Crit Revolucionária, 2023;3:e017
Artigo original
https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2023.v3.26
i Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, Grupo de Estudo e Pesquisa Sobre Estado e Luta de Classes na América Latina – Práxis, Unidade Acadêmica de Ciências Sociais. Campina Grande, PB, Brasil.
Autor de correspondência: Kleiton Wagner Alves da Silva Nogueira kleiton_wagner@hotmail.com
Recebido: 16 jul 2023
Revisado: 27 nov 2023
Aprovado: 10 jan 2024
https://doi.org/10.14295/2764-49792-RC_CR.v3.26
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil – CAPES – Código de Financiamento 001
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O ascenso contemporâneo de governos de extrema-direita: Bolsonaro no Brasil; Trump nos EUA; Erdoğan na Turquia; e as manifestações extremistas na Itália com Meloni; e na França com Le Pen, inquiriu caracterizações como: fascismo do século XXI; neofascismo; fascismo tropical etc. Diante desse contexto, objetivamos no presente artigo, realizar um itinerário reflexivo sobre a produção teórica do marxismo clássico sobre o fascismo do entreguerras. Metodologicamente, nos baseamos na produção autores como: Leon Trotsky; Clara Zetkin; e Antonio Gramsci. A partir da leitura e seleção dos principais argumentos desses intelectuais, entendemos que o fascismo do entreguerras implicou não apenas numa ação burguesa direcionada à eliminação violenta dos organismos políticos socialistas e comunistas, mas num fenômeno classista, que teve na pequena burguesia a consolidação de um fenômeno de massas com vistas a manutenção da ordem capitalista.
Descritores: Fascismo; Extrema-direita; Capitalismo; Marxismo.
EL ANáLISIS HISTóRICO DEL NAZIFASCISMO A TRAVéS DEL MARXISMO CLáSICO: PERSPECTIVAS PARA COMPRENDER EL AVANCE DE LA EXTREMA DERECHA EN LA CONTEMPORANEIDADResumen: El ascenso contemporáneo de los gobiernos de extrema derecha: Bolsonaro en Brasil; Trump en los Estados Unidos; Erdogan en Turquía; y las manifestaciones extremistas en Italia con Meloni; y en Francia con Le Pen, indagó en caracterizaciones como el fascismo del siglo XXI; neofascismo; fascismo tropical. Dado este contexto, nos proponemos en este artículo realizar un itinerario reflexivo sobre la producción teórica del marxismo clásico sobre el fascismo de entreguerras. Metodológicamente nos basamos en la producción de autores como: Leon Trotsky; Clara Zetkin; Evgeni Pachukanis; Antonio Gramsci; Daniel Guérin; Nicos Poulantzas y Ernest Mandel. De la lectura y selección de los principales argumentos de estos intelectuales, se comprende que el fascismo de entreguerras implicó no sólo una acción burguesa encaminada a la eliminación violenta de las organizaciones políticas socialistas y comunistas, sino un fenómeno clasista, que tuvo en la pequeña burguesía la consolidación de un fenómeno de masas con miras a mantener el orden capitalista. Descriptores: Fascismo; Extrema derecha; Capitalismo; Marxismo. |
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THE HISTORICAL ANALYSIS OF NAZI-FASCISM THROUGH CLASSICAL MARXISM: PERSPECTIVES TO UNDERSTAND THE ADVANCE OF THE EXTREME RIGHT IN CONTEMPORARY TIMESAbstract: The contemporary rise of far-right governments: Bolsonaro in Brazil; Trump in the US; Erdoğan in Türkiye; and the extremist demonstrations in Italy with Meloni; and in France with Le Pen, he inquired into characterizations such as 21st century fascism; neofascism; tropical fascism. Given this context, we aim in this article to carry out a reflective itinerary on the theoretical production of classical Marxism on interwar fascism. Methodologically, we base ourselves on the production of authors such as: Leon Trotsky; Clara Zetkin; Evgeni Pachukanis; Antonio Gramsci; Daniel Guerin; Nicos Poulantzas and Ernest Mandel. From the reading and selection of the main arguments of these intellectuals, we understand that interwar fascism implied not only a bourgeois action aimed at the violent elimination of socialist and communist political organizations, but a classist phenomenon, which had in the petty bourgeoisie the consolidation of a phenomenon of masses with a view to maintaining the capitalist order. Descriptors: Fascism; Far right; Capitalism; Marxism. |
Na contemporaneidade, a ascensão de governos de extrema-direita chama a atenção da comunidade acadêmica por se tratar de um fenômeno de caráter internacional. Mediante pautas cristãs conservadoras, questionamento aos movimentos feministas; aos Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Queer, Interssexuais, Assexuais e Pansexuais (LGBTQIAP+) transvestidos de reacionarismo e negacionismo científico, e da prática direta da xenofobia; misoginia; transfobia e homofobia, esse ascenso está associado a defesa do capitalismo como único modo de produção possível, sendo funcional, portanto, para as frações burguesas ao redor do mundo, que apresentam hegemonia mediante o neoliberalismo.
