Crit Revolucionária, 2023;3:e015
Artigo Original
https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2023.v3.30
i Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, Instituto Fernandes Figueira – IFF. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Autor de correspondência: Luzia Cardoso luzia.maga@gmail.com
Recebido: 16 jul 2023
Revisado: 27 nov 2023
Aprovado: 23 abr 2024
https://doi.org/10.14295/2764-49792RC_CR.v3.30
Copyright: Artigo de acesso aberto, sob os termos da Licença Creative Commons (CC BY-NC), que permite copiar e redistribuir, remixar, transformar e criar a partir do trabalho, desde que sem fins comerciais. Obrigatória a atribuição do devido crédito.
Trata-se de reflexão acerca do uso corrente do termo desenvolvimento nos discursos de agências internacionais, governamentais e acadêmico-científicos quando tratam de indicadores sociais e de saúde. Considera-se a importância da compreensão das Teorias do Desenvolvimento no movimento histórico para a compreensão da realidade, principalmente no método de Análise de Conjuntura. Chama-se a atenção para o conteúdo ideológico do termo desenvolvimento e de as Teorias de Desenvolvimento carregarem, em si, projetos de sociedades diferentes e, muitas vezes, antagônicos. Apresenta as principais vertentes da Teorias do Desenvolvimento. Concluindo, considera que o fato de as investigações em saúde visarem, em última instância, a intervenção na realidade, torna-se imprescindível que os autores explicitem a Teoria de Desenvolvimento que os respalda quando associam os seus resultados ao nível de desenvolvimento dos países.
Descritores: Desenvolvimento; Teoria do desenvolvimento; Indicadores sociais e de saúde.
¿DESARROLLO DE QUé Y PARA QUIéN?Resumen: Se trata de una reflexión sobre el uso actual del término desarrollo en los discursos de organismos académicos internacionales, gubernamentales y científicos que se ocupan de indicadores sociales y de salud. Considera la importancia de la comprensión de las Teorías del Desarrollo en el movimiento histórico y para la comprensión de la realidad, principalmente en el método del Análisis de Coyuntura. Se llama la atención sobre el contenido ideológico del término desarrollo y de las Teorías del Desarrollo que llevan en sí mismas proyectos de sociedades diferentes ya menudos antagónicos. También presenta los principales aspectos de las Teorías del Desarrollo. Concluye considerando que el hecho de que las investigaciones en salud apunten, en última instancia, a intervenir en la realidad, es imperativo que los autores expliquen la Teoría del Desarrollo que las sustenta cuando asocian sus resultados con el nivel de desarrollo de los países. Descriptores: Desarrollo; Teoría del desarrollo; Indicadores sociales y de salud. |
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DEVELOPMENT OF WHAT AND FOR WHOM?Abstract: This is a reflection about the current use of the term development in the speeches of international, governmental and scientific academic agencies that deal with social and health indicators. It considers the importance of understanding the Theories of Development in the historical movement and for the understanding of reality, mainly in the Conjuncture Analysis method. Attention is draw to the ideological content of the term development and of Development Theories carrying within themselves projects of different and often antagonistic societies. It also presents the main aspects of Development Theories. It concludes by considering that the fact that health investigations aim, ultimately, at intervening in reality, it is imperative that the authors explain the Theory of Development that supports them when they associate their results with the level of development of the countries. Descriptors: Development; Development theory; Social and health indicators. |
Neste trabalho buscamos contribuir para a reflexão acerca da importância da compreensão e da explicitação da Teoria de Desenvolvimento que embasa os discursos de agências nacionais, internacionais e os acadêmicos-científicos que relacionam os níveis de indicadores sociais e de saúde como o de desenvolvimento das nações.1,2,3
Entendendo a importância do método da análise de conjuntura (AC) para desvendar o processo histórico que conforma o presente, o conceito de desenvolvimento se apresenta como um dos centrais para a compreensão do discurso hegemônico presente nas práticas e nas investigações dos níveis de saúde das populações.
