Crit Revolucionária, 2024;4:e009

Artigo original

https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2024.v4.33

O NEOFASCISMO é MACHO? RELAçõES ENTRE NEOFASCISMO E O RESSENTIMENTO DA MASCULINIDADE HEGEMôNICA

Rodrigo SILVAi    

i  Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, Escola Paulista de Medicina – EPM, Departamento de Medicina Preventiva. São Paulo, SP, Brasil.

Autor de correspondência: Rodrigo Silva rodrigocarancho@gmail.com

Recebido: 17 jul 2023
Revisado: 30 ago 2023
Aprovado: 14 out 2024

https://doi.org/10.14295/2764-49792RC_CR.v4.33

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Resumo

O objetivo desse ensaio é refletir acerca das relações entre o neofascismo, sobretudo da experiência brasileira do governo de Jair Bolsonaro, e o ressentimento de uma parcela representante da masculinidade conhecida nos estudos de gênero como masculinidade hegemônica. Essa masculinidade é representada pelo homem branco, heterossexual, cisgênero e viril. O texto faz uma breve introdução ao fenômeno fascista, sua atualização no neofascismo a partir de contextos diferentes e procura ampliar a análise da conjuntura política, econômica e social da experiência do neofascismo brasileiro utilizando a perspectiva de gênero a partir de diversos autores e o relacionando a performance de “imbrochável” de Jair Bolsonaro e de sua necessidade de constante afirmação, da desqualificação da mulher, da exaltação da força e a ocultação das emoções.

Descritores: Neofascismo; Masculinidades; Homens; Virilidade.

¿EL NEOFASCISMO ES MASCULINO? LA RELACIóN ENTRE EL NEOFASCISMO Y EL RESENTIMIENTO DE LA MASCULINIDAD HEGEMóNICA

Resumen: El propósito de este ensayo es reflexionar sobre la relación entre el neofascismo, especialmente el fenómeno de la experiencia brasileña bajo el gobierno de Jair Bolsonaro, y el resentimiento de una porción representativa de la masculinidad conocida en los estudios de género como masculinidad hegemónica. Esta masculinidad está representada por el hombre blanco, heterosexual, cisgénero y viril. El texto hace una breve introducción al fenómeno fascista, su actualización en el neofascismo desde diferentes contextos y busca ampliar el análisis de la coyuntura política, económica y social de la experiencia del neofascismo brasileño utilizando la perspectiva de género de diferentes autores. y relacionándolo con la performance del “imbrochable” de Jair Bolsonaro, su necesidad de afirmación constante, la descalificación de la mujer, la exaltación de la fuerza y el ocultamiento de las emociones.

Descriptores: Neofascismo; Masculinidades; Hombres; Virilidad.

   

IS NEO-FASCISM MALE? RELATIONSHIP BETWEEN NEO-FASCISM AND THE RESENTMENT OF A HEGEMONIC MASCULINITY

Abstract: The purpose of this essay is to reflect on the relationship between neo-fascism, especially the phenomenon of the Brazilian experience under the government of Jair Bolsonaro, and the resentment of a representative portion of masculinity known in gender studies as hegemonic masculinity. This masculinity is represented by the white, heterosexual, cisgender and virile man. The text makes a brief introduction to the fascist phenomenon, its update in neo-fascism from different contexts and seeks to expand the analysis of the political, economic and social conjuncture of the experience of Brazilian neo-fascism using the perspective of gender from different authors and relating it to Jair Bolsonaro’s performance of “imbrochable”, his need for constant affirmation, the disqualification of women, the exaltation of strength and the concealment of emotions.

Descriptors: Neo-fascism; Masculinities; Men; Virility.

INTRODUçãO

Nos últimos anos, o Brasil tem sido palco de uma intensa discussão acerca do ressurgimento do fascismo e de suas atualizações. Essa preocupação ganhou ainda mais relevância a partir do golpe institucional que culminou na destituição da presidenta Dilma Rousseff em 2016 e, posteriormente, com a eleição de Jair Messias Bolsonaro.