O caso brasileiro, com a ascensão do governo Bolsonaro é a materialização dessa lógica. Frente ao esgotamento conciliatório promovido pelos treze anos de gestão do capitalismo dependente brasileiro realizado pelo Partido dos Trabalhadores – PT, e diante dos impactos da crise econômica mundial de 2008 na conjuntura doméstica, observamos um giro à direita da gestão petista já no segundo mandato da ex-presidente Dilma Roussef (2015–2016), impactada pelas manifestações de ruas de junho de 2013 que fugiram ao controle das burocracias sindicais da Central Única dos Trabalhadores – CUT e Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil – CTB, e pelos ataques da mídia com a operação lava-jato, assistimos em 2016 ao golpe midiático-parlamentar-institucional que deu lugar a Michel Temer (2016–2018), do Movimento Democrático Brasileiro – MDB para o aprofundamento da agenda neoliberal no país. Frente à crise brasileira, que não foi apenas econômica, mas política e social, a direita tradicional encarnada em partidos como Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, diante da crise de direção do PT, não conseguiu em 2018 capitalizar a conjuntura e se alçar ao poder, surgindo nesse espaço Bolsonaro (2019–2022), que ao se apresentar como candidato outsider, cristão e defensor dos valores da honestidade, heteronormatividade e liberdade capitalista, forjou caminho à presidência via fake news e de promessas de limpeza da corrupção.
O ascenso de Bolsonaro no Brasil não destoa, no plano internacional, do caso estadunidense com Donaldo Trump, que ao questionar o consenso globalizador diante da guerra comercial com a China, buscou nas eleições em 2016 usar estratégias midiáticas baseadas em fake news e de apelação para o reacionarismo estadunidense. Movimento semelhante é encontrado em países como a Itália, berço do fascismo do entreguerras, que em 2022 elegeu Giorgia Meloni, líder do partido de extrema-direita Fratelli d’Italia, e que no decorrer de sua vida política fez parte do Movimento Sociale Italiano – MSI, do Alleanza Nazionale – AN e do Il Popolo della Libertà – PdL, partidos de extrema-direita. Casos semelhantes podem ser identificadas na França com Marine Le Pen do Rassemblement National; Turquia por meio de Erdoğan do Adalet ve Kalkınma Partisi; e na Polônia com o ultraconservador Andrzej Duda do Prawo i Sprawiedliwość.
Pelo menos desde a crise mundial de 2008 o centro de gravidade da política internacional tem se alterado, exigindo ataques às classes trabalhadores mediante retirada de direitos trabalhistas e aprofundamento das contrarreformas nos campos das políticas sociais e trabalhistas frente ao imperativo do rentismo e da queda tendencial da taxa de lucro. Todavia, tais processos no capitalismo não são novidades, e as duas grandes guerras vivenciadas pela humanidade no século XX foram frutos da debilidade do imperialismo e das disputas interburguesas no plano internacional, no qual se deu o ascenso do fascismo. Sendo assim, longe do mimetismo de tomar os processos históricos como repetíveis nas mesmas condições e formas, avaliamos que a interpretação histórica do fascismo no entreguerras realizada por três intelectuais marxistas do século XX: Leon Trótski; Clara Zektin e Antonio Gramsci lançam luz sobre elementos que possibilitam compreender a atual quadra histórico.
Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é realizar um itinerário reflexivo sobre a produção teórica do marxismo clássico sobre o fascismo do entreguerras. Metodologicamente, nos baseamos na produção dos intelectuais citados como uma forma de apreendemos elementos históricos para pensarmos também a atualidade do capitalismo internacional e do ascenso dos movimentos de extrema-direita. Para tanto, o texto em tela está subdividido em quatro partes para além desta introdução e das considerações finais: na primeira trazemos a análise de Trótski sobre a frente única operária e sua caracterização do nazifascismo como um fenômeno atrelado ao capitalismo; em seguida, numa interpretação semelhante, abordamos o pensamento de Clara Zetkin; na terceira parte debatemos as considerações de Antonio Gramsci sobre sua análise do caso italiano, e por último e não menos importante, refletimos sobre a atualidade da questão do ascenso extremista.
Leon Trótski (1879–1940) foi um revolucionário bolchevique, que teve participação ativa na revolução russa de 1917. Além de estrategista, contribuiu na elaboração da análise a respeito da degeneração da terceira internacional comunista pelo stalinismo; do fenômeno da burocracia partidária como um fenômeno político; e de temas associados à revolução proletária internacional. Sua análise acerca do nazifascismo é realizada em combate a depreciação e rebaixamento do marxismo pelo stalinismo. Com a morte de Lênin em 1924 e o domínio da burocracia stalinista do Partido Comunista da União Soviética – PCUS, perdeu-se a perspectiva da tática e estratégia revolucionária, e o próprio partido se torna um agente antirrevolucionário e fomentador de derrotas em todo o mundo.1 Nesse contexto de degeneração e burocratismo, a tarefa de Trótski foi tripla: além de fomentar uma oposição de esquerda ao processo de burocratização e stalinismo, elaborou a quarta internacional como elemento de luta para retomar a perspectiva da revolução proletária na perspectiva internacionalista, bem como realizar análises sobre a ascensão da extrema-direita na Europa, antevendo a Segunda Guerra Mundial.