Considerando que as investigações científicas visam, em última instância, a transformação da realidade, o método da análise de conjuntura vem ao encontro desse objetivo. Conforme Casillas,4
Analisar a realidade significa ter uma preocupação por transformá-la ou por intervir nela. E a análise de conjuntura (AC) é uma análise do presente e como tal nos apresenta toda uma série de problemáticas para a sua construção. Este tipo de análise significa desenvolver um tipo de conhecimento histórico-político.4 (47, tradução nossa)
Observa-se ser recorrente, nas discussões e análises sobre temas da Saúde Pública, o estabelecimento de nexo causal entre os indicadores sociais e de saúde e o nível de desenvolvimento dos países, associando-o ao acesso a bens e serviços, compreendendo que a dificuldade ou a falta desse acesso corrobora para fomentar e aumentar os índices de morbimortalidade. Essa associação ocorre ao se dividir os países em dois blocos: desenvolvidos e em desenvolvimento e ao se comparar os seus indicadores. No caso dos países hoje classificados como em desenvolvimento por uns, subdesenvolvidos e ainda por dependentes por outros, percebe-se que os discursos tendem a deixar de explicitar qual é a Teoria do Desenvolvimento que os respaldam, o que pode também contribuir para o entendimento do uso da expressão em desenvolvimento como um eufemismo para o termo atrasado.
Nesse sentido, a concepção da realidade vem entremeada de conteúdo ideológico, ideologia essa que também faz parte da realidade a qual se deseja entender para modificar. Esse conteúdo ideológico se constitui num processo histórico, daí a importância da discussão a que se pretende neste trabalho.
Partindo da compreensão de Casillas4 sobre o conhecimento histórico-político, entende-se que investigações, análises científicas e discursos de agências nacionais e internacionais são práxis e afetam múltiplos campos da vida social: político, econômico, social e, inclusive, cultural. Significa que há um conteúdo político-ideológico na apresentação e nas explicações de resultados de estudos e análises realizadas.
Considerando ser imprescindível a compreensão acerca das Teorias do Desenvolvimento, visto o uso corrente do termo desenvolvimento nos estudos que o relacionam aos indicadores sociais e de saúde, busca-se, nesse trabalho, apresentar uma breve abordagem de três perspectivas: a Teoria do Desenvolvimento presente no imediato pós-guerra; a Teoria do Subdesenvolvimento, de Celso Furtado; a crítica desenvolvida a partir do pensamento de Karl Marx.
Existem teorias diferentes sobre o desenvolvimento das nações, bem como diferentes formas de classificar os países conforme o modelo de desenvolvimento tecnológico, econômico, social e humano que apresentam. Uma forma é pelo desenvolvimento tecnológico, que envolve a fabricação de produtos industrializados, a sua comercialização e o seu consumo. Dessa compreensão também deriva a classificação dos países em centrais e periféricos. Os países compreendidos como ocupando a periferia existiriam orbitando em torno dos que são compreendidos como localizados no centro, numa espécie de dependência dos primeiros para com os segundos, sendo essa perspectiva a base da Teoria da Dependência.
A outra forma de tratar o desenvolvimento das sociedades é classificá-las por sua expansão geopolítica, a partir da relação de dominação e subordinação econômica de umas para com as outras. Nesse ótica, há países imperialistas e os a eles subordinados, cuja dominação se dá, principalmente, pelo jogo de forças geopolítico, conforme Martins.5
As Teorias do Desenvolvimento têm origem no contexto da Segunda Grande Guerra (1939–1945), cujas análises têm foco na economia, visando a reconstrução dos países destruídos pela guerra e a estabilidade econômica dos mesmos. À época, líderes das principais nações de economia capitalista almejavam estabelecer o compromisso global em torno desses objetivos. A Organização das Nações Unidas – ONU, o Banco Mundial e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento – BIRD, por exemplo, foram criados nesse contexto e para esses fins.6
O Banco Mundial e o BIRD (que integra o primeiro) podem ser compreendidos como o braço econômico dessa proposta. Criados em 1944 e 1945, respectivamente, com sede nos Estados Unidos da América – EUA, atuam como mediadores entre os países financiadores e aqueles que buscam empréstimos para promoverem o seu próprio desenvolvimento. Já a ONU poderia ser compreendida como o braço ideológico. Criada em 1945, sob a égide de promover a paz no Globo Terrestre e uma aliança de cooperação entre os países. Ainda naquele contexto, em 1947, começava a se estabelecer o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade – GTT), visando regular a relação comercial entre os países. Da GTT nasce a Organização Mundial do Comércio – OMC, na década de 1990.
