta de duração de sono e 6,3% de indivíduos dormiram mais de oito horas, indicando que aproximadamente um terço da população da cidade apresentou uma duração de sono fora do recomendado.17
a Foram utilizados actígrafos, um tipo de acelerômetro, para fazer a inferência da duração de sono dos indivíduos. Portanto, esse estudo é um retrato mais acurado da situação concreta do sono na população estudada, principalmente em comparação com o uso de questionários, que introduzem um viés significativo devido ao autorrelato da duração de sono.
Dentre as queixas, sintomas e problemas de sono, destacam-se duas, a sonolência excessiva diurna e a má qualidade de sono. A sonolência excessiva diurna pode ser definida como a incapacidade de se manter alerta durante a vigília diurna, resultando em ataques do sono ou cochilos que não podem ser resistidos.18 Apesar de sua análise variar significativamente em função da metodologia utilizada, a prevalência de sonolência excessiva diurna varia de 2,5 a 33%.19 Esse sintoma pode estar relacionado ou não a um distúrbio do sono, e está associado com queda do desempenho psicomotor, rendimento acadêmico e no trabalho, além de maior risco de acidentes de trabalho e trânsito.19,20 Já a má qualidade de sono é um termo amplo que abrange uma série de problemas como sono não reparador, cansaço ao acordar, dificuldade em dormir e despertares excessivos, sintomas frequentemente agregados em questionários como o Índice de Qualidade de Sono de Pittsburgh.21 Um estudo nacional recente conduzido no Brasil com 2.635 pessoas, observou que 65,5% dos participantes relataram má qualidade de sono.22
Com relação aos distúrbios de sono, o Estudo Epidemiológico do Sono, realizado na cidade de São Paulo em 2007, observou prevalência de 32,4% para AOS12 e 15% para insônia crônica.13 Estima-se que aproximadamente 936 milhões de indivíduos sofrem de AOS no mundo,10 enquanto cerca de 10% da população sofre de insônia crônica.23 Vale notar que a AOS está associada ao desenvolvimento de sonolência excessiva, aumento no risco de eventos cardiovasculares e metabólicos, enquanto a insônia crônica pode estar relacionada a ansiedade, depressão e consequências cardiovasculares.23 Tendo em vista os dados apresentados, podemos compreender a dimensão global desse problema de saúde pública, uma vez que atinge milhões de pessoas em diversos países.
O panorama da prevalência de problemas e distúrbios de sono é grave e sua característica global dá a perspectiva de ser um fenômeno inescapável. Entretanto, a priorização da vigília em detrimento do sono, especialmente para que se possa trabalhar, consumir ou ter tempo de lazer e repouso, é uma forma historicamente localizada. Estudos em grupos humanos distantes do sistema capitalista, no espaço e no tempo, demonstram algumas diferenças importantes com relação ao sono.
A duração de sono na atualidade foi tema de controvérsia no campo da epidemiologia do sono, principalmente no quesito da hipótese de que houve uma diminuição desse parâmetro devido a vida moderna (definida de maneiras variadas, como o cotidiano de sociedades industriais, difusão e uso da luz elétrica, televisão e aparelhos eletrônicos). Por essa razão, pesquisas com metodologias e desenhos experimentais diversos foram realizados, incluindo a investigação de povos isolados ou parcialmente integrados, as quais apresentam resultados interessantes para a presente análise.
Um estudo publicado em 2015 analisou três etnias na Tanzânia, Bolívia e Namíbia24 vivendo principalmente como caçadores-coletores. Por meio do uso de actígrafos, foi encontrado uma duração de sono similar (aproximadamente 6–7h) às pesquisas feitas em ambientes urbanos e foi observado uma forte sincronia dos horários de dormir e acordar com a flutuação da temperatura ambiental, sendo que o despertar coincidiu com o nascer do sol. Inclusive, foi constatada variação sazonal da duração do sono entre inverno e verão. No entanto, o achado mais surpreendente foi da inexistência de uma palavra para insônia nos grupos investigados. Ainda, a prevalência de insônia crônica, após o conceito ter sido explicado, foi de aproximadamente 1,5 a 2,5%.24 Outras pesquisas avaliaram o uso da luz elétrica, frequentemente culpabilizada pelos horários tardios ou diminuição da duração de sono. Um estudo da etnia Qom, na Argentina, comparou comunidades caçadoras-coletoras com e sem acesso à luz elétrica.25 O resultado foi de que os indivíduos pertencentes à comunidade com acesso a luz elétrica tiveram duração de sono menor (aproximadamente 40 minutos a menos) se comparados aos expostos apenas à luz natural. Essa diminuição foi associada ao horário de dormir mais tardio da comunidade com eletricidade.25 Dados similares foram encontrados em outra pesquisa com horticultores melanésios.26 Esses resultados mostram que o padrão de sono nessas comunidades segue uma forte sincronia com a natureza, e que os distúrbios do sono afetam uma proporção muito menor dessas populações, em comparação às sociedades industriais. O uso difuso da luz elétrica pode ser um fator prejudicial ao sono.