O processo político que se desenrolou no país, marcado por uma chamada midiática de polarização foi, em realidade, mais um sintoma da crise e declínio do sistema capitalista. Crise que é terreno fértil e condição indispensável para o surgimento do fenômeno fascista e seu derivado histórico, o neofascismo.

O fascismo é caracterizado como um movimento político reacionário das camadas intermediárias da sociedade capitalista.1 Este fenômeno está intrinsecamente ligado à estrutura social e econômica do capitalismo na tentativa de preservar os interesses das classes dominantes que, desesperadas pela manutenção de seu poder, enxergam no reacionarismo fascista a possibilidade da preservação e restauração de sua hegemonia frente as crises de um sistema e, ainda, busca unificar a sociedade sob um Estado forte e centralizado, liderado por um líder carismático e carregado de poderes absolutos.2

Não existe fascismo sem o capitalismo. É fundamental para análise desse movimento observar o laço profundo com o grande capital, sobretudo no financiamento das comunicações, transportes e indústria de armas. Contudo, é na crise, decadência e estagnação do sistema capitalista que o fascismo se coloca. Funcionando como uma espécie de saída de emergência para as classes dominantes.3 Portanto, a crise, sua agudização e seus sintomas formam-se como ponto estruturante desse movimento.

Outra condição para existência do fascismo é o apoio social, onde justamente se localiza o ponto que o diferencia de outras formas de ditadura.

Diferentemente de uma ditadura tradicional, o fascismo se converte em uma ditadura por meio do apoio social. Ou seja, ao ocorrer o fechamento do regime político, cresce a legitimação popular que apoia as restrições democráticas. E essa adesão, muitas vezes, acontece em função das precárias condições de vida proporcionadas pela crise.3(2)

O surgimento do fascismo foi uma reação às crises políticas e econômicas que assolaram a Europa após a Primeira Guerra Mundial. Na Itália, Benito Mussolini estabeleceu o Partido Nacional Fascista, dando início a esse movimento. Mussolini defendia um Estado autoritário, centralizado e nacionalista, com o propósito de unificar a nação e restabelecer sua grandeza. Adolf Hitler, na Alemanha, liderou o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nazista), promovendo uma ideologia racista, antissemita e expansionista. Através de uma retórica inflamada e propaganda eficaz, Hitler ascendeu ao poder em 1933, instaurando um regime totalitário. A Guerra Civil Espanhola (1936–1939) representa um importante marco na história do fascismo. Nesse conflito, o general Francisco Franco liderou uma rebelião contra o governo republicano, recebendo apoio de forças fascistas, incluindo a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler. A vitória de Franco resultou na consolidação de um regime franquista autoritário e repressivo na Espanha.2

Já o neofascismo é visto como uma resposta à crise estrutural do capitalismo com raízes na crise econômica de 2008.

É fundamental lembrar que a crise vem se caracterizando como uma crise de “longa depressão” para os próximos 30 anos, partindo-se de 2008. Trata-se de entendê-la como uma combinação entre produto de baixo investimento e baixo crescimento da produtividade, decorrente de uma menor lucratividade do investimento em setores produtivos e de uma alteração no campo da especulação financeira. O capitalismo mundial experimenta uma profunda depressão e tem dificuldades para superá-la.3(3, destaque do autor)

Dessa forma, a crise e as políticas neoliberais geraram desigualdades sociais e fragilizaram os direitos trabalhistas. Nesse contexto, movimentos de extrema-direita emergem e exploram o ressentimento e a frustração de certos setores da população.

Para Löwy,4 a principal diferença entre fascismo e neofascismo está no campo econômico onde os governos fascistas clássicos adotavam um modelo nacionalista-corporatista e os neofascistas cumprem uma política econômica tipicamente neoliberal.