Acerca da sua análise sobre o fascismo, Trótski2 considera o fascismo na Itália como um movimento espontâneo de massas, mas que contava com líderes de base. Em sua origem, seria um movimento plebeu, mas que no decorrer do seu desenvolvimento foi financiado pelo grande capital. Essa origem teria como demiurgo a perspectiva de classe, no qual a pequena-burguesia, o lumpemproletariado e alguns setores das classes trabalhadoras seriam agentes moleculares dessa força plebeia. No caso alemão haveria um processo análogo: movimento de massas e líderes que usaram uma retórica socialista desvirtuadamente.
Chama atenção que a perspectiva das classes sociais sempre está presente na sua análise sobre o tema. Em nossa avaliação essa postura metodológica é profícua por ser superior às análises centradas na subjetividade das lideranças, da personalidade de Mussolini e Hitler, dando a entender que a história concreta se move mais pela ação subjetiva dos homens, do que por processos concretos e materiais existentes nas relações sociais de produção. Nesse sentido, ao observar a questão das classes sociais que conformam o fascismo, Trótski2 explica o seguinte:
A base genuína do fascismo é a pequena burguesia. Na Itália, ela tem uma base muito grande — a pequena burguesia das cidades e vilas, e do campesinato. Na Alemanha, igualmente, há uma ampla base para o fascismo. Na Inglaterra esta base é menor, já que os trabalhadores são a ampla maioria da população; e o estrato camponês ou rural é um setor insignificante.2(18)
A atenção à questão das classes sociais é um ponto central em Trótski porque diante de um contexto marcado pelo imperialismo2 no entreguerras, de crises, guerras e revoluções, e diante da experiência concreta da revolução russa de outubro de 1917, a burguesia internacional sentiu a força do proletariado na constituição de uma nova sociabilidade. É preciso destacar que a Primeira Guerra Mundial causou danos à configuração imperialista mediante a partilha territorial do continente africano e a degradação das condições de vida das massas. A insurgência do movimento fascista na Europa também se dá em meio aos processos revolucionários de países como Itália e Alemanha, que derrotadas, tiveram a reação autocrática burguesa unidas pela manutenção da sociabilidade capitalista. Nesse sentido, diante dessa conjuntura de influxos revolucionários e da crise capitalista, Trótski2 argumenta que é necessário analisar a correlação de forças entre as três classes fundamentais do modo de produção capitalista na época: grande burguesia dirigida pelo capital financeiro, pequena burguesia que vive na oscilação entre a grande burguesia e a terceira classe fundamental: o proletariado. Ele interpreta que a grande burguesia não pode realizar a manutenção de sua dominação sem o apoio da pequena burguesia urbana e agrária, bem como nos sedimentos reacionários e nas novas classes médias formadas pela burocracia estatal e profissionais liberais.
Ao analisar a conjuntura alemã de ascensão do nazismo, Trótski2 advertiu que o crescimento do nacional-socialismo (nazismo) era a expressão de dois principais fatores: i) da profunda crise social que jogou as massas pequeno burguesas para uma posição de proletarização; e ii) da ausência de um partido revolucionário que se apresentasse como um guia revolucionário para um modo de sociabilidade balizado pelas reais necessidades dos indivíduos e pela extinção das classes sociais e exploração do trabalho, em suas palavras ele afirma o seguinte: “se o Partido Comunista é um Partido de esperança, o fascismo, como movimento de massas, é então um partido de desespero contrarrevolucionário”.2(32)
Na Alemanha, o Kommunistische Partei Deutschlands – KPD, em especial seus dirigentes, achavam que o fascismo tinha chegado tarde em solo alemão, o que promoveria derrotas no campo eleitoral. Em meio a essa visão equivocada, a pequena burguesia resolveu não apostar suas fichas no KPD, por não enxergar nessa direção nenhuma medida que poderia melhorar sua sorte. O marasmo frente a ascensão fascista na Alemanha era de fato um perigo real e para Trótski2 significava a expressão aguda de uma situação sem saída do regime burguês, ao mesmo tempo, revelava as fraturas da posição social-democrata em relação a esse regime e da fraqueza do KPD em destruir o regime capitalista. Contudo, mesmo após as análises e avisos da ascensão do fascismo e da forma de enfrentá-lo numa frente única proletária com independência de classe, a teoria do social-fascismo, oriunda da terceira internacional já burocratizada pelo stalinismo foi abraçada pelo KPD:
A condição de êxito reside, pois, no abandono da teoria e da prática do ‘social-fascismo’, cuja nocividade se torna perigosa em condições atuais [...] Será preciso, inevitavelmente, realizar acordos contra o fascismo, com as diversas organizações e frações social-democratas, apresentando, diante das massas, condições precisas aos seus dirigentes.2(48)
