Crit Revolucionária, 2023;3:e018
Artigo Original
https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2023.v3.24
i Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Departamento de Serviço Social. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Autor de correspondência: Karoline Claudino Guimarães karolinesclaudino@gmail.com
Recebido: 02 jul 2023
Revisado: 21 ago 2023
Aprovado: 23 abr 2024
https://doi.org/10.14295/2764-49792RC_CR.v3.24
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O trabalho apresentado objetiva dissertar, a partir de uma abordagem marxista, sobre a apropriação privada do fundo público em detrimento de sua destinação para políticas sociais, assim como bens e serviços promovidos pelo Estado. Entende-se o fundo público como um compósito coletivo, financiado pela classe trabalhadora e pela classe dominante, sendo esse um alvo de intensa disputa. Estando, porém, especialmente na contemporaneidade, a classe trabalhadora em extrema desvantagem na correlação de forças. Considera-se que isso tem grande impacto no contexto atual de subtração de direitos e precarização das políticas sociais ante ao ascenso de ultra acirramento do neoliberalismo.
Descritores: Política social; Neoliberalismo; Fundo público; Capitalismo.
FONDO PúBLICO: EL DISGUSTO DE LA MEJOR PARTEResumen: El trabajo presentado tiene como objetivo discutir, desde un enfoque marxista, sobre la apropiación privada del caudal público en detrimento de su destino a las políticas sociales, así como a los bienes y servicios promovidos por el Estado. El fondo público se entiende como un compuesto colectivo, financiado por la clase obrera y la clase dominante, que es objeto de una intensa disputa. Sin embargo, especialmente en la época contemporánea, la clase obrera se encuentra en extrema desventaja en la correlación de fuerzas. Se considera que esto tiene un gran impacto en el actual contexto de sustracción de derechos y precariedad de las políticas sociales ante el auge de la ultra agresión del neoliberalismo. Descriptores: Politica social; Neoliberalismo; Fondo público. Capitalismo. |
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PUBLIC FUND: THE DISPLEASURE OF THE BEST SLICEAbstract: The work presented aims to discuss, from a Marxist approach, on the private appropriation of the public fund to the detriment of its allocation for social policies, as well as goods and services promoted by the State. The public fund is understood as a collective composite, financed by the working class and the ruling class, which is the target of intense dispute. However, especially in contemporary times, the working class is at an extreme disadvantage in the correlation of forces. It is considered that this has a great impact in the current context of subtraction of rights and precariousness of social policies in the face of the rise of ultra-aggression of neoliberalism. Descriptors: Social policy; Neoliberalism; Public fund; Capitalism. |
Otexto em tela busca assinalar o debate do fundo público na contemporaneidade, considerando-o um elemento central de disputa na luta de classes sociais estabelecidas nessa ordem social. Segundo Behring,1 no contexto atual de capitalismo maduro, o fundo público se coloca como um meio
pelo qual o Estado capitalista assegura as condições gerais de produção e reprodução do capital e realiza a gestão das crises que foram tornando-se cada vez mais agudas ao longo do século XX e deste início de século XXI.1(72)
De modo que a autora1 considera que o fundo público se tornou um pressuposto para a continuidade desse modo de produção, ampliando seu papel em escala cada vez maior, com o objetivo de salvaguardar o capital e garantir seu processo de acumulação.
Contudo, as consequências desse cenário não são nada favoráveis para a classe trabalhadora, que vem sendo duramente impactada na atualidade nacional. Para Silva,2 isso explicita um momento de ofensiva contrarreformista extrema, cuja direção é a “de destruição de direitos e pode afetar drasticamente os fundamentos da proteção social brasileira, já tão afrontada desde muito tempo”.2(98)
Com efeito, o contexto citado é agudizado pelo projeto de dominação de classe, o neoliberalismo, que encontra sua expressão ultra acirrada no tempo presente. Seus diversos mecanismos visam destinar ao capital vultosos volumes financeiros, reduzindo cada vez mais a parcela que retorna para a classe trabalhadora sob a forma de direitos sociais, bens e serviços públicos. Entre esses mecanismos destacam-se o intenso processo de financeirização, o congelamento dos gastos sociais e intensificação das privatizações e mercadorização das políticas sociais. Tratando-se, assim, de uma dinâmica político-econômica que volta suas atenções para o lucro privado em detrimento do bem-estar coletivo.
Diante de tal contexto, refere-se que
a condição contemporânea de destruição das políticas sociais coloca para a classe trabalhadora a sua defesa na qualidade de universais e gratuitas, e dos direitos sociais na forma de serviços e benefícios por elas materializados na agenda anticapitalista. Afinal, estes são mecanismos de reprodução da força de trabalho centrais nesse momento histórico, bem como significam a disputa de destino do fundo público no contexto de luta classes, porém sem olvidar sua natureza contraditória e que as políticas sociais são parte do processo de rotação do capital.1(47)
A partir do exposto, buscar-se-á dissertar, sob uma perspectiva marxista, sobre a importância do fundo público para a manutenção das políticas sociais, e, portanto, para garantir melhores condições de vida para a classe trabalhadora. Porém, sinalizando como, ao contrário do que deveria, o fundo público vem tendo sua destinação cada vez mais colocada à disposição do grande capital. Isto é, salvaguardando o lucro privado e, em consequência disso, contribuindo para aviltar cada vez mais o padrão de vida do conjunto da classe trabalhadora. Com efeito, destacam-se os perversos mecanismos político-econômicos utilizados para subfinanciar e precarizar as políticas sociais, voltando-se para remunerar a elite empresarial e fomentar a agenda neoliberal.3
A atuação estatal sistemática sobre o complexo de problemáticas sociais tem seu início demarcado no século XIX, em território europeu, com a emergência da questão sociala.4 Para examinar essa forma institucionalizada de intervenção pública, por meio da criação de um sistema de proteção social, necessariamente, perpassa-se pela dinâmica da relação de classes, tendo em vista a ordem societária vigente e seus desdobramentos para o conjunto da sociedade.