As principais instituições financeiras atuantes e que se apresentavam com objetivos de promover a paz, de viabilizar a reconstrução dos países e garantir-lhes estabilidade econômica, foram criadas a partir das deliberações da Conferência de Bretton Woods, em 1944, ocorrida nos EUA. Essa Conferência fora promovida pelas principais potências capitalistas da época, tendo à frente os EUA e fora articulada sob a justificativa de harmonizar e revitalizar as nações, visando a paz mundial. Tratava-se de um grande acordo econômico, com a participação de quarenta e quatro países, entre eles, o Brasil. Naquela Conferência ocorriam debates de economista renomados, representantes de duas grandes potências: John Maynard Keynes (Grã-Bretanha) e Harry Dexter White (EUA). A ideia do Fundo Monetário Internacional – FMI nasce também nessa Conferência, sendo criado oficialmente em 1945.7,8
O Banco Mundial e a OMC foram produtos dos acordos estabelecidos na Conferência de Bretton Woods. Tais acordos se refletem na economia dos países até a atualidade. Ali, abriram-se os espaços para a política monetária de Milton Friedman, para o avanço e a solidificação de instituições financeiras de âmbito mundial, para as ideias liberais e para a globalização. Naquele momento, o capitalismo se estabelecia como o sistema socioeconômico predominante naquele novo ordenamento mundial.7,8
O Banco Mundial se estrutura em cinco instituições financeiras interligadas, sendo o BIRD a primeira a ser criada. Forma o Grupo Banco Mundial as seguintes instituições: BIRD; Associação Internacional de Desenvolvimento (International Development Association – IDA); Sociedade Financeira Internacional (International Finance Corporation – IFC); Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (Multilateral Investment Guarantee Agency – MIGA); Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (International Centre for Settlement of Investment Disputes – ICSID). Cada uma dessas instituições é especializada em uma área de desenvolvimento. Quando se fala de Banco Mundial, tende-se a se referir ao BIRD e à IDA.
Desde as origens do FMI, os EUA eram o seu principal credor e aquele Fundo exigia ações de austeridade aos países a quem fornecia empréstimos, induzindo a privatizações e à redução de gastos com políticas públicas para garantir que conseguissem quitar suas dívidas para com ele. Isso tendia a beneficiar os EUA e o próprio sistema capitalista. Por outro lado, a conversibilidade ouro-dólar para as transações comerciais, garantidas naquela Conferência, beneficiava sobremaneira os EUA, a tal ponto de eles, na década de 1970, terem conseguido desatrelar a moeda norte-americana do valor do ouro e, mesmo assim, manterem a sua hegemonia.7,8
Percebe-se, assim, que países classificados como desenvolvidos e os classificados como subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, fazem parte de um mesmo movimento, de forma que para os primeiros existirem, faz-se necessário a existência dos segundos. Observa-se, também, que o Acordo de Breton Woods ao se apresentar para a harmonia entre os países, para a diminuição de conflitos e para frear os desejos imperialistas de líderes de Estado, ao mesmo tempo, criava, naquele momento, as condições para um novo tipo de imperialismo, onde a dominação pode prescindir da entrada de exércitos em outras terras. A partir daquele momento, a dominação seria mais sutil.
Segundo Barreto,8 aquele sistema de regras estabelecidas na Conferência de Bretton Woods visava regular a economia internacional e reconstruir o capitalismo. Segundo o autor,8
Esse sistema liberal, que primava pelo mercado e pelo livre fluxo de comércio e capitais, foi a base para o maior ciclo de crescimento da história do capitalismo. Com sua moeda regendo o mundo e supremacia nos setores industrial, tecnológico e militar, um país foi o grande vencedor: os Estados Unidos.8(1)
O nível de desenvolvimento passava a se relacionar ao grau de expansão capitalista, ao desenvolvimento econômico das nações, garantidos através das relações econômicas entre os países, que não ocorriam de forma igualitária. No primeiro bloco de países, se estabelecia uma espécie de pacto entre capital e trabalho, cuja relação estava mais nivelada e onde tinham origens as ondas das revoluções industriais. Nos países do outro bloco, governos autoritários e ditatoriais, aliados aos interesses do primeiro bloco, garantiriam o desnivelamento dessa relação, beneficiando o capital. Se naquele primeiro bloco o equilíbrio entre capital e trabalho assegurava, também, o desenvolvimento social, nos países do outro bloco o desenvolvimento social ficaria à espera do bolo crescer para as fatias serem direcionadas às necessidades da população. A ideia vigente era do desenvolvimento econômico, por etapas, impulsionado pela industrialização, numa perspectiva modernizante, pautada na ideologia do progresso.