A política de frente única seria a chave tática que Trótski percebia como arma para derrotar o nazismo. Os nazistas seriam derrotados se o KPD realizasse a união das classes operárias de modo a transformá-la num pólo de aglutinação das massas oprimidas. Contudo, sob influência stalinista o partido reforçou uma posição sectária e cega com a teoria do social-fascismo, aproximação com o chauvinismo, e até mesmo pela imitação do fascismo como um meio de fazer concorrência a esse movimento. Diante da inércia e fomentação de derrotas da internacional comunista com o social-fascismo, Trótski alertou para o cenário de terra arrasada do proletariado com a catástrofe que se avizinhava no período:
A tomada do poder pelos ‘nacional-socialistas’ terá como efeito, antes de tudo, a exterminação da elite do proletariado alemão, a destruição de suas organizações; ela lhe tirará toda a fé em si mesmo e no seu futuro [...] a obra infernal do fascismo italiano aparecerá provavelmente insignificante; seria uma experiência quase humanitária em comparação com o que poderia fazer o nacional-socialismo alemão. Bater em retirada, dizeis! Vós, que ontem fostes os profetas do ‘terceiro período’! Os líderes e as instituições podem bater em retirada. Alguns indivíduos podem esconder-se. Mas a classe operária, diante de um poder fascista, não terá abrigo, não saberá esconder-se [...].2(63)
Esse tom profético não era fruto de uma análise idealista, mas do método dialético inspirado na produção marxiana e leninista da análise concreta da situação concreta. No período de escrita dessas reflexões, Trótski² argumentou que a principal força dos fascistas estava em seu conteúdo numérico (abundância de votos nas eleições), não passando de uma poeira da humanidade. Por esse motivo que a função histórica do fascismo não era fomentar uma nova sociabilidade, mas do aprofundamento, violentamente, do regime burguês de dominação. O fascismo coloca de pé as classes sociais antagônicas ao operariado, militarmente e com os auspícios do capital financeiro blindado sob a epiderme de um Estado oficial que se orienta pela destruição das organizações das classes trabalhadoras, das revolucionárias às moderadas:
O fascismo é um sistema de Estado particular, baseado no extermínio de todos os elementos da democracia proletária na sociedade burguesa. As tarefas do fascismo não consistem somente em destruir a vanguarda proletária, mas também em manter toda a classe num estado fragmentação forçada. Para isto, a exterminação física da camada operária mais revolucionária é insuficiente. É preciso destruir todos os pontos de apoio do proletariado e exterminar os resultados do trabalho de três quartos de século da social-democracia e dos sindicatos.2(64)
Se num balanço historiográfico colocarmos as análises de Trótski à prova dos fatos concretos, sem revisionismo e manipulação stalinista, perceberemos que suas análises estavam acertadas, especialmente no que diz respeito a tomada do poder pelos nazistas na Alemanha com Hitler e a escala de horror que foi sendo realizada até a Segunda Guerra Mundial com amplo extermínio de fileiras revolucionárias e das classes trabalhadoras.
Clara Zetkin (1857–1933) foi uma marxista revolucionária alemã. Militante feminista, partiu dela o impulsionamento do primeiro Dia Internacional das Mulheres no ano de 1911. Em 1920 ela construiu uma frente única de luta contra a ascensão fascista na Alemanha. Para ela, o fascismo encarava as classes trabalhadoras como inimigas, sendo, portanto, a ofensiva direta da burguesia internacional:
[...] o fascismo apresenta-se muito mais como uma punição pelo fato de que o proletariado não tenha sustentado e aprofundado a revolução que foi iniciada na Rússia. E a base do fascismo não repousa sobre uma pequena casta, mas em amplas camadas sociais, grandes massas, alcançando inclusive, o proletariado.3(34)
Em sua interpretação este movimento seria a expressão da decadência e da crise do modo de produção capitalista e do Estado burguês. Com a Primeira Guerra Mundial houve a destruição da economia mundial implicando na elevação do flagelo das classes trabalhadoras e pauperização da pequena burguesia. Esse cenário de terra arrasada, com vastas camadas buscando novas possibilidade de sobreviver, com baixos e médios empregados do Estado, oficiais militares de baixas patentes que após a Primeira Guerra Mundial não encontraram emprego e nem formação profissional, acabaram sendo o combustível para a ascensão do movimento fascista. Todavia, não teria sido apenas o fator material-concreto de sobrevivência e qualidade de vida que afetou a subjetividade dessas massas, o outro foi a traição das direções reformistas ao movimento revolucionário internacional dos trabalhadores. A esperança reformista de que uma mudança global em direção ao socialismo viria a partir de reformas no capitalismo foi frustrada pela própria dinâmica do capital, que em seu seio não comporta reformas que possam ter longa duração:
A esses burgueses decepcionados com o socialismo juntaram-se forças proletárias. Todos os desiludidos — de origem burguesa ou proletária —, contudo, abandonam uma força intelectual preciosa que permitiria a eles vislumbrar um futuro de esperança e luz para além do presente sombrio.3(40)
As massas que ao olharem para direções reformistas que faziam de tudo, menos ter independência de classe para libertá-las dos grilhões da exploração capitalista, e as classes intermediárias com receio da proletarização e pauperização olharam à direita e enxergaram o fascismo como uma saída para seus pesadelos de classe:
As massas aos milhares se juntaram ao fascismo. Ele se transformou em um asilo para todos os desabrigados políticos, os socialmente desenraizados, os destituídos e desiludidos. E o que as massas não esperavam mais da classe proletária revolucionária e do socialismo, agora esperam que seja atingido pelos elementos capazes, fortes, determinados e impetuosos de todas as classes. Todas essas forças deveriam unir-se em uma comunidade. E essa comunidade, para os fascistas, é a nação. Imaginam erroneamente que a disposição sincera para a criação de uma realidade social nova e melhor é poderosa o suficiente para superar todos os antagonismos de classe.3(41)
Esse giro ao fascismo tem um simulacro num Estado forte e autoritário elevado sobre os distintos partidos políticos e classes sociais. Um Estado que poderia alterar a sociedade com base na ideologia e no programa fascista. Se olharmos de modo mais atento para essa composição de classes do fascismo clássico veremos, em acordo com Zetkin,³ que em certo sentido é cômodo para a grande burguesia ter um cão de guarda como o fascismo. Essa burguesia enxergou oportunamente as matilhas fascistas que alimentadas pela violência, fizeram a defesa de seus interesses. Essa burguesia apresentou como alvo a manutenção da sua dominação de classe mediante a exploração do capital sobre o trabalho. Contudo, isoladamente ela não conseguiu elaborar e manter sua hegemonia, especialmente num quadro onde os impactos da sociabilidade capitalista deram mostras concretas de debilidade com o aumento do proletariado e da degradação das condições de vida dessa classe e da pequena burguesia.
Mas, essa opressão de classe já não se daria pelo Estado capitalista? Em parte, sim, mas Zetkin3 nos mostra que, com o tempo até mesmo esse Estado capitalista perde capacidade de gestão das ebulições sociais. Perde-se a capacidade financeira e moral para realizar o controle de classe de modo que a grande burguesia necessita de mecanismos para além dos regularmente usados:
A burguesia não pode mais confiar nos meios de força regulares de seu Estado para garantir sua dominação. Para tal, ela precisa de um instrumento de força extralegal e paramilitar. O que foi oferecido pelo aglomerado heterogêneo que constitui a turba fascista. Esta é a razão pela qual a burguesia oferece a sua mão para o beijo fascista, permitindo-lhes completa liberdade de ação, contrariando a tudo que está inscrito ou não nas leis. Ela vai além. Ela nutre o fascismo, sustenta-lhe e promove seu desenvolvimento com todos os meios à sua disposição em termos de poder político e reservas bem guardadas de dinheiro.3(43)
A autora também mostra que o fascismo, por esses fatores, possui pelo menos dois traços fundamentais: i) programa revolucionário fraudulento que faz uso demagógico com a subjetividade e necessidades das massas; e ii) uso brutal da violência. Como movimento plebeu de famintos e dos que estão em sofrimento sem perspectiva de futuro, seu combate deve se dar pela ação em direção às camadas sociais que estão indo ao encontro desse movimento. Esse caminhar é fruto de uma busca pela fuga do sofrimento ocasionado pela própria sociabilidade capitalista, não se restringindo nesse fato apenas as necessidades do estômago, mas também na ânsia por ideias e valores que oferecessem um sentido de que a vida vale a pena ser vivida, que ela é mais do que a cultura do consumo de mercadorias, por esse motivo, Zetkin3 argumenta que nas fileiras de massas que compõem o fascismo nem todos seriam violentos, mercenários, haveria camadas sociais enérgicas que devem ser alcançadas por intermédio da convicção e entendimento da situação concreta que as levaram ao fascismo. Esse trabalho em sua interpretação deveria mostrar que a saída para as mazelas da sociabilidade capitalista só podem ser resolvidas num outro modo de sociabilidade, numa direção ao comunismo.
Essa ação contra o terror violento que as matilhas fascistas promovem contra a defesa pessoal de cada trabalhador deve ser combatida com uma violência materializada na força da classe trabalhadora, e não em atos golpistas. Essa defesa passa pela conformação de uma frente única, semelhantemente ao que indicada as reflexões de Trótski.2 Por esse motivo que Zektin3 destaca que na luta contra o fascismo é necessário a formação de uma frente única operária.
Antonio Gramsci (1891–1937) foi um marxista revolucionário sardo, fundador e dirigente do Partido Comunista Italiano – PCI. Desempenhou atividades militantes, e contribuiu para o desenvolvimento do marxismo mediante elaborações sobre as categorias de estado integral; hegemonia; intelectuais orgânicos; aparelhos privados de hegemonia; questão meridional e crise orgânica.4,5
Este intelectual compreendeu como em meio a um movimento italiano de avanço revolucionário nos anos de 1919 e 1920, mediante as ocupações de fábricas, houve o refluxo desse movimento seguido da ascensão do fascismo. Essa reflexão perpassa o entendimento desta ascensão do fascismo como fruto de um processo inerente à dinâmica da fase imperialista do modo de produção capitalista. Na Itália esse processo tomou contornos de desesperança na pequena-burguesia e nos subalternos, tendo em vista a participação deste país na Primeira Guerra Mundial, e os parcos louros que recebera aqueles que haviam lutado nesta guerra.