O neofascismo europeu não pode ser considerado uma mera repetição do fascismo dos anos 1930, pois se apresenta como um fenômeno novo, com características próprias do século XXI. Ao contrário das ditaduras militares do passado, o neofascismo respeita alguns ritos democráticos, como eleições, existência de partidos políticos, liberdade de imprensa e parlamento. No entanto, é importante destacar que busca limitar essas liberdades democráticas recorrendo a medidas autoritárias e repressivas de acordo com a conjuntura política. Essa forma de neofascismo na Europa se manifesta através de estratégias mais sutis e adaptadas ao contexto atual. Os movimentos de extrema-direita utilizam a democracia como uma fachada para promover sua agenda política que, muitas vezes, é marcada por discursos nacionalistas, xenófobos e antissistema. Ao mesmo tempo em que participam das eleições e dos processos democráticos, buscam minar as instituições democráticas, enfraquecendo a separação entre os poderes, atacando a imprensa livre e implementando políticas que visam restringir a diversidade e pluralidade. É fundamental reconhecer que o neofascismo na Europa enfrenta contextos específicos em cada país e suas estratégias e graus de aceitação variam. No entanto, em meio à insatisfação social, a crise econômica e as tensões culturais, esses movimentos exploram esses sentimentos para obter apoio e promover suas ideologias autoritárias.

Já na América Latina, o fenômeno neofascista assume um caráter especialmente autodestrutivo, exacerbando as condições já presentes nos países de capitalismo central. Nesse contexto, os países latino-americanos são marcados pela presença de uma burguesia que se beneficia da exploração econômica e da transferência de mais-valor da periferia para o centro, resultando em uma superexploração da força de trabalho. No entanto, durante períodos de neofascismo, essa burguesia revela seu caráter pró-imperialista de forma absoluta. Curiosamente, a classe média e frações da classe trabalhadora mais afetadas pela crise são as que endossam politicamente essa subserviência. Essa adesão ocorre na busca por um outro para responsabilizar pela crise, pois agora o alvo se torna o próprio cidadão compatriota. Seja por critérios econômicos, étnico-raciais ou morais, como a pobreza, a raça, a origem étnica ou a orientação sexual, esses grupos são considerados os culpados pela crise e suas existências são desumanizadas. Dessa forma chegamos ao fenômeno neofascista brasileiro que resultou de uma coalizão sociopolítica e político-institucional heterogênea dentro do contexto do capitalismo neoliberal no país. Nesse cenário, diferentes frações da burguesia se uniram impulsionadas por múltiplas determinações. Essas determinações incluíram a crise econômica de estagnação, a luta de classes de cima para baixo, com as classes proprietárias se opondo às reformas sociais em uma sociedade extremamente desigual, e, também, contrapondo-se às lideranças de esquerda que se comprometeram com essas reformas. A conjuntura foi influenciada também pela crise dos partidos tradicionais da democracia brasileira. Além disso, a presença de líderes de esquerda comprometidos com reformas progressistas foi confrontada pelas forças conservadoras.3

A proposta deste ensaio é incluir nessa breve análise de conjuntura, uma perspectiva de análise de gênero, sobretudo das masculinidades expressas nesses movimentos, seus líderes e seguidores. Por que os principais líderes e expoentes do fascismo e neofascismo são homens? Por que discursos que reforçam uma certa afirmação da virilidade são comuns entre esses homens? Poderíamos comparar líderes e seus seguidores homens e ressentidos com uma perda de poder masculino, com a parcela de uma burguesia que, percebendo o desgaste de sua dominação, vê na adoção da tática fascista uma saída de emergência?