O historiador Robert Ekirch, no seu livro “At day’s close” (No fim do dia, tradução livre) capítulo 12-“Sleep We Have Lost” (O sono que perdemos), explora uma dinâmica de sono na Europa entre os séculos XIII e XVIII.27 Elaborando um estudo histórico fundamentado em depoimentos criminais e judiciais, obras literárias e médicas da época, orações e meditações religiosas, dentre outras fontes, Ekirch observou uma organização do sono em dois períodos de aproximadamente 4h separados por um período de vigília. Entre o primeiro e o segundo sono, os indivíduos realizavam ou não uma série de atividades, como trabalho doméstico, orações, relações sexuais, contemplar suas vidas ou simplesmente voltar a dormir. Essa maneira de dormir, junto com outras práticas como a da interpretação oracular dos sonhos, passam a ser esquecidas ou transformadas ao longo do século XIX.27 Nesse sentido, entende-se que o comportamento tem um importante aspecto social e aprendido e não simplesmente inerente ou unicamente biológico, por mais essencial à vida que seja, como é o caso do sono. Compreender as mediações econômicas e sociais que incidem sobre os comportamentos de saúde é fundamental para que possamos promovê-los com eficácia.
O resgate feito nos parágrafos acima teve como objetivo questionar a naturalidade e a escala com que a sociedade atual sofre com os problemas e distúrbios de sono. O que tem se experimentado não é inerente do ser humano. Em vista dessas evidências, o questionamento seguinte provavelmente seria “A vida moderna é equivalente a ou favorece o surgimento de uma epidemia de maus dormidores?”. Trataremos disso a seguir.
As pesquisas sobre o uso do tempo trazem uma perspectiva privilegiada para a análise de alocação deste no cotidiano dos indivíduos. Agregando dados da American Time Use Survey de 2003 a 2005, totalizando 47.731 participantes, Basner (2007)1 demonstrou que, na população estadunidense, o tempo de sono é trocado principalmente pelo trabalho.1 Especificamente, demonstrou-se que os curtos dormidores (separados em grupos de acordo com a duração de sono, de 7,5h a 4,5h de sono) tiveram coeficientes de regressão crescentes com relação ao desfecho tempo de trabalho, e longos dormidores (de 9,5h a >11,5h de sono) apresentaram coeficientes inversamente proporcionais para o tempo de trabalho, configurando uma relação forte e linear entre o tempo alocado para dormir e trabalhar. Em segundo e terceiro lugar, as atividades que mais tomaram tempo do sono foram comuta (viagens trabalho-domicílio) e socialização/entretenimento.1 Em outras palavras, os indivíduos que dormiram pouco o fizeram por conta de seu trabalho, e o contrário também foi verdadeiro. A sincronia entre sono e trabalho contrasta com a sincronia com as pistas ambientais observadas nos grupos de caçadores-coletores. Frente a relação dialética entre vigília-trabalho e sono-repouso, elementos do processo de transformação da inserção do sono no cotidiano podem ser verificados nas obras e método materialista histórico-dialético de Marx e Engels.2,28
A subjugação do sono ao trabalho pôde ser realizada por meio de processos como a proletarização dos indivíduos, catalisada pela privatização dos meios de produção, e a tendência expansionista do capital em remover ou contornar todo e qualquer entrave à sua reprodução além de absorver tanto trabalho vivo quanto possível de maneira a maximizar a expropriação de trabalho excedente e gerar o maior valor possível.
O primeiro elemento diz respeito ao processo de privatização dos meios de produção. Na Inglaterra, tomou a forma dos cercamentos e propriedade privada das indústrias nascentes.29 Em paralelo ao aumento da demanda por bens têxteis no esteio das inovações nas técnicas de fabricação desses produtos na segunda metade do século XVIII, a população rural inglesa foi gradualmente sendo expropriada, por meio de Atos do Parlamento, dos meios da produção do seu sustento, da pequena propriedade e das terras comunais. O resultado desse processo foi um contingente de indivíduos partindo do campo e dirigindo-se às cidades com apenas sua força de trabalho como meio de sobrevivência.30 A venda de força de trabalho como único meio de sobrevivência, inserido no modo de produção capitalista, faz, na prática, com que se prescinda, seja por necessidade percebida, ou por coerção forçada do empregador, das outras necessidades humanas, inclusive o sono.