a Segundo Netto4(205), “a análise de conjunto que Marx oferece n´O capital revela, luminosamente, que a questão social está elementarmente determinada pelo traço próprio e peculiar da relação capital/trabalho – a exploração. A exploração, todavia, apenas remete à determinação essencial da questão social; na sua integralidade, longe de qualquer monocausalismo, a questão social implica a intercorrência mediada de componentes históricos, políticos e culturais. Contudo, sem ferir de morte os dispositivos exploradores do regime do capital, toda luta contra as suas implicações político-econômicas, sociais e humanas está condenada a enfrentar sintomas, consequências e efeitos”.4(205)
Tendo isso em vista, Behring e Boschetti3 referem que essa atenção do Estado sobre as manifestações da questão social gesta-se na confluência do período de ascensão do modo de produção capitalista, a partir da Revolução Industrial e dos processos sociais em geral, que promoveram as lutas de classe e o desenvolvimento do próprio Estado moderno como tal. Mas é, sobretudo, na passagem da fase concorrencial do capitalismo para o estágio monopolista que a generalização das políticas sociais ocorre, especialmente a partir de 1945, no segundo pós-II Guerra Mundial.
Certamente, como destacam as autoras supracitadas, não é possível precisar o momento específico em que a política social surge na história, sobretudo porque, como dito, trata-se do desenvolvimento de uma série de processos sociais que criam as condições para o atendimento de demandas sociais. Contudo, práticas caritativas e determinadas responsabilidades sociais já podiam ser identificadas em sociedades pré-capitalistas. Apesar de pontuais, as ações filantrópicas e a caridade privada podem ser compreendidas como protoformas da política social, tendo características assistenciais e objetivo de manutenção da ordem social, além de um caráter absolutamente punitivo e repressivo voltados para a coerção do trabalho e inibição da vadiagem.3
Nesse sentido, um fator que deve ser destacado é a instituição do trabalho livre, do sistema de salários e da mercantilização da vida social — processos iniciados com a sociedade capitalista e que engendram profundas transformações societárias. Para Behring e Boschetti,3 nesse contexto, “o trabalho perde seu sentido como processo de humanização, sendo incorporado como atividade natural de produção para troca”.3(50) Isto é, o trabalhador passa a ser ele mesmo uma mercadoria, cuja função é a venda da sua força de trabalho em troca de uma quantia salarial para a satisfação das suas necessidades vitais. Ocorre, porém, que a constituição dessas relações sociais estabelecidas sob a lógica do capital, que objetiva a acumulação privada da riqueza socialmente produzida, também promoveram, segundo Behring e Boschetti,3 “o abandono dessas tímidas e repressivas medidas de proteção no auge da Revolução Industrial, lançando os pobres à servidão da liberdade sem proteção”,3(51) onde evidencia-se o pauperismo, uma das manifestações mais prementes da questão social. Para Netto,4 “a pauperização massiva da população trabalhadora constituiu o aspecto mais imediato da instauração do capitalismo em seu estágio industrial-concorrencial”.4(203)
Tratava-se, assim, de um período histórico que trazia consigo o ineditismo da generalização da pobreza na sociedade crescendo em razão direta ao aumento da riqueza que vinha sendo amplamente produzida.4 Ressalta-se, conforme o autor,4 que a desigualdade entre as camadas sociais não era um fenômeno novo, pelo contrário. A novidade, portanto, residia na forma de produção capitalista e no desenvolvimento das forças produtivas, que possibilitou a produção material progressiva de bens e serviços enquanto o “contigente dos seus membros, que além de não terem acesso a tais bens e serviços, viam-se despossuídos até das condições materiais de vida”.4(203)
Foi, porém, a atuação dos sujeitos históricos, colocando-se na cena política, inicialmente na luta pela redução da jornada de trabalho e melhores condições laborais e salariais, que colocou na ordem do dia do capital a necessidade de criar novas regulamentações. Afinal, a garantia da ordem social vigente foi posta em risco diante das reivindicações populares. Isso porque, diante de tal painel, os
pauperizados não se conformaram com a sua situação: da primeira década até a metade do século XIX, seu protesto tomou as mais diversas formas, [...] configurando uma ameaça real às instituições sociais existentes.4(203)
O que, por sua vez, exigiu do Estado uma postura de atenção a essas demandas3. Nesse contexto,
há o movimento dos sujeitos políticos — as classes sociais. Tem-se o ambiente cultural do liberalismo e a ênfase no mercado como via de acesso aos bens e serviços socialmente produzidos, cuja possibilidade de inserção estaria relacionada ao mérito individual. Começa a ocorrer o deslocamento do problema da desigualdade e da exploração como questão social, a ser tratada no âmbito estatal e pelo direito formal, que discute a igualdade de oportunidades, em detrimento da igualdade de condições.3(55)
Por essa ótica, concorda-se com Netto4(204) ao referir que
entre os ideólogos conservadores laicos, as manifestações da “questão social” (acentuada desigualdade socioeconômica, desemprego, fome, doenças, penúria, desproteção na velhice, desamparo frente a conjunturas econômicas adversas etc.) passam a ser vistas como o desdobramento, na sociedade moderna (leia-se: burguesa), de características inelimináveis de toda e qualquer ordem social, que podem, no máximo, ser objeto de uma intervenção política limitada (preferentemente com suporte “científico”), capaz de amenizá-las e reduzi-las através de um ideário reformista.4(204)