Há no pensamento de Gramsci a reflexão sobre o fascismo em três níveis: a) ideologia que elimina o conflito social por meio da hipóstase da nação; b) como forma de domínio para a gestão da acabada transformação social e antropológica da sociedade camponês-industrial para a industrial de massa; e c) como produto de uma inteira fase histórica aberta pela crise orgânica do capitalismo.6 A investigação da origem do fascismo realizada por Gramsci é associada ao colapso do bloco político de Giovanni Giolitti no qual Mussolini apareceria como um obstáculo para a absorção dos efeitos do sufrágio universal na Itália no ano de 1913. Gramsci7 realiza a distinção entre classe dominante e classe dirigente, no qual Gramsci formularia a perspectiva da revolução passiva (revolução sem revolução, efetuada pelo alto e sem participação das classes trabalhadoras e grupos subalternos). Acerca do fascismo ele nos aponta o seguinte:
Não seria o fascismo precisamente a forma de “revolução passiva” típica do século XX como o liberalismo é do século 19? [...] (Pode-se conceber assim: a revolução passiva ocorreria no fato de transformar a estrutura econômica “reformisticamente” de individualista em economia de acordo com um plano (economia direta) e o advento de uma “economia média” entre o puro individualismo e o que segundo um plano no sentido integral, permitiria a passagem às formas políticas e culturais mais progresso sem cataclismos radicais e destrutivos de forma exterminadora. “corporativismo” poderia ser ou tornar-se, à medida que se desenvolve, essa forma econômica média de caráter "passivo"). Esta concepção poderia ser semelhante ao que em política pode ser chamado de guerra de posição “em oposição à guerra de movimento. Assim, no ciclo histórico anterior à Revolução francesa teria sido "Guerra de movimento" e a era liberal do século XIX uma longa guerra de posição.7(1088)
Dessa forma de modernizar as estruturas do capitalismo italiano pelo alto, o fascismo também é vinculado a um nacionalismo do tipo integral, embora do ponto de vista concreto não consiga ultrapassar o cariz propagandístico da relação entre cosmopolitismo e nação, tendo em vista que a Itália não conseguiria superar uma condição de subalternidade econômica e cultural diante de outras nações da Europa.6
Gramsci visou superar uma Ciência Política positivista, empreendendo um esforço de entender que classes sociais, partidos políticos, interesses e consciência não podem ser vistos de forma separada.8,9 Por esse motivo, o fascismo seria visto como uma técnica de gestão “das novas formas do conflito social, expressão de uma autonomia da política em relação à economia”.10(185) É interessante apontarmos também que de modo semelhante à Zetkin e Trótski, Gramsci rejeitaria a elaboração stalinista do socialfascismo, que colocava a social-democracia como uma ala do fascismo, impossibilitando a conformação de uma frente única combativa à violência fascista.6
Sua visão internacionalista avalia o fascismo não apenas como um caso italiano, mas como uma fase histórica internacional associada a passagem de estruturas sedimentares do surgimento do capitalismo, ao padrão de acumulação inaugurado pelo americanismo-fordismo.9 Esse padrão instalaria também crises orgânicas destrutivas, semelhante ao que ocorre na transição do feudalismo para o modo de produção capitalista, e devido à aceleração econômica tida com a Primeira Guerra Mundial, abre-se espaço para a separação das massas e dos partidos tradicionais. A crise do Estado liberal seria parte desse processo de maior envergadura que reclassificou as relações internacionais de produção, no qual a Europa perdeu espaço para os Estados Unidos; União Soviética e Japão.6
Dessa forma, Gramsci10 assevera que diante do cenário de crise e impossibilidade de controle das forças produtivas pelo capital, há uma luta econômica e política das grandes massas que teria tornado imperioso o ataque das forças capitalistas contra o pólo trabalho. Esse processo de ataque apresentou o fato do próprio Estado burguês se tornar mais reacionário de modo a intervir direta e violentamente na luta de classes, reprimindo tentativas proletárias de alcançar a emancipação política e econômica.10 Esse fenômeno, contudo, não foi uma especificidade italiana, mas internacional, uma vez que no mundo o capitalismo tinha, na visão de Gramsci, se tornado incapaz de realizar o controle das forças produtivas:
[...] o capitalismo tornou-se incapaz de dominar as forças produtivas. O fenômeno do “fascismo” não é apenas italiano, assim como não é apenas italiana a formação do Partido Comunista. O “fascismo” é a fase predatória da restauração do Estado, ou seja, de uma intensificação da reação capitalista, de um aguçamento da luta capitalista contra as exigências mais vitais da classe proletária. O fascismo é a ilegalidade da violência capitalista, enquanto a restauração do Estado é a legalização desta violência: é uma conhecida lei histórica a de que o costume precede a lei.10(429)