No Volume I de “O Capital”, capítulo “A jornada de trabalho”, Marx30 descreveu a organização do trabalho nas fábricas e a extensão do dia de trabalho realizado nelas.2 A burguesia proprietária, no momento de consolidação do modo de produção capitalista, levou aos últimos limites a capacidade humana de se manter trabalhando de maneira a gerar o maior valor possível. Para que o capital fixo, as máquinas, maximizasse o valor gerado no processo de produção, era necessário que se absorvesse a maior quantidade de trabalho excedente possível, a partir da compra da força de trabalho do proletariado. Dessa maneira, a taxa de mais-valia absoluta expropriada, nesse momento do capitalismo, compunha uma parte importante da geração de valor então observada. Concretamente, observou-se jornadas de trabalho extremamente longas, de 12, 14 horas ou até o limite físico de cada trabalhador. Nessas condições, obviamente o tempo de repouso, e por consequência o tempo para dormir, era o mínimo permitido pelo capitalista. Na lógica de maximizar a absorção de trabalho vivo, foram desenvolvidas maneiras de contornar a necessidade fisiológica de dormir, por ser uma barreira natural e intransponível à extração de mais-valor dos indivíduos. Em meio a organização do trabalho nas fábricas, essas estratégias tomaram a forma de jornadas de trabalho longuíssimas, esmaecendo os limites entre o dia e a noite, e o sistema de revezamento, o embrião do trabalho por turno contemporâneo.30 O sistema de revezamento consistia em dois conjuntos de trabalhadores que eram empregados de maneira alternada, um conjunto trabalhando durante o dia e o outro, durante a noite, o que permite que a produção continue de maneira quase ininterrupta. Antes de ser regulado, esse sistema impingiu uma sobrecarga de trabalho intensa aos proletários, incluindo crianças, em nome da “redução dos custos de produção”.30(236) Sabe-se que o trabalho por turnos desencadeia uma série de prejuízos ao sono e a saúde geral, 31 constituindo portanto outra forma de prejuízo a saúde do sono.
O desenvolvimento do capitalismo industrial e rural na Inglaterra do século XIX introduziu uma nova disciplina e organização temporal do trabalho, que estava não mais em função da tarefa a ser realizada, como era o caso inclusive das manufaturas anteriormente dominantes, mas em função do tempo do relógio e da máquina,32 cada vez mais identificado com a temporalidade da burguesia. O trabalho agrário, nas manufaturas e oficinas de artesãos, cujos trabalhadores ainda detinham os meios de produção, seguia uma lógica própria orientada principalmente a tarefa a ser realizada, configurando uma certa irregularidade da distribuição do trabalho no dia e na semana. Tecelões e artesãos urbanos, por exemplo, mantinham o costume da Segunda-feira Santa, dia no qual não se trabalhava ou era utilizado para outras funções relacionadas como recebimento de material ou reparo dos equipamentos. Para esses trabalhadores, as tarefas se concentravam principalmente entre as quartas-feiras e o sábado, o que variava durante o ano, pela demanda de trabalho ou ocupações mistas (ex. tecelão/agricultor inglês).32 Essa irregularidade suscitou o ataque da burguesia, que tomou formas como códigos de conduta fabris, a imposição do ritmo das máquinas ao trabalhador e uma quantidade impressionante de textos lamentando a “indolência”, “ociosidade” e a “perda de tempo” resultante dos ritmos inconstantes. O funcionamento constante das máquinas era a própria antítese do padrão irregular dos artesãos, e pensadores liberais racionalizaram essa constância como um instrumento de imposição de pontualidade e ritmo regular aos proletários.32 A nova organização impôs horários estritos para o início e fim da jornada diária, proibição ou multa para qualquer ociosidade ou interrupção do trabalho, eventuais recompensas por pontualidade, disciplina imposta pelos diretores e supervisores de fábrica. Na aparência, seus objetivos eram combater a suposta indolência e preguiça dos trabalhadores (objetivos que não eram novidade na época), mas na essência para aumentar a taxa de mais-valia absoluta. Isso pode ser observado no roubo de tempo, amplamente documentado,30,32 feito pelos diretores de fábrica por meio da adulteração dos relógios, além de pequenos roubos cumulativos do tempo de intervalo, horários de entrada e saída.