MASCULINIDADES E SUAS VARIANTES

A masculinidade é uma configuração de comportamento e práticas no entorno da posição dos homens na estrutura das relações de gêneros. Trata-se de uma certa linguagem que começa a ser prescrita ainda na primeira infância, mas se atualiza ao longo da vida dos homens.5 Cabe ressaltar que tais práticas são envoltas por experiências históricas que moldam e transformam as percepções dos sujeitos sobre a realidade vivida, ou seja, lugares e posições construídos socialmente ao longo do curso de uma história e de uma cultura. 6-8

No século XIX, os estudos iniciais sobre os homens negligenciaram as relações de poder entre gêneros existentes na época. Em vez disso, os comportamentos sociais expressos por homens e mulheres eram considerados inatos e atribuídos a uma essência masculina ou feminina. Sob essa perspectiva, as mulheres eram associadas ao âmbito doméstico, à educação dos filhos e à submissão aos homens, enquanto os homens dominavam o espaço público. Referindo-se a esta estrutura social, Bourdieu9 diz que para louvar um homem basta dizer que ele é um homem. Essa concepção, amplamente reforçada por instituições como a família, a igreja, a medicina e o direito, perpetuou um regime de gênero heterossexista e misógino, considerado como um fenômeno natural e atemporal.

As discussões sobre masculinidades emergem a partir dos anos 1960 com o movimento feminista que demonstrou a desigualdade entre os gêneros como uma construção social. A partir desse período é que se deu início aos chamados Men’s Studies, movimento que despontou inicialmente no Estados Unidos e se espalhou pela Inglaterra, Austrália e, em menor grau, nos países nórdicos. Inicialmente, tais estudos assumiram posições tendenciosas e revanchistas em relação ao feminismo, além da invisibilização dos homosexuais que nessa perspectiva não eram considerados homens. Tratavam-se de estudos produzidos por homens, sobre homens e para homens, mas que escondiam em suas intenções um grande ressentimento por um papel social que se deslocava e colocava em questão o homem como a figura universal. Afinal,

[...] ao pôr fim a distinção entre os papéis, firmando pé sistematicamente em todos os domínios antes reservados aos homens, as mulheres fizeram evaporar a característica universal masculina: a superioridade do homem sobre a mulher.10(6)

Com, isso podemos concluir que os Men’s Studies são respostas a uma crise das masculinidades e essas respostas foram puxadas por uma parcela muito específica dos homens: o homem branco, cisgênero, heterossexual, próspero e, neste caso, estadunidense. A partir desse movimento é que começa a se desenhar um certo modelo de masculinidade hegemônica, o homem padrão que figurava em comerciais de TV, um ideal de sucesso, um marco a se alcançar, um representante ideal do masculino. Tendo, então, um modelo como referência não basta ser homem, mas é preciso performar como um homem.

No entanto, é a partir dos anos 1980 que houve uma expansão dos estudos sobre masculinidades por via dos campos da sociologia e epidemiologia, onde se passa a levar em conta as relações de poder entre os gêneros.11 Embora até esse período os homens já fossem objeto de estudo, o que inaugura essa “nova fase dos estudos sobre o masculino é exatamente o uso da perspectiva de gênero como referência”.12(40)

Segundo Welzer-Lang6 os estudos sobre homossexualidades desempenharam um papel crucial na ampliação do conceito de masculinidades, revelando a existência de hierarquias internas entre os homens. Essas pesquisas fundamentaram a ideia de masculinidade hegemônica, que leva em consideração diversos marcadores sociais, como raça, classe, etnicidade, faixa etária e sexualidade. Nesse contexto, a masculinidade hegemônica é considerada o modelo central, enquanto outras manifestações do masculino são vistas como inadequadas, inferiores ou subordinadas. Essa fase marcou o surgimento do uso da palavra masculinidades no plural, refletindo a compreensão de que existem múltiplas formas de expressão masculina, que englobam não apenas a masculinidade hegemônica, mas também a de outros homens. Assim, no espectro das masculinidades, as experiências e vivências não são igualmente compartilhadas por todos os homens. Ainda assim, mesmo com as inúmeras transformações sociais ocorridas no pós-guerra, a fração hegemônica das masculinidades atravessa o tempo, seguindo inalteradas as características de seus representantes (homem branco, cisgênero, heterossexual, próspero) e de seu campo social.6

A masculinidade hegemônica está enraizada na esfera da produção, na arena política, nas práticas esportivas, no mercado de trabalho. E, em todas estas esferas, o discurso impulsionador das práticas dos homens tem como fundamento a competição, a busca insaciável pelo sucesso, pelo poder. E é neste ponto que a masculinidade deve ser provada, e, tão logo isso ocorre, é questionada, tornando necessário que seja novamente provada: sua construção é constante, implacável e inatingível.13(88)

Embora a masculinidade hegemônica seja o modelo de um ideal, sabemos que do ponto de vista estatístico a maioria dos homens se posicionam socialmente em outras frações.