A ação pública, então, promoveu a política social como instrumento mitigador das mazelas sociais engendradas pela ordem capitalista. Tendo em vista, porém, que “o trato das manifestações da “questão social” é expressamente desvinculado de qualquer medida tendente a problematizar estruturalmente a ordem econômico-social estabelecida”.4(205) Dessa forma, uma série de transformações políticas, sociais, institucionais, econômicas e sociais permitiu ao Estado capitalista incorporar demandas advindas das lutas sociais, instaurando as primeiras políticas sociais no marco da cidadania moderna.4
Para Behring e Boschetti,3 tratou-se de uma relação de continuidade entre o Estado liberal do século XIX, que criticava duramente as intervenções sociais e as oferecia de forma parcial e repressiva, e o Estado social estabelecido no século XX, que efetivamente incorporou as orientações da social-democracia. Ambos, porém, reconhecendo “direitos sem colocar em xeque os fundamentos do capitalismo”.3(63) Isto é, enquanto o primeiro propiciou o reconhecimento dos direitos civis, especialmente das liberdades individuais, o segundo propiciou a ampliação dos direitos sociais, principalmente por meio das conquistas dos trabalhadores na dimensão dos direitos políticos entre os séculos XIX e XX.3
Para Behring e Boschetti,3 há unanimidade entre os intelectuais para situar o surgimento das políticas sociais no final do século XIX, dado o contexto sumariado até aqui. Isso ocorreu, ainda segundo as autoras, de forma gradual e distinta entre os países, tendo profunda relação com a luta de classes, portanto, a organização e pressão dos trabalhadores sobre o capital. Tornando-se, assim, possível destacar a iniciativa alemã como a primeira forma de política social, sendo tal experiência em 1883, sob a lógica do seguro social, com o reconhecimento público de que as incapacidades para o trabalho deveriam ser protegidas, tais quais velhice, doenças e desemprego.
A ampliação do contexto geral de implementação de políticas sociais, deu-se, todavia, a partir dos resultados de processos político-econômicos que contribuíram para enfraquecer a base material e subjetiva de sustentação do liberalismo, especialmente o crescimento exponencial do movimento operário e sua ocupação dos espaços políticos e sociais, praticamente obrigando a classe dominante a reconhecer seus direitos. Inobstante, “a concentração e monopolização do capital, demolindo a utopia liberal do indivíduo empreendedor orientado por sentimento morais”3(68) também influenciou nesse processo. Afinal, “cada vez mais o mercado foi liderado por grandes monopólios, e a criação de empresas passou a depender de um grande volume de investimento, dinheiro emprestado pelos bancos”.3(68)
Outrossim, a liderança monopolista dos mercados também teve grande influência na generalização da política social. Pois, conforme confirmam Behring e Boschetti,3 tratou-se de uma verdadeira fusão entre o capital bancário e o industrial, gerando o capital financeiro. O que, por sua vez, aumentou a concorrência intercapitalista, ultrapassando fronteiras e culminando em duas guerras de nível mundial. Para as autoras,3 o período conhecido como Grande Depressão foi essencial para o desenvolvimento e a ampliação das políticas sociais. Até 1929 essa foi a maior crise vivida pelo sistema capitalista, iniciando em Nova Iorque e reduzindo o comércio mundial para um terço. Ademais, havia, ainda, o pano de fundo da revolução russa, de 1917. De modo que o contexto colocava em xeque não apenas a lucratividade capitalista, mas a própria legitimidade do modo de produção em questão. Assim,
as políticas sociais se multiplicaram lentamente ao longo do período depressivo, que se estende de 1914 a 1939, e se generalizam no início do período de expansão após a segunda Guerra Mundial, o qual teve como substrato a própria guerra e o fascismo, e segue até fins da década de 1960.3(69)
Com efeito, as ideias de Keynes ganham destaque tanto no New Deal norte-americano quanto nas estratégias europeias para a saída da crise. O ponto de apoio, que vai totalmente contra o liberalismo ortodoxo, sustenta-se na ação pública, partindo “de um conjunto de medidas anticrise, tendo em vista amortecer as crises cíclicas de superprodução, superacumulação e subconsumo, ensejadas a partir da lógica do capital”.3(71) Segundo Salvador,5(607)
a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida e por uma situação mais digna de trabalho construiu a experiência de determinado padrão de proteção social, no período de 1945 a 1975, nos países do centro do capitalismo.5(607)
Isso enredou um contexto de pacto social entre capital e trabalho. Foi, porém, subscrita ao período de crise estrutural do capital na década de 1970 que as bases desse Estado de bem-estar social, instaurado na maior parte dos países de capitalismo central, entraram em um movimento constante de erosão. O período de três décadas gloriosas permitiu ao capital experimentar uma fase de amplo crescimento, que mesmo com crises cíclicas, possibilitou uma maior redistribuição da riqueza social em forma de política social — todavia, "desconsiderando o inferno da sua periferia, o então chamado Terceiro Mundo”.4(202)
Vale assinalar que a criação de um Estado social não altera a essência exploradora desse sistema de produção. Para Netto,4 ainda que nos países centrais a qualidade de vida da classe trabalhadora tenha apresentado melhora significativa com a criação de sistema mais sólidos de proteção social, os intensos processos de pauperização continuaram a crescer na outra parcela do mundo.