É nítido que tantos abusos por parte dos capitalistas elicitaram resistência e luta por parte do proletariado. A análise marxiana dos Factory Acts (Leis das Fábricas)30(parte 6) ao longo do século XIX é um caso concreto de como a jornada de trabalho se altera em função da luta de classes, entendida como os esforços tanto da burguesia quanto da classe trabalhadora de impor seus interesses, aumentando ou limitando a carga horária. A resistência tomou a forma de agitações, protestos e demandas ao Parlamento Inglês. Apesar das primeiras Leis das Fábricas terem sido promulgadas antes de 1833,25 estas foram largamente ineficazes. A partir da Lei de 1833, algumas regulações passam a serem impostas. Inicialmente circunscrita em indústrias específicas (algodão e lã, por exemplo), regulamentou a duração do dia de trabalho, a jornada de trabalho infantil e o tempo de intervalo, mas em contrapartida, “criou a necessidade” de utilizar o sistema de revezamento para o trabalho infantil para não regulamentar a carga horária adulta. Em função da organização dos trabalhadores, bem como da luta entre frações das burguesias (industrial e rural), outras Leis são promulgadas em 1844 (regulamentando a jornada de trabalho feminina) e 1847 (Lei das Dez Horas, trabalho infantil e feminino, repelida em 1850). Frente a grande agitação operária em resposta a anulação da Lei das Dez Horas, Marx afirma que a subsequente Lei de 5 de agosto de 1850 foi de uma natureza conciliatória entre as classes, estendendo as regulamentações para todos os setores industriais e acabando com o sistema de revezamento infantil, mas aumentou a carga horária de mulheres e adolescentes para 10 horas e meia.30
Ao revistar a obra Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra em 1885,28 Engels nota que parte dos abusos cometidos pela burguesia inglesa cessou. A expansão mercantil, financeira e industrial experimentada pela burguesia nos anos 1850–60 do século XIX alavancou o crescimento de uma fração da burguesia industrial a novos patamares. Dessa maneira, para se alavancar ainda mais contra outras frações da burguesia menos abastada e acelerar a concentração de capital, essa fração de capitalistas passou a extinguir ou reduzir os abusos mais grosseiros feitos contra uma parte do proletariado industrial como jornadas excruciantes para crianças e a servidão por dívida (o truck system), além do apoio aos Factory Acts, resultando em uma jornada de trabalho um pouco menos exaustiva para essa fração do proletariado.28 Com uma nova massa crítica de trabalhadores em uma mesma indústria, a burguesia industrial vê uma lucratividade em conferir um tempo de repouso maior, favorecendo a eficácia do trabalhador individual. A mudança aparente de atitude dos capitalistas industriais, além de útil contra competidores menores, promoveu o apaziguamento da classe trabalhadora. Ao fazer certas concessões, a fábrica já não perdia tempo por conta de reinvindicações ou greves, por exemplo. 28 Portanto, a duração da jornada de trabalho varia não apenas por conta da luta dos trabalhadores, mas também por esforços da burguesia que pode estar interessada em aumentar ou diminuir a carga horária trabalhada.
Outros exemplos de luta de classes incluem a luta pela jornada de trabalho de oito horas, com o slogan 8-8-8 (eight hours labour, eight hours recreation, eight hours rest, presente desde a experiência de Richard Owen de 1817 em Nova Lanark) e a Greve Geral de 1917 no Brasil. Apesar de não ser possível distinguir o tempo de repouso do tempo de sono no contexto discutido, podemos afirmar com segurança que a jornada de trabalho, e por consequência, o período de repouso e sono, variam também em função da luta de classes. Também se destaca o caráter de expansão contínua do capital, inserindo o trabalho fabril na noite e testando os limites físicos dos trabalhadores. A conquista de uma jornada de trabalho justa, para além dos benefícios diretos de ter mais tempo para si, seria a limitação do tempo vendido ao capitalista e o tempo do qual o trabalhador é dono e dispõe dele da maneira como lhe convém. Essa imposição circunscreveu limites à expropriação capitalista e permitiu ao trabalhador o direcionamento de energias para outras atividades como a organização e atuação política.30 (nota 201)
Ideologicamenteb,33(60) é possível observar a tendência de relegar ao sono uma característica indesejável, de preguiça ou mesmo de feminilidade. Os discursos que inferiorizaram o sono, de diferentes formas, proliferam desde o século XVII e se estendem ao longo do tempo. O sono como um obstáculo a razão e conhecimento pode ser observado nos escritos racionalistas, como no Tratado de Natureza Humana (1739) de Hume.3(12) O topos do sono como expressão da preguiça foi reforçado em obras como The poor man’s family book (de 1674),32 Poor Richard’s Almanack de Benjamin Franklin (em 1741),34 dentre outros, e subsequentemente repetido à exaustão pela classe burguesa e seus ideólogos. Mesmo o entendimento científico sobre o sono, até o advento da ciência do sono moderna, descreveu o sono como um estado passivo, de ausência de atividade cerebral, implicando uma inferioridade fisiológica a esse estado.31 A tendência de masculinizar a vigília é amplamente observada nos Estados Unidos da América, e foi explorada no livro “Dangerously Sleepy: overworked Americans and the cult of manly wakefulness”, de Alan