A masculinidade hegemônica se distinguiu de outras masculinidades, especialmente das masculinidades subordinadas. A masculinidade hegemônica não se assumiu normal num sentido estatístico; apenas uma minoria dos homens talvez a adote. Mas certamente ela é normativa. Ela incorpora a forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens.5(245)

Com o passar dos anos, os estudos sobre masculinidades demonstraram as inúmeras faces de diferentes expressões do masculino como, por exemplo, a violência e o quanto este fator atravessa a experiência dos homens. Segundo dados do Atlas da Violência14 dos 590.755 homicídios ocorridos no Brasil entre 2010 e 2020, 92,2% foram cometidos por homens, enquanto 7,8% por mulheres.

Em um estudo realizado com 477 homens usuários de uma unidade de atenção primária de São Paulo, apontou que 29,4% possuíam algum tipo de transtorno mental. Dentre esses homens, 45,7% sofreram violência física e/ou sexual mais de uma vez na vida e 61,4% teriam perpetrado alguma violência.15

É comum no imaginário social, desde a infância, a concepção de que nascer com um pênis implica em ser viril e forte. Nessa perspectiva, a masculinidade é frequentemente associada à expressão da violência, sendo naturalizada e estimulada como demonstração de virilidade. No entanto, é importante ressaltar que as categorias de definição da violência são pré-concepções, construções sócio-históricas que implicam o exercício de um poder para garantia de papéis ou lugares (objetivos e subjetivos). Assim como Simone de Beauvoir afirmou que uma mulher não nasce mulher, mas se torna uma mulher, da mesma forma é possível afirmar que um homem violento não nasce violento, mas torna-se violento.7,10

Em uma breve pesquisa no Google Imagens com os termos “masculinidades” e “virilidade" o sistema mostra figuras de homens segurando armas, em luta corporal, fazendo a barba com um machado, com cara fechada e músculos a mostra e um detalhe importante: de 60 imagens pesquisadas, 53 eram de homens brancos e jovens, cinco eram de homens negros e jovens e duas imagens eram de homens idosos, porém musculosos. Esse aparente detalhe ligado a um recurso tecnológico é espelho do campo social onde modelos estabelecidos mostram onde se deve chegar, o que se deve ser e como se deve ser.

A virilidade e a violência fazem parte de um esforço constante de uma masculinidade que precisa sempre ser afirmada. Há um trabalho constante da afirmação de algo que nunca estará garantido para sempre.7

A masculinidade deve ser provada, e assim que ela é provada, ela é novamente questionada e deve ser provada ainda mais uma vez; a busca por uma prova constante, durável e inatingível, torna-se tão sem sentido que ela assume característica, como disse Weber, de um esporte.16(111)

É na busca e afirmação constante dessa virilidade que se situa uma certa ansiedade masculina partir da negação do feminino em si e no outro, seja esse feminino uma mulher ou um outro homem.10 Nos 1950 a psicóloga Ruth Hartley já dizia que o menino em primeiro lugar se define negativamente, ou seja, para serem masculinos, os machos aprendem em geral o que não devem ser, antes do que podem ser…e assim, muitos meninos definem a masculinidade simplesmente dizendo ‘o que não é feminino’. Há uma luta deflagrada contra tudo o que pode ser feminino.10 Para Fátima Cechetto7 o poder masculinizado é associado aqueles que controlam recurso e tem interesse em naturalizar e perpetuar esse controle, incluindo nesse poder a capacidade de feminilizar os subordinados. Com isso, as sexualidades dissidentes são estigmatizadas, violentadas e ameaçadas de serem tratadas como passivas e consequentemente como mulheres. Trata-se da afirmação constante da diferença com o feminino. Ser homem é antes de tudo não ser mulher ou a imagem do constructo social de uma mulher: emotiva, fisicamente fraca, afetuosa, cuidadora de um lar, de doentes e de crianças. Contudo, a batalha subjetiva contra uma imagem do feminino não é fator marcante apenas na masculinidade hegemônica:

efeminofobia entre homens que se relacionam com outros homens, mas que cultuam como valor máximo a masculinidade e os privilégios históricos concedidos dela. No vasto espectro das homossexualidades brasileiras, hoje vige uma hegemonia interna masculinista, branca e de classe alta dos que se compreendem como “discretos‟ e aspiram ser vistos como heterossexuais relegando para outros/as a linha da recusa social. É a este espaço da abjeção que são relegados os/as não-brancos, pobres, afeminados, masculinizadas, em suma, os/as queer.17(23, destaque do autor)

Desse modo podemos assinalar que masculinidades é um arranjo comportamental, performático e subjetivo a partir da posição dos homens na hierarquia de gênero. Sob hipótese alguma pode ser considerada algo dado e estabilizado, posto que está situada dentro de um contexto sócio-histórico e, portanto, forjado dentro de uma cultura. Ademais, as masculinidades apontam para a ideia de que o homem não é um sujeito universal, mas responde a partir de hierarquias que são construídas com base em sua posição social, racial e de orientação sexual. São muitas as características que envolve a performance da masculinidade hegemônica em sociedade, porém é pertinente para o tema abordado neste trabalho uma característica fundamental: o ressentimento.

NEOFASCISMO E A MASCULINIDADE HEGEMôNICA

A eleição de Dilma Roussef em 2010 alterou o curso de um rio que vagava plácido pela história brasileira. Em um universo onde "tudo estava bem” apareceu uma mulher onde não deveria aparecer. É no ápice de uma crise institucional que "o movimento de massa reacionário se formou em 2015 na campanha pela deposição da presidenta. De lá, saiu, após depuração, o movimento especificamente neofascista – o bolsonarismo”.1(2) O golpe veio, mas, tarde demais para apagar o ressentimento que já havia se instalado. Um ressentimento que gerou insegurança, incerteza no futuro da parcela ressentida e foi simbolizada na frase dita por Jair Bolsonaro em 2021: "Com a reeleição daquela mulher, qual o nosso futuro? Não é porque é mulher, não, mas é que o bicho é ruim mesmo. Sogra é santa perto dela”.18(1) Esse mesmo Bolsonaro que se referiu a uma mulher, então deputada Maria do Rosário, em 2011 afirmando que ela não merecia ser estuprada por que ele a considerava muito feia e que não fazia seu tipo.

No dia 12 de junho de 2021, uma motociata reuniu 12 mil pessoas em São Paulo. Sua grande maioria formada por homens brancos, de classe média, heterossexuais e de meia-idade. O evento celebrava valores cristãos, conservadores e bradava por liberdade fazendo oposição as medidas restritivas impostas pela pandemia. Na empunhadura, a bandeira verde e amarela propagava uma imagem de patriotismo. Nas camisetas, adesivos e flâmulas uma imagem de um Jair Bolsonaro mito: hora o seu rosto sobre um corpo musculoso com farda militar e fuzil em mãos, hora sendo acudido por Jesus Cristo. Um mito construído a partir da imagem do herói, de um paladino do bem que sempre fala o que pensa e da forma que lhe vem à cabeça. Bolsonaro, entre tantas definições e adjetivos possíveis, representa um modo de ser homem: um chefe de família, branco, cristão, pragmático e reacionário. De um homem que, cansado do avanço das pautas sociais, sobretudo das pautas feministas, resolveu reagir ao velho estilo do tempo em que homem era homem. Um típico representante da masculinidade hegemônica. A motociata, sua pauta, a posição de seu líder e o contexto de crise econômica estabelecida é a ilustração do que Carnut,3 Boito Junior1 e Löwy4 apresentam como neofascismo. Contudo, não podemos incorrer no erro de compreender esses homens como únicos representantes do neofascismo bolsonarista, lembrando que tanto a classe média como frações da classe trabalhadora atingidas pela crise, endossam o projeto neofascista.3