A onda de crescimento econômico que conferiu ao capitalismo a possibilidade de realizar o Estado social, porém, esgota-se, dando sinais críticos desde os anos de 1960. Tratou-se da
redução das taxas de lucro, condicionadas também pelo ascenso do movimento operário, que alcançara expressivas vitórias naqueles anos e nos imediatamente anteriores, o capital respondeu com uma ofensiva política.4(207)
Para Behring e Boschetti,3 as consequências das últimas décadas do século XX engendraram um cenário trágico e avassalador para a classe trabalhadora. De tal modo que, segundo Netto,4 esse cenário exigiu do capital um intenso movimento de restauração das taxas de lucro. Que, por sua vez, deu-se por meio de um processo de flexibilização da produção e maior captura do Estado aos interesses do capital (por meio de um intenso processo de privatização, em sua forma clássica e não clássica), ordenando todo o mundo do trabalho, a partir da desregulamentação trabalhista. Alguns dos impactos desse contexto foram a perda do poder sindical, a maior subsunção ao trabalho, diminuição dos salários, polivalência de função, redução do contingente de operários, contratos temporários e condições mais precárias de trabalho. Soma-se a isso a produção segmentada e difusa, com a transferência literal dos espaços fabris para locais com menor regulamentação trabalhista e incentivos fiscais.4
Nesse sentido, operou-se um movimento em conjunto, que Netto4 chama de globalização/neoliberalismo, tanto no plano econômico como no plano ideológico. Para Netto e Braz,6 isso contribuiu com a legitimação de uma série de desregulamentações implementadas no âmbito do trabalho, mas não só, atingindo todo o complexo da vida social. Tal estratégia objetivou romper com as barreiras sociopolíticas, não apenas as relacionadas ao trabalho, mas as que regulamentam a economia de modo geral. Afinal, segundo seus teóricos, a crise iniciada na década de 1960 não estava fundamentada na dinâmica contraditória do modo de produção capitalista, mas assentada na hipertrofia perdulária dos Estados em virtude das políticas sociais. Esse discurso valida a retórica das dívidas públicas com o intuito de chantagear os Estados para a adesão da agenda neoliberal.7
Ressalta-se que no Brasil a política social se desenvolveu dentro da dinâmica de país de capitalismo periférico e, portanto, subordinado ao mercado internacional, com fortes antecedentes conservadores, patrimonialistas e clientelistas. Soma-se a isso o fato de o território brasileiro ter vivenciado um longo período de economia escravocrata, que marcou profundamente os sentidos históricos das relações sociais e de trabalho, tendo em vista questões de classe, raça e gênero que marcam exponencialmente a correlação de forças sociais ainda na atualidade.
Por essa ótica, a própria política social brasileira tem seu surgimento e desenvolvimento marcado pela coexistência de elementos conservadores, “com propósitos de preservar uma ordem social sem condições materiais e morais para engendrar uma verdadeira autonomia, fundamental para a construção da Nação”.3(73) De forma distinta do território europeu, Behring e Boschetti3 referem que a questão social no Brasil se deu em um país de natureza capitalista com manifestações fortes do pauperismo, sobretudo após a escravidão e com os óbices para o aproveitamento da mão de obra dos ex-escravizados. De tal modo que a questão social só se coloca como questão política no século XX, com as incipientes lutas de classe e as parcas iniciativas de leis trabalhistas.
Mas, para as autoras,3 trata-se, por um lado, dos direitos sociais, (principalmente trabalhistas e previdenciários) como ponto de reivindicação da classe trabalhadora, e, por outro, significam a busca de legitimidade das classes dominantes diante da restrição de direitos políticos e civis. Até 1930, as autoras3 caracterizam a proteção social no Brasil como medidas esparsas e frágeis. Somente com a passagem do século XX, a partir da formação dos sindicatos e da maior organização dos trabalhadores urbanos e rurais de modo geral (também com parcela de força advinda dos trabalhadores imigrantes com alguma tradição socialista e anarquista) que o contexto denota mudanças no quadro político e social. Algumas das conquistas do período foram a redução da jornada de trabalho, para 12 horas diárias (não cumprida integralmente) e a regulamentação do acidente de trabalho. Outro marco importante referido por Behring e Boschetti3 é a criação da Lei Eloy Chaves, em 1923, que institui as Caixas de Aposentadoria e Pensão para algumas categorias profissionais, como ferroviários e marítimos. Após isso, foram aprovados os Institutos de Aposentadoria e Pensão, em 1926. Destaca-se também o Código de Menores em 1927, de caráter extremamente punitivo.3
Para Bravo,8 a conjuntura da década de 1930 deflagrou o processo de industrialização, a redefinição do papel do Estado e o surgimento da política social. Segundo a autora, o painel econômico e político abriu espaço para as políticas sociais diante da necessidade de respostas às manifestações da questão social, de maneira orgânica e sistemática. Havia, ali, uma demanda para que os problemas sociais fossem encarados como questão política, de maneira mais sofisticada, com intervenção pública e paramentada por equipamentos estatais. Em decorrência disso, o processo de urbanização foi acelerado, aumentando o contingente de trabalhadores assalariados nas cidades, bem como de sujeitos desprovidos de ocupação formal (e, muitas vezes, até informal).
Em outra direção, a partir da década de 1960, o país atravessou um regime ditatorial que remodelou o Estado, impactando diretamente sobre as políticas sociais, diante da ascensão e da internacionalização da economia com o Milagre Brasileiro. Behring e Boschetti3 afirmam que se tratou de um projeto tecnocrático e modernizador-conservador que não tardou a demonstrar seus sinais de esgotamento. Bravo8 infere que “os grandes problemas estruturais não foram resolvidos, mas aprofundados, tornando-se mais complexos e com uma dimensão ampla e dramática”.8(6) E a própria questão social passou a ser alvo da intervenção estatal a partir do binômio repressão-assistência. Isso contribuiu para a ampliação da assistência social, porém de forma burocratizada e modernizada no sentido de regular a sociedade, tendo em vista atenuar as tensões sociais, legitimar o regime militar e fomentar a acumulação de capital.