Derickson, em 2014.34 Essa operação ideológica alçou indivíduos como Thomas Edison e Benjamin Franklin ao posto de modelos a serem seguidos, entre outros atributos, devido a sua dedicação quase sobre humana ao trabalho e um desdém notável pelo sono, ambos organizados em uma disciplina férrea e eficiente. O resultado dessa dedicação foram as “façanhas” que esses indivíduos construíram ainda em vida, estabelecendo redes imensas de negócios, invenções e prosperidade pessoal. Esse modelo é seguido por indivíduos de diversos setores da economia, do qual Derickson34 destaca os trabalhadores da tecnologia, treinadores, advogados, empresários, dentre outros. Nesse arcabouço ideológico, é motivo de orgulho másculo ter o vigor necessário para trabalhar horas a fio sem precisar dormir. A contrapartida, do sono e do repouso, fora representada como fraca, feminina.34
b O conceito de ideologia utilizado nesse ensaio está alinhado com Couto,29(60): “atividades teleológicas cujo objetivo é influenciar e orientar o universo mental de outros indivíduos, servindo como ponto de partida do pensamento conceitual”.29(60)
Buscou-se demonstrar que a inferiorização do comportamento de dormir e sua subjugação ao tempo de trabalho foi fortemente associado ao desenvolvimento e consolidação do modo de produção capitalista, suas características fundamentais, relações sociais e elementos ideológicos ligados a ele. Entretanto, é possível observar que a atualidade mostra diferenças qualitativas ao panorama apresentado, especialmente no que se denomina “sociedade 24/7”.3 O estudo desse conceito nos leva a análise da crise estrutural do capitalismo dos anos 1970–80 e sua reação, o neoliberalismo, no qual podemos localizar algumas dessas mudanças qualitativas na relação capital, trabalho e sono.
A crise estrutural do capitalismo observada nos anos 1970 e 1980, engendrou uma série de reações para contrabalancear a tendência de queda dos lucros, incluindo novos aparelhos ideológicos, de controle comportamental, desmonte dos sistemas de bem-estar social e, de importância fundamental para o sono, a sociedade 24/7.3
As estratégias neoliberais de enfrentamento à crise estrutural consistiram, entre outras ações, no aumento da taxa de exploração da classe trabalhadora. Dessa maneira, houve o desmonte de direitos trabalhistas e os sistemas de bem-estar social do período pós-guerra, ataque aos salários, privatizações e precarização do trabalho.35 Essas mudanças foram inclusive acompanhadas de aumento da jornada de trabalho em ao menos em alguns países como EUA, Reino Unido e Austrália36 (não é, necessariamente, o caso do Brasil, no qual, em 1988,37 foi instituído um limite constitucional de carga horária de 44 horas, subsequentemente reduzindo a jornada de trabalho em comparação ao período anterior).37 Concretamente, a exploração da classe trabalhadora toma as formas da flexibilização do trabalho e intensificação das funções, em uma lógica de financeirização do tempo. No neoliberalismo, podemos encontrar uma nova etapa da imposição da disciplina das máquinas sobre o trabalho vivo, chamada de “biodesregulamentação” por Teresa Brennan em “Globalization and its Terrors”, de 2003.36 A redução dos salários, ameaça de desemprego constante e flexibilização das condições de trabalho faz com que o custo de vida para o trabalhador seja excessivo. Por conta disso, há o aumento da necessidade de sacrificar cada vez mais necessidades humanas – a biodesregulamentação – alimentação processada e conveniente vira a regra, saúde física e mental ignoradas ou rapidamente tratadas com algum medicamento, cada vez menos tempo para repouso e sono (ou sono de pior qualidade), tudo isso imposto pelo próprio indivíduo em função das suas necessidades materiais.36 Ainda, a moradia em lugares mais distantes do local de trabalho ou do centro da cidade passa a ser uma realidade crescente entre os trabalhadores devido ao menor poder aquisitivo e gentrificação das cidades, aumentando o tempo de comuta, outro fator que consome tempo de repouso.36
Com a entrada no mercado de novas tecnologias de mídia de massas nos anos 1970 a 1990 como o VHS, o computador pessoal, os videogames, e, em um momento posterior, a Internet e os dispositivos inteligentes, foi se configurando a chamada economia de atenção.3 As empresas de tecnologia e mídia competem cada vez mais pela atenção dos indivíduos, já que isso em si pode gerar valor a essas indústrias (ex. Ibope, número de cliques/interações, tempo passado em redes sociais e exposição a publicidade). Isso resulta não apenas na ubiquidade dos aparelhos eletrônicos em nossas vidas, e, portanto, das empresas que fabricam esses dispositivos, mas também no estabelecimento de plataformas de interação e consumo quase ininterruptas. Basta resgatar o catálogo de produtos das empresas de tecnologia – assistentes domésticos (Alexa, Google Nest), smartphones, redes sociais, plataformas de pagamento, entretenimento e aplicativos de todo o tipo de funcionalidade. Não há domínio da vida e sociabilidade, com a exceção notável do sonoc, que não se tenta transformar em produto. Vale destacar que o uso excessivo de aparelhos eletrônicos é considerado um fator de risco para o desenvolvimento de problemas de sono.22 Portanto, temos na economia de atenção, principalmente na sua forma digital e inserida no modo de produção capitalista, outro competidor com o tempo de sono.