O outrora deputado que de forma chula e agressiva falava o que pensava, tornou-se o representante de uma massa bruta, despolitizada, desinformada e ressentida que, submetida ao líder-ídolo e aparentemente transgressor, vibra para onde é manobrada e para isso bastam meia dúzia de palavras agressivas. Um retorno aos tempos do avô, onde ‘as coisas funcionavam’ e onde não existia esse mimimi todo. Uma espécie de tentativa de retorno a um patriarcado original do chefe de família. Bolsonaro foi como um imã para subjetividades masculinas carentes de referências que pudessem afirmar que estão no caminho certo, onde o crescimento e a participação feminina no burocrático e no fabril é até aceito, mas no intelectual, sobretudo na liderança de um país é uma afronta aos valores masculinos. Valores esses ligados a parcela do ideal da masculinidade hegemônica como a virilidade, a competição, a repressão das emoções, ao jogo na arena política e a subalternização de tudo que circula por fora de uma certa norma heteropatriarcal.

No dia 04 de março de 2021, em meio a pandemia de COVID-19, que, à época, já tinha tirado a vida de 260 mil brasileiros, o presidente da República Jair Messias Bolsonaro, em discurso público durante a inauguração de uma ferrovia e fazendo referência ao lockdown, medida sanitária defendida pela ciência, afirmou que era preciso parar de frescura e mimimi e questionou até quando as pessoas ficariam chorando. Fazendo, assim, à imagem e semelhança do século XIX, uma ligação direta entre emoção e fraqueza. Como se chorar pelos mortos fosse algo menor e que deveria ser considerado frescura. Esse ideal masculino de ocultação das emoções é traço presente nos estudos sobre a masculinidade hegemônica. As emoções são representantes do universo feminino e, simbolizando fraqueza, devem ser reprimidas ao ponto de não mais existirem.10 Não é coincidência o fato de seguidores de Bolsonaro repetirem ao longo do período da pandemia as palavras frescura e mimimi referindo-se às pessoas que usavam máscara, protegiam os filhos e evitavam aglomeração.

Contudo, o ápice das semelhanças entre o neofascismo do governo Jair Bolsonaro e modelos de masculinidade hegemônica se deu em um discurso na esplanada dos ministérios durante as festividades de 07 de setembro de 2022 em Brasília, o presidente e candidato à reeleição puxou um coro para si mesmo de imbrochável, fazendo referência ao falo que na sua imaginação nunca falha. A insistência eterna na afirmação da masculinidade pela via da virilidade é o que Kimmel16 diz que acaba por se tornar um esporte. É uma espécie de ciclo de afirmação onde um homem nunca é um homem, mas ele se mostra homem na medida que consegue se afirmar, de maneira concreta ou, no caso do presidente, fantasiosa.

Vale ressaltar que Bolsonaro não é a única representação desse fenômeno. Outros políticos de extrema direita, como Donald Trump, por exemplo, ganham relevância no debate público ao redor do mundo. Esses líderes continuam a atrair uma parcela de homens ressentidos que buscam igualar-se à masculinidade idealizada de tempos passados, como a de seus avós. Essa intersecção entre o neofascismo, a masculinidade hegemônica e a política revela uma preocupante conexão entre poder, dominação e a necessidade de reafirmação constante da masculinidade. Esses discursos políticos alimentam o ressentimento masculino, explorando medos e inseguranças para promover uma imagem de masculinidade supostamente forte e superior.

Portanto, o neofascismo não é só macho, mas é um tipo específico de macho que, ressentido pela perda do berço esplêndido, arma suas arapucas de vingança e ódio.

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