Nessa perspectiva, é possível assinalar que, no Brasil, conforma-se
uma forte instabilidade dos direitos sociais, denotando a sua fragilidade, que acompanha uma espécie de instabilidade institucional e política permanente, com dificuldades de configurar pactos mais duradouros e inscrever direitos inalienáveis.3(79)
De tal modo que, enquanto nos países de capitalismo central o surgimento da política social se dá em meio a um processo de intensas lutas operárias e parte desses países experimentou a realidade de um Estado social, no Brasil, o cenário apresentou o aprofundamento das mazelas sociais diante da legitimação de um capitalismo dependente. Conforme referem Behring e Boschetti,3 tratou-se de uma expansão lenta e seletiva, com características corporativistas e fragmentadas. Todavia, os ventos da mudança começam a soprar em território nacional com os movimentos populares contra o regime e a conquista da Constituição de 1988 traz importantes marcos legais, especialmente no que tange aos direitos sociais. Conquanto, o período da redemocratização brasileira esbarrou nos eventos do pós-1970, que deflagrou o avanço do neoliberalismo com a crise capitalista de 1969–1973 no contexto internacional. De acordo com Bravo,8 tratou-se de um giro conservador após a promulgação da Constituição Cidadã, que não convergiu para ganhos materiais para o conjunto da população. Mas, sim, para “uma transição democrática fortemente controlada pelas elites para evitar a constituição de uma vontade popular radicalizada”.3(138) Ou, conforme ressalva Salvador,5 mesmo o exponencial crescimento econômico do Brasil, ao longo de mais de 50 anos no último século, “não foi capaz de obter resultado da mesma magnitude dos países do capitalismo central, mantendo grande parte de sua população com condições precárias de vida e trabalho”,5(608) evidenciando ainda mais as expressões da questão social.
Concorda-se com Brettas,9 ao afirmar que
o Estado nas economias dependentes está marcado por relações desiguais de poder que limitam o exercício de sua soberania frente a outras formações econômico-sociais a que está submetido. Assim, esse funciona como uma ferramenta a serviço dos interesses das classes dominantes dos países centrais ao mesmo tempo em que expressa as necessidades da classe dominante local, nas suas relações de contradição e subordinação com aquelas.9(55)
Tal afirmativa é de extrema relevância para a compreensão da conjuntura atual brasileira, justamente por se tratar de um país de inserção periférica e dependente no capitalismo mundializado. Certamente, desde a introdução tardia do neoliberalismo no Brasil o cenário tem sido de uma classe dominante que lança mão de toda sorte de mecanismos expropriatórios em relação à classe trabalhadora. Nessa direção, destaca-se o fundo público como objeto de disputa na correlação de forças sociais, tendo grande parcela sendo destinada para a remuneração do capital. Para que tal assertiva fique clara, porém, faz-se necessário explicitar algumas questões de suma importância, como o que se entende por fundo público e a dinâmica político-econômica em que isso se dá. Considerando-se que
o capitalismo permanece orientado à busca de superlucros, de valorização do capital e sua acumulação, por meio da produção de mais-valia, o que implica a permanência da relação valor-trabalho como determinação fundamental das relações sociais de produção e desenvolvimento das forças produtivas, com fortes implicações para as condições gerais da luta de classes.1(33)
Posto isso, assinala-se que o fundo público é composto tanto por trabalho excedente quanto por trabalho necessário, de modo que o fundo público
não gera diretamente mais-valia, a não ser quando o Estado participa diretamente como produtor, apesar de essa situação não ser a mais desejável para o capital, configurando-se como exceção, em geral, tendo em vista infraestrutura produtiva, preços subsidiados de matérias-primas e energia, operações de salvamento e saneamento de empresas em situação de falência e concordata, entre outras situações conjunturais. Porém, o fundo público, tensionado pela contradição entre socialização da produção e a apropriação privada do produto do trabalho social, atua realizando uma punção de parcela da mais-valia socialmente produzida e do trabalho necessário para sustentar, num processo dialético, a reprodução da força de trabalho e do capital, socializando os custos da produção e agilizando os processos de realização da mais-valia, base da taxa de lucros.1(103)
Assim sendo,
o fundo público participa indiretamente da reprodução geral do capital, seja por meio de subsídios, negociação de títulos e garantias de condi- ções de financiamento dos investimentos dos capitalistas, seja como elemento presente e importante na reprodução da força de trabalho, única fonte de criação de valor na sociedade capitalista.5(622)
Inobstante, conforme explicita Salvador,5
o fundo público envolve toda a capacidade de mobilização de recursos que o Estado tem para intervir na economia, além do próprio orçamento, as empresas estatais, a política monetária comandada pelo Banco Central para socorrer as instituições financeiras etc. A expressão mais visível do fundo público é o orçamento estatal. No Brasil, os recursos do orçamento do Estado são expressos na Lei Orçamentária Anual (LOA) aprovada pelo Congresso Nacional.5(607)
Nessa direção, observa-se uma intensa disputa por seus recursos. Visto que, para Salvador,5 o próprio orçamento público é um espaço de luta política, onde a correlação de forças sociais atua na busca por seus interesses, que podem ser voltados para o coletivo ou para o benefício privado. Na atual conjuntura, porém, vê-se uma tendência do fundo público destinar parcelas cada vez maiores para a iniciativa privada. Pois, “no capitalismo maduro, o fundo público se torna condição de vida ou morte para a valorização do valor”.1(31)
À vista disso, refere-se que o fundo público ocupa um lugar estrutural no capitalismo, especialmente nas últimas décadas, considerando-se a crise sistêmica.1,5 E isso tem ficado cada vez mais explícito diante do contexto político e econômico brasileiro. Refere-se que o país atravessa um período de ultra-acirramento da agenda neoliberal desde o golpe de 2016.7 A partir daí, enredou-se uma série de contrarreformas com o objetivo de favorecer o capital, valendo-se da intensificação da exploração do trabalho e de mecanismos que garantam a maior absorção de parcelas do fundo público. Seja por medidas de desoneração empresarial ou de subtração de direitos sociais e trabalhistas, a ampliação das vantagens do mercado sobre os serviços públicos é visível. Conforme aponta Bravo,8(14)
a afirmação da hegemonia neoliberal no Brasil, tem sido responsável pela redução dos direitos sociais e trabalhistas, desemprego estrutural, precarização do trabalho, desmonte da previdência pública, sucateamento da saúde e educação.8(14)
Não obstante, o anteparo político tem sido essencial para tal. Quanto a isso, destacam-se os emissários neoliberais que vêm representando esse projeto societário nos altos escalões do poder. Alguns exemplos disso são Michel Temer (do Movimento Democrático Brasileiro – MDB), em um mandato interino de dois anos, pós-golpe de 2016 e os quatro anos de (des)governo de Jair Bolsonaro (Partido Liberal – PL). O período referido significou a ampliação do fundo público para a remuneração do capital.