c No sentido de que ainda não é preciso pagar para dormir, ou pagar para realizar algo durante o sono. Em contrapartida, o sono é continuamente erodido por outros produtos e serviços ao seu entorno, como fármacos hipnóticos e promotores do sono, suplementos como a melatonina, aparelhos vestíveis e seus aplicativos para medir o sono fora do ambiente clínico, indústria médica, o recente “turismo do sono”, entre outros.
O neoliberalismo também se aproveitou de mecanismos ideológicos para a captura da subjetividade dos indivíduos. O imperativo do indivíduo como um “agente econômico em tempo integral”3(71) frente à precarização do trabalho e queda nos salários, impingiu aos trabalhadores mecanismos de autorregulação e controle. Entre esses mecanismos, podemos elencar a “proatividade”, “competitividade”, e “produtividade”, que agem de forma 24/7 sobre o comportamento dos indivíduos, caracterizando a chamada “sociedade de controle”.3(71) Ressalta-se que os mecanismos ideológicos de inferiorização do sono e disciplinarização presentes em momentos históricos anteriores não sumiram, mas sim operam paralelamente com as novidades. A privação de sono voluntária como qualidade de vigor e masculinidade, tendo saído da moda no período do pós guerra, volta a ser exaltada no contexto do neoliberalismo,34 por exemplo. A argumentação sobre a relação entre sono e controle da vida material, feita por Hale e Hale38 pode ser útil para se aprofundar na discussão dos efeitos ideológicos mencionados. Nesse artigo, argumenta-se que o comportamento de dormir é realizado em função das atividades feitas na vigília, como trabalhar, estudar e socializar, mas principalmente, de acordo com a relação do indivíduo com essas atividades. Portanto, se uma pessoa é capaz de controlar essas atividades de forma autônoma, segundo seu próprio interesse, também é capaz de dormir melhor: “As evidências mostram que as pessoas que têm maior controle de suas vidas são as que dormem de forma mais otimizada”d.38(363) A partir desse conceito, podemos entender que a duração de sono inadequada, por exemplo, pode emergir das situações que diminuem o controle dos indivíduos sobre sua materialidade. Por outro lado, as mediações ideológicas também podem produzir efeitos no sono ao mudarem a relação do indivíduo com as tarefas e atividades da vigília.
d Por sono otimizado entende-se uma duração de sono adequada e livre de problemas ou distúrbios do sono.