A principal referência dessa teoria é o economista Walt Whitman Rostow. Nessa Teoria do Desenvolvimento por etapas, ao se classificar o Brasil como país em desenvolvimento, se entende que ele está na segunda etapa, conforme a teoria de Rostow. Ou seja, sai do modelo de economia tradicional, de produção rudimentar, voltada à subsistência, sem a produção de excedentes e passa para a etapa seguinte. Nessa perspectiva, onde enquadram o Brasil, ocorre a transição para a terceira etapa do processo de desenvolvimento (a etapa do arranco). Na etapa dois, etapa da transição, observa-se maior especialização do trabalho, também um processo de modernização tecnológica, de produção de conhecimento, de mudanças de valores e de mudanças sociais e política. Essas mudanças contribuiriam para o aumento da produtividade e para o crescimento econômico, gerando excedentes.6
Hoje o mundo mudou, os EUA dividem a liderança com o bloco que forma a União Europeia. O Brasil, a China e a Índia passam a ser compreendidos como países em desenvolvimento e integram o grupo dos 20 países considerados mais desenvolvidos, o G20, detendo, juntos, 90% do Produto Interno Bruto Mundial – PIB, que é o conjunto de bens e serviços produzidos em um ano.
O fato de o Brasil integrar o G20 gera uma contradição explicativa quando, para fins de justificativa de seus indicadores sociais e de saúde, atribui-se ao fato de ser ainda um país em desenvolvimento. Essa contradição, no entanto, confirma que a produção de riquezas, em si só, não garante melhores condições de vida às populações, nem mesmo equidade na distribuição e acesso a bens e serviços.
Celso Furtado, economista brasileiro, nascido no sertão da Paraíba, em 1920, falecido em 2004, tem uma obra respeitável onde discute a política econômica brasileira e a Teoria do Desenvolvimento. Celso Furtado foi membro da Comissão Econômica para a América Latina – CEPAL, participou dos governos de Juscelino Kubitschek (1956–1961), de João Goulart (1961–1964). Em 1964, teve os seus direitos políticos cassados por dez anos, no período dos governos militares (1964–1985). Em 1979, retorna ao Brasil com o processo de anistia e “em 1984, integra a Comissão de Notáveis que elabora um Plano de Ação para o futuro governo de Tancredo Neves”.6(30)
A CEPAL desenvolveu uma teoria da economia política acerca do desenvolvimento que se diferenciava daquela hegemônica que defendia haver benefícios mútuos entre os países que travavam relações comerciais. O grupo que integra a CEPAL desenvolve uma teoria original que explica o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como interdependentes, introduzindo também a concepção de centro e periferias em suas análises da geopolítica econômica. Em 1940, Raúl Prebisch, membro diretor da CEPAL, introduz essa nova concepção da Teoria do Desenvolvimento ao analisar a questão na América Latina. Ao falar do processo de interdependência entre desenvolvimento e subdesenvolvimento, classifica os países em centrais e periféricos, Prebish sustenta que as relações comerciais entre os países do primeiro bloco com os do segundo se dá em situação desigual, já na natureza do que cada um produz e comercializa. Segundo ele, enquanto os primeiros comercializam produtos industrializados, os segundos, produtos agrícolas e minerais (denominados de commodities) que, embora indispensáveis na produção dos primeiros, são vendidos a preço bem inferior, o que, por si só, já causa desequilíbrio na balança comercial no processo de exportação e importação. Para o grupo do CEPAL, o processo de industrialização determinaria o processo de desenvolvimento.6
Furtado contribui fortemente para o pensamento cepalino, sendo uma das expressões na formulação da Teoria do Subdesenvolvimento e nas reflexões sobre a forma dependente de os países periféricos se inserirem no comércio internacional. Furtado dá centralidade à dimensão do poder em suas explicações sobre a reprodução estrutural do subdesenvolvimento que, para ele, é inerente à estrutura capitalista e decorrente do processo histórico.6(33)
Ao apresentarmos duas das Teorias do Desenvolvimento, evidenciamos que não há uma única forma de definir desenvolvimento, nem a quem ele se destina e, tampouco, de compreender como se chega a ele. As duas teorias aqui apresentadas, todavia, partem do desenvolvimento econômico, embora, por vias diferentes: uma, pela criação de excedentes e a outra, pelo desenvolvimento tecnológico. Essas duas teorias também diferem na forma de explicar a existência de países mais desenvolvidos e menos desenvolvidos, usando distintas formas de nomeá-los: desenvolvidos vs. em desenvolvimento; desenvolvidos vs. subdesenvolvidos; centrais vs. periféricos. Embora com diferenças, ambas estão centradas nas necessidades do capital.