Bravo, Pelaez e Menezes10 consideram que, na esteira do desmonte e subtração de direitos orquestrados ao longo dos dois governos supracitados, a política de saúde tem sido um alvo frequente. Segundo as autoras,10 as medidas adotadas vêm repercutindo na disputa entre os projetos de saúde em vigência, sendo a reforma sanitáriab, a reforma sanitária flexibilizadac e o projeto privatistad,10 de forma que essa política social vem sendo cada vez mais subordinada ao mercado. Isto é, trata-se de um “processo de desenvolvimento do próprio sistema capitalista em sua fase neoliberal, com diminuição de direitos para a classe trabalhadora e participação cada vez maior do mercado, em todos os aspectos da vida social”.10
b Bravo, Pelaez e Menezes10 referem que o projeto de reforma sanitária, construído a partir de 1970 a partir das lutas populares e sindicais visando o direito à saúde, também teve posicionamento crítico em relação aos limites do modelo médico assistencial previdenciário. Tal modelo concebe a saúde como direito social, dever do Estado e de caráter universal.
c Sobre a proposta de reforma sanitária flexibilizada, Bravo, Pelaez e Menezes10 asseguram que se trata de um SUS precarizado, subfinanciado e progressivamente desmontado, a partir de arranjos que atendam às políticas macroeconômicas, com visão gerencial e destinado aos mais pobres entre os pobres.
d O projeto privatista opera segundo a lógica de mercado e explora a doença para o lucro, tendo a gestão estatal substituída por “Novos Modelos de Gestão”, cuja finalidade é o avanço do capital sobre o fundo público.10
Conforme refere Brettas,9 a própria criação do Sistema Único de Saúde – SUS exemplifica a tensão entre economia voltada para o mercado e direitos sociais, considerando que se trata da implementação
de um sistema público de atenção à saúde sem restrição ao acesso, inédita no país. [Onde,] ao mesmo tempo, [tem-se] a adesão a uma política econômica pautada na lógica do ajuste fiscal e na privatização das grandes empresas estatais pressionou a configuração das políticas sociais no sentido inverso e permitiu implementar um substantivo processo de precarização das condições de vida.9(66)
Nesse sentido, a partir de Brettas,9 assegura-se que a implementação do neoliberalismo e a composição das classes sociais variou de país para país e isso não se deu de forma linear, sendo o conjunto de propostas implantado também com características distintas ao que foi recomendado por seus ideólogose.11 Para a autora, a disputa entre as classes, e até entre frações da mesma classe, possuem um conteúdo próprio e foram dando o tom e os sentidos da ofensiva neoliberal nos territórios. No caso do Brasil, Brettas9 afirma que os antecedentes históricos e características estruturais trazem particularidades que implicam contradições específicas a tais processos e possuam variedade em relação a outras experiências.
e Brown11(17) argumenta que “nada fica intocado pela forma neoliberal de razão e de valoração, e que o ataque do neoliberalismo à democracia tem, em todo o lugar, infletido lei, cultura política e subjetividade política”.
Por exemplo, ao contrário da realidade de muitos países na Europa, no Brasil não havia uma grande rede de proteção social em funcionamento pronta para ser desmontada. Em outras palavras, o que se consolidou nas décadas anteriores ao neoliberalismo e que se encontrava em crise era o nacional desenvolvimentismo. O Estado (dependente) brasileiro neste período combinou políticas sociais fragmentadas e corporativas – assentadas na cultura da tutela e do favor – com uma atuação por meio de grandes empresas estatais na produção de bens de capital e infraestrutura. Se, nos países europeus, o Estado Social contribuiu para uma – mesmo que limitada – democratização da sociedade, foi nos períodos mais truculentos que o Estado nacional desenvolvimentista avançou na ampliação seletiva das políticas sociais, em uma engenhosa combinação entre coerção e busca de legitimação política.9(61)
Por conseguinte, o neoliberalismo no Brasil tem sua consolidação enquanto uma estratégia de dominação como uma resposta à crise da década de 1980. Que, por sua vez, possibilitou um exponencial movimento popular pela democratização, considerando o protagonismo da luta sindical e o surgimento de novos movimentos sociais, urbanos e no campesinato.9
Foi inscrita nessa dinâmica que as conquistas populares resultaram no desenho das políticas sociais a partir da Constituição Federal de 1988, donde foi possível a criação da Seguridade Social, que, segundo Brettas,9 significou “uma inovação que estava muito distante do que se tinha estruturado até então”.9(61) Para a autora,9 o contexto pós-CF88 (Constituição Federal de 1988)9 foi de extrema contradição. Justamente em virtude da força que o projeto neoliberal ganhou, com a implementação de leis complementares e do surgimento de novos aparatos estatais. Brettas9 chama a atenção para a fragilidade do arcabouço social regulamentado, que teve sua criação marcada pelo desmonte já a partir dos anos 1990.