Segundo Jonathan Crary,3 no seu livro “24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep”, a sociedade 24/7 significa uma sociedade na qual há a possibilidade de venda da força de trabalho, consumo de produtos, serviços e publicidade em qualquer momento do dia, a qualquer momento da semana de maneira ininterrupta. Implica também na conectividade ininterrupta e simultânea, paralela à homogeneização da experiência que essa conectividade se baseia. Está relacionada a uma novidade constante, sempre há um novo aparelho ou técnica a ser aprendida, mas que dificilmente questionam de maneira profunda as estruturas e mecanismos de controle vigente. A expressão 24/7 representa o apagamento arbitrário – mas não extinção - dos ritmos humanos, incluindo do ciclo vigília-sono, e planetários como o dia e noite. Essa característica de homogeneização do tempo e ritmos está intimamente ligada a consolidação da “continuidade constante” 3(65) do processo de circulação do capital, como afirma Crary ao resgatar os Grundrisse, de Marx. Dessa maneira,
[...] se a circulação era um processo essencial do capital, o era devido a “continuidade constante do processo.” Com efeito, Marx está postulando que temporalidades 24/7 são essenciais para o funcionamento do capital.3(65)
A partir dos elementos discutidos, podemos construir uma visão crítica da prática acadêmica da medicina e biologia do sono com relação à higiene do sono, que é uma das principais ferramentas utilizadas para combater a alta prevalência de problemas de sono. Antes de tecer a crítica, deve-se destacar que a literatura biomédica demonstra o impacto positivo dos ajustes comportamentais sobre a saúde do sono. A higiene do sono consiste na educação sobre boas práticas relacionadas ao sono, como evitar o uso de aparelhos eletrônicos; cafeína; tabaco; refeições pesadas; exercícios físicos e álcool próximo ao horário de dormir, estabelecer um horário regular de dormir e acordar, evitar o estresse ao ir para a cama, dentre outras recomendações.39 Dessa maneira, a higiene do sono pode ser uma medida eficaz para promover a boa qualidade de sono. Entretanto, mesmo a literatura biomédica reconhece que o impacto dessa medida no âmbito da saúde coletiva é limitado e as evidências epidemiológicas são inconsistentes.39 Argumenta-se que uma das razões para isso é a limitação que o próprio conceito de saúde utilizado acarreta (como será abordado a seguir), além do arcabouço individualizante sobre o qual se baseiam essas recomendações, prescindindo das mediações socioeconômicas e históricas que incidem sobre os comportamentos de saúde.
Nesse contexto, a situação da saúde do sono brasileira tem um agravante na ausência de estruturas e programas de saúde pública que se atente à essa dimensão essencial da saúde. Uma revisão sistemática conduzida em 202040 não encontrou quaisquer evidências de impacto econômico do tratamento dos distúrbios de sono por parte do Sistema Único de Saúde – SUS no Brasil, primariamente pela falta de estudos abordando a temática. Ainda mais preocupante foi o achado de ausência de incorporação dos tratamentos dos principais distúrbios de sono ao SUS, sendo eles medicamentosos ou não.40 Portanto, no Brasil, a atenção a saúde do sono é feita exclusivamente pela rede privada de saúde, com ações isoladas organizadas por instituições médicas e acadêmicas para promover a conscientização da população sobre o sono e a higiene do sono. Isso dificulta, na prática, o desenvolvimento de estratégias para combater a alta prevalência de distúrbios e problemas do sono.
A noção de saúde utilizada pela medicina do sono aproxima-se daquela utilizada pela Organização Mundial da Saúde,41 que a entende de forma estática, sendo um estado de bem-estar físico, mental e social, a qual apresenta limitações específicas com relação à saúde do sono. A generalização da má qualidade do sono está interligada com as relações de produção capitalista, suas fases de desenvolvimento e as medidas políticas e econômicas que seus agentes conduzem para garantir a reprodução do capital e suas relações sociais. Temos aqui um exemplo concreto da necessidade da utilização de um conceito de saúde que leve em consideração as mediações sócio-históricas que produzem os conflitos. Dessa maneira, é estabelecido um diálogo com o conceito de saúde avançado por Ferrara.42 Uma definição alternativa de saúde foi desenvolvida no livro “Teoría Social y Salud”,42 a qual incorpora a necessidade de se superar os conflitos que geram os processos de saúde-doença, tornando-se uma definição necessariamente dinâmica e dialética:
Es necesario, por el contrario, hallar las referencias lingüísticas que abarquen el sentido dinámico de la salud-enfermedad, que comprendan a la salud como una búsqueda incesante de la sociedad, como apelación constante a la solución de los conflictos que plantea la existencia. [...] No es el conflicto lo que define lo patológico, sino que es el bloqueo de los conflictos y la imposibilidad de resolver ese conflicto, físico, mental o social, lo que certifica la idea de enfermedad.42(10)
A aplicação desse conceito para a questão da saúde do sono trás compreensões imediatas: a generalização do sono inadequado é uma patologia devido a incapacidade, tanto dos indivíduos quanto da saúde coletiva atual, de atacar o conflito que gera tantos problemas de sono. Em situações de aumento da mais-valia absoluta, há a contrapartida direta de menor tempo de repouso e sono. No caso de intensificação e precarização das condições de trabalho, como observado nas estratégias neoliberais de enfrentamento da crise estrutural do capitalismo, o distresse excessivo, a piora da saúde mental e sintomas psiquiátricos resultante exaure o trabalhador e pode piorar a qualidade de sono. Ainda, as ideologias cumprem um papel importante em incutir nos indivíduos mecanismos de autorregulação do tempo de trabalho e consumo, relegar o sono a um segundo plano ou mesmo sacrificar o comportamento de dormir para atender a necessidade de maior produtividade.