Uma outra forma de conceber desenvolvimento traz o ser humano para a centralidade da análise, mais precisamente, dá centralidade às necessidades humanas. Nesse sentido, pensa-se no desenvolvimento do ser humano e de suas potencialidades criativas. Assim, uma outra forma de se pensar desenvolvimento seria adotando categorias de análise como trabalho, alienação e mais-valia na base da acumulação capitalista.9
O capitalismo se sustenta na exploração do trabalho que, para ser eficaz, cria uma massa de trabalhadores de reserva, garantindo o barateamento da mão de obra ativa. Esse processo de trabalhadores fora do mercado de trabalho – que se dá na medida em que o capitalismo pode prescindir de muitos com a divisão social, técnica e internacional do trabalho–, intensifica-se, cada vez mais, com o avanço científico e tecnológico, visto a possibilidade de substituição do trabalho humano pelas máquinas, como a robótica, por exemplo.
Para Marx,10 o capital não tem origem na compra e na venda de mercadorias, mas no processo de sua produção. Nesse sentido, a transformação do dinheiro em capital, ou seja, no mais valor, não ocorre na circulação de mercadorias, mas antes. O capital, e claro, o aumento do capital, é gerado no circuito de extração de mais-valor, desde sua fabricação até a sua circulação. Ou seja, nasce no processo de compra e consumo da força produtiva durante a realização do trabalho.
Nesse sentido, o mais valor só pode ocorrer quando se compra mercadorias que produzem valor e essas mercadorias são a força de trabalho humana e os meios de produção. Assim, o capital se forma e se reproduz na medida em que o valor na forma de dinheiro compra mercadorias capazes de produzir valor maior que os seus próprios custos.
As mercadorias não se tornam comensuráveis por meio do dinheiro. Ao contrário, é pelo fato de todas as mercadorias, como valores, serem trabalho humano objetivado e, assim, serem, por si mesmas, comensuráveis entre si, que elas podem medir conjuntamente seus valores na mesma mercadoria específica e, desse modo, convertê-la em sua medida conjunta de valor, isto é, em dinheiro. O dinheiro, como medida de valor, é a forma necessária de manifestação da medida imanente de valor das mercadorias: o tempo de trabalho.10(231)
Isto significa que a força produtiva (trabalho humano e meios de produção) em atividade produz o valor que paga a si própria, produz valor acima de seu preço e produz ainda valor excedente, ou seja, mais valor, a que Marx10 denomina mais-valia. Essa produção de mais valor, de mais-valia, se dá na quantidade de mercadorias que são produzidas durante a jornada de trabalho dos trabalhadores. Assim, o capitalista não garante a sua riqueza no mercado, mas no processo de produção. E o ciclo de reprodução do capital é ininterrupto: dinheiro investido em meios de produção e força de trabalho que geram valor muito além do investido na produção de mercadorias que, no mercado, se transformam em dinheiro, que retorna ao processo produtivo produzindo um valor muito superior. Esse ciclo gira infinitamente, aumentando o capital do investidor, mas mantendo o valor pago ao trabalhador. A riqueza não é redistribuída, permanece concentrada.10
O processo produtivo, nessa lógica, não garante as necessidades humanas da massa trabalhadora, tampouco, o desenvolvimento humano, entendido como a potência e as possibilidades voltadas para o processo criativo. O processo produtivo se volta para o desenvolvimento econômico, para a ampliação do capital. Nessa perspectiva da ampliação e acumulação capitalista, o desenvolvimento humano está subordinado à capacidade de consumo de bens e serviços que, por sua vez, está subordinado ao valor conseguido por meio da venda da força de trabalho.