Visto de um ângulo internacional, o fascismo é considerado por Gramsci como uma forma de resolução dos problemas associados às relações sociais de produção do capitalismo mediante o uso da violência. Num quadro de dilapidação e arruinamento dessas forças produtivas pela Primeira Guerra Mundial, laços internacionais entre as burguesias foram quebrados e mercados corrompidos, relações entre campo-cidade, metrópoles e colônias foram subvertidas criando simultaneamente crises nacionais:
Criou-se uma unidade e simultaneidade de crises nacionais, que fazem com que a crise geral seja extremamente aguda e incontornável — a pequena e média burguesia — que considera ser possível resolver estes gigantescos problemas com metralhadoras e pistolas. E é este estrato que alimenta o fascismo, que fornece seus efetivos.11(47)
Esse ponto referente à pequena burguesia é central na reflexão sobre o fascismo em Gramsci, sobretudo porque este chega a denominar em janeiro de 1921 o fascismo como “a última representação oferecida pela pequena burguesia urbana no teatro da vida política nacional”.11(30) A degradação dessa classe representaria sua total perda de importância no cenário da produção material da vida, ou seja, ante o ascenso da grande indústria e do capital financeiro, a pequena burguesia italiana perdeu força no terreno da esfera produtiva, se tornando uma classe especializada nos meandros do parlamentarismo. Sua sedimentação no parlamento italiano, tornou esta instituição um bazar de negócios da pequena burguesia, perdendo prestígio junto às massas populares:
Depois de ter corrompido e arruinado a instituição parlamentar, a pequena burguesia corrompe e arruína também as demais instituições, os sustentáculos fundamentais do Estado: o exército, a polícia, a magistratura. Corrupção e ruína realizadas a fundo perdido, sem nenhuma finalidade precisa (a única finalidade precisa deveria ser a criação de um no Estado: mas o “povo” dos macacos’ se caracteriza precisamente pela incapacidade orgânica de criar para si uma lei, de fundar um Estado).11(32)
O excerto acima nos dá uma dimensão de que essa pequena burguesia, apesar de aparecer na cena política como entidade que corrompe as instituições do Estado liberal italiano, foi incapaz de realizar um projeto classista autônomo pela sua própria posição material nas relações sociais de produção. Meses antes da marcha sobre Roma, Gramsci entendera que essa classe estava de modo subjetivo e objetivo associada ao grande capital,12 mesmo que seus atos de violência contra a classe trabalhadora mostrasse na aparência atos contra à ordem:
A pequena burguesia, mesmo nesta última encarnação política que é o ‘fascismo’, revelou definitivamente sua verdadeira natureza de serva do capitalismo e da propriedade agrária, de agente da contrarevolução. Mas revelou também que é fundamentalmente incapaz de desempenhar qualquer tarefa histórica [...].10(33-34)
Gramsci destaca que o desenvolvimento do fascismo italiano se deu com o nascimento dos Fasci di combattimento, agrupamento paramilitar originado logo após a Primeira Guerra Mundial. De caráter pequeno burguês, essa organização reuniu distintas associações de ex-combatentes, e devido ao seu caráter antissocialista, obtiveram o apoio do grande capital e das autoridades estatais. Esse estabelecimento se sedimentou num momento em que os latifundiários italianos necessitavam de forças armadas para combater a crescente organização operária:
O fascismo teve seu maior desenvolvimento nas zonas agrárias (Emília, Toscana, Úmbria), alcançando — com o apoio financeiro dos capitalistas e a proteção das autoridades civis e militares do Estado — um poder sem limites. Se, por um lado, a impiedosa ofensiva contra os organismos de classe do proletariado serviu aos capitalistas, que no decurso de um ano viram todo o aparelho de luta dos sindicatos socialistas desmoronar e perder qualquer eficácia, é inegável porém, por outro lado, que a violência, ao degenerar, terminou por suscitar contra o fascismo, entre as camadas médias e populares, um generalizado sentimento de hostilidade.11(81)
Essa ascensão com a conivência das instituições do Estado burguês italiano (sistema judiciário, por exemplo),13 consentiram com a série de assassinatos aos trabalhadores, líderes sindicais, destruição violenta de jornais operários, crimes que passaram incólumes pelas instituições burguesas, além da própria prisão de Gramsci em 1926.14 E como se o criador, diante da força de sua criatura, não conseguisse mais suprimir a força e o controle desta: “o fascismo é o nome da profunda decomposição da sociedade italiana, que não podia deixar de se fazer acompanhar pela profunda decomposição do Estado”.11(56–57) Gramsci11,12 alertava para as políticas reformistas do Partido Socialista Italiano – PSI que diante da conciliação de classes e do ímpeto reformista, que logo após as derrotas das greves dos trabalhadores dos correios, telefonia e rodoviários em Turim, abandonaram os trabalhadores diante da violência fascista.11,12 Esse movimento de revolução e contrarrevolução era um dos dínamos de ascensão do movimento fascista, que em 1921 já tinha conformado o Partito Nazionale Fascista – PNF.