Conforme assegura Behring,1 nesse cenário, o fundo público passa a ter tarefas e proporções cada vez mais estratosféricas, sobretudo com o predomínio do neoliberalismo e da financeirização. Ainda, trazendo consigo “todas as odes puramente ideológicas em prol do Estado mínimo, amplamente difundidas desde a década de 1980”.1(32) O que, para Brown,11(23) sob a égide neoliberal, significa que “os mercados só podem funcionar impedindo-se o Estado de neles se imiscuir ou intervir”. E mais, “o ataque contemporâneo à sociedade e à justiça social em nome da liberdade de mercado e do tradicionalismo moral é, portanto, a emanação direta da racionalidade neoliberal”.11(23)
Por essa ótica, refere-se, a partir de Brettas,9(62) que
o Estado dependente brasileiro, em sua fase neoliberal, acentua sua capacidade de tornar lucrativas as ações privadas na prestação de serviços públicos, apontando caminhos para enfrentar as crises de acumulação e de hegemonia. Contrarreformas foram implementadas neste período, de modo que as conquistas mencionadas acima não ofuscam a força do projeto burguês. Apesar das tensões, trata-se da emergência de mecanismos cada vez mais sofisticados de expropriação dos meios de subsistência da classe trabalhadora, os quais se combinam com a superexploração – alimentando a acumulação capitalista e a retirada de direitos. O neoliberalismo representa, como saldo final, uma vitória das classes dominantes e impõe inúmeras perdas para a classe trabalhadora.9(62)
Conseguintemente, Bravo, Pelaez e Menezes10 destacam, com relação ao financiamento das políticas sociais, a Emenda Constitucional 95 de 201610 que objetivou o congelamento dos gastos públicos para tal finalidade. Em decorrência disso, a autora afirma que os impactos na política de saúde são indiscutíveis. Inclusive, aponta um estudo realizado pelo Instituto de Política Econômica Aplicada – Ipea, a Nota Técnica 28,10 sinaliza a perda de recursos federais para o SUS, estimando-se R$ 654 bilhões de reais nos próximos 20 anos. Isso, se o crescimento do Produto Interno Bruto – PIB for de 2% ao ano. Sendo um crescimento maior, em 3% anual, pode-se chegar ao valor de R$ 1 trilhãof, “Ou seja, quanto mais a economia brasileira crescer, maior a perda de recursos para a Saúde”.10(196)
f Refere-se que a Emenda Constitucional 126/2022, a qual ficou conhecida como “PEC da transição”, dentre outras questões, definiu que o teto de gastos federal criado pela Emenda Constitucional 95/2016 será substituída por um novo arcabouço fiscal, com a criação de um de Projeto de Lei Complementar – PLC para o Congresso Nacional até agosto de 2023.10
E tudo isso se dá em um cenário de sequenciais iniciativas de precarização e sucateamento dos equipamentos públicos, o que contribui para seu agravamento. Por essa direção, a política de saúde, que conforme apontado por Bravo8 desde 1995, com o Plano Diretor defendido por Bresser Pereira, vem sofrendo com o avanço neoliberal, segue reafirmando a lógica gerencial do Estado, que “deve deixar de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social para se tornar o promotor e regulador, transferindo para o setor privado suas atividades”.8(13) Isto é,
apesar do princípio da universalidade, que fundamenta a política de saúde brasileira, o sistema estruturou-se com uma ala privada de grande envergadura disponibilizada para os estratos das classes sociais que podem pagar pelos serviços privados. O crescimento vegetativo dos recursos para a saúde nos governos FHC acarretou a intensa precarização dos serviços públicos de saúde.2(85)
Diante do explicitado, afirma-se que a política de saúde é apenas um dos exemplos que podem ser referidos dentro do universo das políticas sociais duramente impactadas pela reconfiguração do Estado em função do capital. Tanto assim que Brettas9 afirma que fragmentação, focalização e privatização são características presentes na política social brasileira desde o início, apesar de ganharem traços mais evidentes e profundos diante do neoliberalismo. Todavia, a autora9 reforça que além de compreender maneira como se dá a apropriação do fundo público por meio de mecanismos perversos que visam a transferência da arrecadação pública para o grande capital (nacional e internacional), como exemplo citado da EC 95/2016,12 o processo de financeirização também é um elemento essencial para entender essa dinâmica.9
Por esse aspecto, Brettas9 referenda as relações de dependência são aprofundadas com o neoliberalismo, donde decorre a necessidade de adotar as políticas de ajuste fiscal impostas pelos organismos multilaterais e reforçados pelas grandes burguesias nos países periféricos e dependentes. Trata-se, segundo a autora, de romper limites anteriores em prol do capital portador de juros, o qual se torna alternativa para elevar novamente as taxas de lucro, sendo este um dos elementos principais que constituem a financeirização. Isso corrobora uma mudança também qualitativa, além de quantitativa, aumentando a exploração para obtenção do mais-valor, pressionando uma reorganização produtiva e dinamizando o setor esse setor, o que influencia todos os demais.9
Para Salvador,5(616)
o capital portador de juros está localizado no centro das relações econômicas e sociais da atualidade e da atual crise financeira em curso no capitalismo contemporâneo. Os juros da dívida pública pagos pelo fundo público ou a conhecida despesa “serviço da dívida” do orçamento estatal (juros e amortização) são alimentadores do capital portador de juros por meio dos chamados “investidores institucionais” que englobam os fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de seguros, bancos que administram sociedades de investimentos.5(616)