Nesse processo, o trabalhador é destituído de sua condição humana, é transformado em meio de produzir valor, em instrumento do capital. O trabalhador é coisificado ao vender a sua força de trabalho, que se transforma também em mercadoria a ser consumida no processo produtivo. O trabalhador, nesse momento, sofre um processo de alienação: vende a sua força de trabalho como se ela lhe fosse alheia, como se, para consumi-la, o processo produtivo não tivesse que consumir o próprio trabalhador. Ao vender a sua força produtiva, o trabalhador não mais decide sobre o que será produzido, nem para que e nem para quem servirá o produto de seu trabalho. O trabalhador apenas produz, de forma que, ao final de um processo coletivo de trabalho, ele nem mais reconhece a parte que fez e muito menos compreende o valor de seu trabalho no processo de reprodução capitalista. Tudo se torna estranho ao trabalhador, que não mais aplica a sua força de trabalho para a criação de algo para a sua necessidade. O seu objetivo agora se volta para o que lhe será devolvido depois de um período de dias trabalhado. O que o trabalhador compreende como produto de seu trabalho é o valor na forma de salário. O trabalho alienado é uma condição, portanto, para a produção do mais valor, da mais-valia.10
A teoria de desenvolvimento direcionada para o ser humano rompe com essa lógica de acumulação capitalista, visando que o processo produtivo seja centrado nas necessidades humanas, não nas necessidades do capital. Acumulação capitalista e satisfação das necessidades humanas não cabem em uma mesma teoria de desenvolvimento, tampouco em um mesmo projeto de sociedade. Nesse sentido, ao se refletir sobre a relação entre indicadores sociais e de saúde e o desenvolvimento local ou de nações, fica a pergunta: sobre qual Teoria de Desenvolvimento se fala?
Ainda no campo das análises marxistas estão aqueles autores que desenvolveram a Teoria Marxista da Dependência – TMD, formulada pelos brasileiros Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos, obtendo adesão do alemão André Gunder Frank.11 Trata-se de uma leitura do desenvolvimento que relaciona a teoria do valor, de Karl Marx, à Teoria Marxista do Imperialismo, com Lênin entre aqueles pensadores que a formularam.12
Em linhas gerais, para André Gunder Frank,13 o desenvolvimento capitalista de um lado gera o subdesenvolvimento do outro na medida em que alguns poucos países se apropriam do excedente econômico de muitos outros. O autor13 compreende que o capitalismo se organiza internacionalmente em um centro metropolitano com satélites periféricos. Estes últimos expropriados ao longo da história pelos que compõem o centro metropolitano, num processo contínuo. Dessa forma, considera-se que o subdesenvolvimento é inerente à estrutura do sistema capitalista.13
Parte, então, da TMD o entendimento de haver uma relação de subordinação dos países periféricos para com os centrais, relações essas compreendidas como imperialistas. Segundo Luce,12
[...] a TMD oferece algumas das explicações mais consistentes para questões como: o fato da maioria das pessoas vivendo em favelas concentrarem-se em lugares do mundo como a América Latina; ou o fato de um país como o Brasil constar no rol das dez maiores economias em termos de PIB, mas apresentar indicadores sociais entre a septuagésima e octogésima posições no índice de desenvolvimento humano das Nações Unidas; ou, ainda, a tendência histórica de países como os latino-americanos registrarem, de maneira estrutural, jornadas de trabalho mais extensas e níveis salariais mais baixos em comparação com as economias dominantes, configurando um regime de superexploração brutal.12(9)
Na continuidade das análises marxistas acerca do desenvolvimento do capitalismo e da relação de desigualdade estabelecida entre o bloco dos países que lideram os avanços tecnológicos e científicos e que determinam os saltos nos processos industriais (as chamadas revoluções industriais) e o bloco dos países cujas economias giram em torno dos primeiros, encontra-se a Teoria do Imperialismo, desenvolvida por Lênin.14
Na perspectiva da Teoria do Imperialismo, considerado como etapa avançada do capitalismo, a guerra entre os países que buscam expandir os seus domínios não se dá por tanques de guerra, mas pela política econômica internacional, cujos instrumentos são, entre outros, as empresas multinacionais, o controle do mercado global e as formas sutis de colonialismo e neocolonialismo que se estabelecem. Essa teoria se respalda no fato de que, no processo histórico, os avanços técnico e tecnológico não terem garantido qualidade de vida à toda a humanidade.