Ferrara42 também enfatiza a dimensão histórica e social da saúde. A transição para a sociedade moderna, no campo de saúde de sono, é frequentemente tomada de maneira aparentemente neutra ao triangular as origens da alteração social do sono em processos como industrialização, difusão da luz elétrica e o trabalho em turnos.41 Entretanto, esses desenvolvimentos não ocorrem isoladamente e nem são, por si mesmos, os responsáveis pelos problemas de sono dos trabalhadores. Há que se considerar a localização histórica do capitalismo e o papel das relações sociais do capital como os geradores de conflito, pois essas, na sua interação com os elementos da luz elétrica, disciplina do trabalho, empreendedorismo etc. é que geraram os problemas e distúrbios do sono em larga escala. Em contrapartida, a ação é central para contornar essa conjuntura. Como exposto anteriormente, o tempo alocado ao trabalho e ao repouso tem uma forte determinação pela luta de classes; portanto, há um horizonte concreto de atuação para estabelecer uma jornada de trabalho justa e ampla possibilidade de repouso e sono para a classe trabalhadora. Por fim, o conceito de saúde de Ferrara,42 com suas dimensões sócio-históricas, apresenta diversas mediações que fogem do escopo do indivíduo e individualismo. Por essa razão, amplifica o campo de possibilidades e atuação para melhora da saúde do sono, em contrapartida à higiene do sono que é uma medida eminentemente individual. Logo, argumenta-se que o conceito de saúde cunhado por Ferrara42 possibilita uma gama maior e mais eficaz de ações para a promoção da saúde do sono.
O presente ensaio buscou resgatar e sintetizar elementos importantes para uma compreensão marxista do comportamento de dormir e principalmente, da alta prevalência de distúrbios e má qualidade do sono na sociedade atual. Destacou-se a situação anormal que o sono ocupa socialmente, e o papel do desenvolvimento das relações sociais e de produção capitalistas, nos seus momentos de consolidação e crise estrutural, como fatores causais da piora generalizada da saúde do sono. Além disso, foi construída uma crítica ao conceito de higiene do sono como principal intervenção, com base no conceito de saúde como possibilidade de ação contra os conflitos que geram os processos saúde-doença.
As pesquisas futuras, ao analisar a situação profundamente complexa do Brasil, devem considerar a possibilidade de produção de dados específicos acerca do uso do tempo, para além da quantidade de horas trabalhadas ou dormidas por semana. É preciso conhecer os padrões de repouso e, inserido nesse, os padrões de sono na população geral, incluindo suas estratificações com relação a situação material e de trabalho do proletariado. Ainda, faltam dados sobre como a população brasileira valora e insere o sono em seu cotidiano. Pela limitação de espaço desse ensaio, as questões de gênero e raça, a urbanização e sua concentração de sons, luzes e máquinas, fatores intermediários como redes sociais de apoio, dinâmica familiar, qualidade do domicílio, elementos ideológicos como a administração científica, empreendedorismo e toyotismo não foram explorados, apesar de serem extremamente relevantes para o tópico discutido.
A ação prática para construir uma possibilidade de superação da má qualidade de sono generalizada perpassa a conquista de direitos trabalhistas e melhores condições de vida para a classe trabalhadora. Não apenas reivindicando tais pautas como obrigação do Estado, mas também como perspectiva revolucionária – organizando a classe trabalhadora para tal. Outro ponto de ação consiste na inserção da atenção à saúde do sono pela saúde pública, principalmente para difundir os tratamentos já comprovados para os distúrbios de sono. Essa inserção pode expandir a possibilidade de profissionais da saúde poderem atuar concretamente desmistificando as ideologias neoliberais de sacrifício e inferiorização do sono, questionando a equação entre sono e preguiça ou da necessidade de renunciar ao sono. Karl Marx ressaltou que a conquista de uma jornada de trabalho justa tem o benefício duplo de maior tempo de repouso, mas também um período do dia do qual o trabalhador lhe dá a utilidade que melhor lhe convém, fora do controle do capitalista, inclusive para dormir. Tendo isso em mente, dormir bem está no horizonte revolucionário.
GLF realizou aconceitualização, investigação, metodologia, redação do manuscrito original, redação – revisão e edição.
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