Segundo Brettas,9(64) um dos mecanismos que garantem a continuidade dessa dinâmica é o Fundo Social de Emergência, criado em 1994, que desde os anos 2000 passou a se chamar Desvinculação de Receitas da União – DRU, cuja finalidade é “priorizar o pagamento da dívida e a disponibilidade para, se necessário, sacrificar recursos destinados a outros fins, como as políticas sociais, por exemplo”.9(64) E este é apenas um dos suportes utilizados no que Brettas9 chama de arsenal jurídico-político que legitima e potencializa as transferências do fundo público para o capital, sendo a dívida pública a base da financeirização no paísg.1 Afinal, para a autora,9 o Estado necessitou tomar certas providências na gestão pública de seus recursos com o intuito de “deixar claro aos investidores institucionais a disponibilidade do governo em honrar os compromissos assumidos com a dívida pública”.9(64)
g Behring1 sinaliza alguns exemplos, como através das “compras e contratos estatais, oferta e regulação do crédito, pela complexa rede de relações público-privadas que se estabelece no capitalismo maduro, tendo em vista atuar no processo de rotação do capital”.1(42)
Destarte, para Silva,2 essa lógica de desfinanciamento das políticas sociais “é contínua e em fluxo crescente”.(89) A autora2(88) afirma que, nessa direção,
os governos petistas assumiram uma política favorecedora do capital financeiro, na maioria das vezes em detrimento do fortalecimento e consolidação de um sistema de proteção social universal, acarretando retrocesso nas políticas sociais, acentuando seu caráter focalista e seletivo, processo explícito na política de assistência social.2(88)
Contudo, no contexto de pós-golpe de 2016 tem-se o ultra acirramento da ofensiva neoliberal, que acentuando tal cenário tem impactado desastrosamente a política social no Brasil, conforme buscou-se mostrar. De tal maneira que
exige-se um Estado enxuto, com máxima prioridade para estabilidade macroeconômica, o que significa uma política monetarista favorável ao capital financeiro e aos interesses rentistas. Nessa direção, há uma franca obsessão com os gastos do Estado, por várias razões. Primeiro, a taxa de juros paga pelo Estado aos papéis públicos transforma-se no piso em função do qual todas as outras taxas são estabelecidas; segundo, taxas de inflação mais elevadas são sempre pró-devedor; terceiro, os papéis públicos são ativos financeiros por excelência.2(93)
Tudo isso converge para destinar a melhor e mais robusta fatia do fundo público para o grande capital, cuja lógica é “marcada pela busca desenfreada e aguerrida do valor”.1(34) E, para isso, como infere Behring,1 necessita da atuação permanente do fundo público na reprodução do capital em maior proporção, reduzindo cada vez mais sua intervenção na reprodução da força de trabalho. O que significa afirmar que reduz, portanto, de forma drástica “seus investimentos em políticas sociais”.1(39) Relegando aos trabalhadores o dissabor de serem diuturnamente expropriados, explorados e constantemente subsumidos pela ordenança capitalista.
À guisa de conclusão, tem-se, assim, uma intensa disputa pelo fundo público. Como assinala Behring,1 por um lado, o fundo público apresenta-se como mediador da repartição do mais-valor entre as frações da classe dominante, retornando fatias generosas para a garantia das condições gerais de produção. Por outro lado, a classe trabalhadora participa da retomada de parte do fundo público, seja por meio das políticas sociais, seja por meio dos bens e demais serviços públicos. Entretanto, “de maneira geral, disputando sua repartição em condições desiguais, considerando a correlação de forças na sociedade e no Estado”.1(40)
Afirma-se, portanto, que os efeitos da cada vez maior apropriação do fundo público pelo capital são deletérios para as políticas sociais e, portanto, para o conjunto da classe trabalhadora. Pois, trata-se de um processo intenso de subtração de direitos e consequente aviltamento dos padrões de vida, principalmente para os estratos mais subalternizados. Conforme sinaliza Behring,1 inobstante a exploração da força de trabalho, as classes dominadas padecem sob a exploração tributária. Isto é, a maior parte do que deveria retornar para os proporcionalmente maiores contribuintes do fundo público em forma de serviços e bens públicos, dignos e de qualidade, é transferido para a remuneração do capital. De modo que o capitalista não apenas se apropria do trabalho excedente, mas também expropria o trabalhador do trabalho necessário à sua reprodução.
Para Behring1, esse crescimento e centralidade das funções do fundo público para o capitalismo, na contemporaneidade, demonstram como tem se acirrado o conflito entre as classes, de modo que o capital, em sua fase decadente e destrutiva, vem socializando cada vez mais os custos elevados de sua crise com os trabalhadores. Isso, porém, reafirma o esgotamento das possibilidades civilizatórias do capitalismo. O que, como aponta Bravo,8 coloca-nos o desafio de
superar as profundas desigualdades sociais existentes em nosso país [...] [a partir de] um amplo movimento de massas que retome as propostas de superação da crise herdada e avance em propostas concretas.8(21)
Mas não só, avançando também no sentido da possibilidade de articulação de uma luta organizada em prol de uma sociedade mais equânime, cujo horizonte seja a socialização dos meios de produção e a emancipação humana.
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