Assim Plínio Arruda14 explica a fase imperialista do capitalismo:
Para os povos que fazem parte da periferia do sistema capitalista mundial, os novos tempos tornaram-se particularmente sombrios. As janelas de oportunidades que seriam abertas pela participação na ordem global revelaram-se verdadeiras armadilhas. As políticas de liberalização da economia desarticularam os centros internos de decisões, deixando a região à mercê dos capitais internacionais. As promessas de que as ondas de inovação tecnológica e os movimentos de internacionalização de capital permitiriam uma aceleração do crescimento e uma socialização dos novos métodos de produção e dos novos bens de consumo não foram cumpridas. A difusão desigual do progresso técnico acentuou as assimetrias na divisão internacional do trabalho e exacerbou as características predatórias do capital, revitalizando formas de superexploração do trabalho e de depredação do meio ambiente que se imaginavam superadas. Submetidas à ferocidade da concorrência global e ao despotismo das potências imperialistas, as sociedades que fazem parte da periferia do sistema capitalista tornaram-se presas de um processo de reversão neocolonial que coloca em questão a sua própria sobrevivência como Estado nacional capaz de controlar minimamente as taras do capital. Não é que o Estado tenha se enfraquecido. Quando é para defender e impulsionar os interesses do grande capital, o poder estatal se revela mais forte do que nunca. O que ficou definitivamente comprometido é o caráter público do Estado, sua atuação em função de interesses que, de alguma forma, contemplem as necessidades do conjunto da população. Por essa razão, na periferia da economia mundial o descontrole da sociedade nacional sobre o desenvolvimento capitalista foi levado ao paroxismo.14(9,10)
As Teorias Marxistas de Desenvolvimento questionam aquelas que defendem a acumulação capitalista. Na compreensão das Teorias Marxistas de Desenvolvimento, a definição deve estar centrada no desenvolvimento humano, que se dá pela emancipação humana e pela liberdade criativa. Nessa perspectiva, o desenvolvimento humano não se dá pelo processo de industrialização dentro do modelo social e econômico capitalista, fazendo-se necessário romper as suas estruturais para superar todas as mazelas que decorrem do processo de exploração.
Vimos que há diferentes e divergentes teorias do desenvolvimento. Umas dão centralidade à economia e à industrialização, compreendendo assim o grau de desenvolvimento das nações. Nessa perspectiva, compreende-se que é a capacidade de produzir, comercializar, consumir produtos industrializados e gerar excedentes que garante o desenvolvimento, corroborando para maior acesso da população a bens, e serviços, melhorando, assim, os indicadores sociais e de saúde. As diferenças entre os economistas que seguem nessa linha são poucas e estão situadas no papel do Estado, em sua relação com o mercado e na percepção sobre quem são os principais atores do processo de desenvolvimento: o Estado ou os empresários.9
Outras teorias de desenvolvimento, as baseadas na crítica marxista, por outro lado, compreendem que o subdesenvolvimento é estrutural, inerente ao sistema capitalista, produto do processo histórico de expropriação por parte daqueles países classificados de desenvolvidos. Ainda baseado nessa abordagem, na fase imperialista do capitalismo, o mundo convive com o paradoxo da potencialidade dos avanços tecnológicos e científicos, a possibilidade de garantir melhores condições de vida à humanidade e, ao mesmo tempo, com a concentração de miséria, doenças e altos índices de mortes por causas evitáveis em vários pontos do planeta, que se avolumam devido aos crescentes níveis de desemprego, subemprego, precarização do trabalho, novas modalidades de relações de trabalho, incluindo as análogas à escravidão, e também convive com a expulsão de massas de trabalhadores para outros países, impelidos pela fome, pela guerra etc.
Esse processo é compreendido como sendo determinado pelo desejo de expansão planetária do capitalismo, que se dá pelas relações desiguais entre os países no mercado internacional, pela divisão internacional do trabalho e pelo fato de os avanços técnicos e tecnológicos serem determinados pelas necessidades de expansão capitalista, mesmo causando a deterioração das condições de vida de grande parte da população mundial, mesmo concorrendo para a morte prematura de crianças, adolescentes, homens e mulheres, inclusive daquelas que se encontram no período gravídico-puerperal.
Considerando as diferentes perspectivas e projetos de sociedade inerentes às diferentes teorias do desenvolvimento, o termo desenvolvimento em si não é neutro, ele está impregnado do conteúdo ideológico intrínseco à Teoria de Desenvolvimento a que se relaciona a sua compreensão. Nesse sentido, a Teoria de Desenvolvimento precisa ser explicitada tanto nos discursos de agências nacionais, internacionais e de pesquisadores quanto nos textos acadêmicos e científicos, pois da raiz do desenvolvimento que defendem saem as propostas apresentadas para a intervenção na realidade de que tratam.
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