Em nossa interpretação, a partir da leitura de Gramsci, entendemos que o fascismo italiano foi um fenômeno de classes. Esse fenômeno nasce dos processos endógenos e exógenos à formação econômico-social italiana, sobretudo no alvorecer da Primeira Guerra Mundial e em seu interstício até a Segunda Guerra Mundial. Embora tenha na pequena burguesia sua testa de ferro, o fascismo teve na grande burguesia a chancela para ações violentas. Essas ações se encarnam numa contrarrevolução ao ascenso revolucionário da classe operária italiana no biennio rosso entre os anos de 1919 e 1920, no qual houve a auto-organização operária através dos conselhos de fábrica.11 Diante dessa experiência que ameaçou diretamente a dominação burguesa, houve repressões através da conivência das instituições do Estado italiano que permitiram a escalada de violência, bem como a ascensão de Mussolini e os fascistas ao poder estatal. Se é certo que Gramsci demonstrava as contradições internas do fascismo, ele não assumiu uma posição passiva, chegando a criticar a teoria stalinista do social-fascismo, buscando formas de alertar para a necessidade de independência de classe e defesa dos trabalhadores.
A atualidade é marcada por um período de crises e guerras. Desde 2008,15 com a crise capitalista mundial, o contexto é marcado pelo ascenso de movimentos que buscaram questionar à ordem capitalista vigente: occupy Wall Street; coletes amarelos na França; primavera árabe; jornadas de junho de 2013, no Brasil; Black Lives Matter etc. Mesmo que muitas dessas manifestações tenham logrado uma amostragem da força das classes trabalhadoras, da juventude precarizada preta, pobre e periférica, a ausência de partidos revolucionários numa perspectiva internacionalista influenciou para que o espontaneísmo das massas não conseguisse superar à ordem capitalista existente.15 Ao mesmo tempo, em que se dá esse processo, em cada formação econômico-social vamos observar os dínamos dessa crise impactando na manutenção dos regimes democráticos-liberais a partir da ascensão na cena política de partidos de extrema-direita. Em que pese as distinções entre cada região, percebemos que aumenta a presença de grupos neofascistas e neonazistas como demonstra o caso francês com a marcha de 600 neonazistas em meio de 2023 em Paris, que percorreram livremente a capital parisiense, com a tutela das forças de repressão locais.16
No caso brasileiro, essa perspectiva não difere, desde a vitória de Lula em 2022 mediante a conformação de uma frente ampla policlassista, e o não reconhecimento desse processo pelo ex-presidente Bolsonaro, o bolsonarismo de mantém vivo. Embora consideremos o governo Bolsonaro como pré-bonapartista a partir da leitura de Trotsky17,18 por seu caráter militar e de se pretender alçar por acima das classes num conflito com o Judiciário, não podemos negar que o bolsonarismo está além de Bolsonaro e da experiência do seu governo, implicando num conjunto heterogêneo de núcleos e classes sociais, unidas por distintos traços que vão desde o militarismo; olavismo; pequena-burguesia impactada pela crise econômica de 2008; setores cristãos de direita; burguesia agrária.19,20 A força desse conjunto policlassista do bolsonarismo se expressou na invasão ao congresso brasileiro em janeiro de 2023, quando hordas bolsonaristas depredaram os prédios dos três poderes num movimento semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos em janeiro de 2021.21-24
A partir dessa ótica, percebemos que no caso brasileiro, a atualidade da questão da luta de classes se faz presente, necessitando de arranjos táticos que superam o formalismo da frente ampla pluriclassista e encare a realidade de fato como ela é, exigindo dos organismos partidários de esquerda independência de classe para o enfrentamento do bolsonarismo, questão que mundialmente se apresenta em termos distintos, mas que exige uma resposta classista efetiva, para além do plano eleitoral.
Retomar os clássicos do marxismo para pensar o fenômeno do nazifascismo no entreguerras nos permite iluminar o debate da atualidade, marcado pela ascensão de partidos de extrema-direita na cena política. Pudemos observar que o nazifascismo é um fenômeno de classes, que surgiu num período de crises, guerras e revoluções caracterizado não apenas como uma contraofensiva ao movimento operário internacional, mas a conjugação da insatisfação das massas diante da sociabilidade capitalista, da inoperância das direções dos partidos comunistas e socialistas do período, e da influência stalinista sobre a teoria do social-fascismo. Essas experiências nos indicam que o único caminho para superar o fascismo, ou expressões fascistizadas como temos observado na atualidade, é a independência política das classes trabalhadoras num plano internacional, do avanço efetivo das pautas dos trabalhadores, e da derrubada do capitalismo enquanto modo de sociabilidade.
Sem cairmos num mimetismo, consideramos que o ascenso da extrema-direita na atualidade representa uma resposta à crise capitalista internacional, ao decréscimo da taxa de lucro dos capitalistas, e à hegemonia das frações rentistas. Esse cenário tem conformado no cenário internacional arranjos geopolíticos que denotam a presença dos Estados Unidos e da China numa guerra comercial por novos espaços de acumulação capitalista e desenvolvimento das forças produtivas. Nesse sentido, em cada formação econômico-social é preciso o estudo sistemático desse ascenso extremista, e a recolocação do debate da perspectiva da revolução internacionalista como caminho para a superação da pré-história capitalista e derrota de expressões fascistizantes.
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