Crit Revolucionária, 2024;4:e004

Ensaios - Marxismo Latino-americano

https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2024.v4.16

O PENSAMENTO DA EPIDEMIOLOGIA CRíTICA DE JAIME BREILH E A ECONOMIA POLíTICA DA SAúDE DE MICHAEL HARVEY

Aline do Nascimento MACEDOi    

Beatriz Campanerut FERNANDESi  

Cleide Bonifácio da SILVAi  

Helena Hoffmann RIGONIi  

Luz Graciela Wild AQUINOi  

Miguel Armando ZÚÑIGA-OLIVARESi    

Sergio Henrique do AMARALi    

i  Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública – FSP. São Paulo, SP, Brasil.

Autor de correspondência: Miguel Armando Zúñiga-Olivares fmzunigao@alumni.usp.br

Recebido: 23 dez 2023
Revisado: 21 ago 2023
Aprovado: 22 jun 2024

https://doi.org/10.14295/2764-49792RC_CR.v4.16

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Resumo

Neste ensaio crítico, realizou-se uma reflexão teórica sobre a relação entre o sistema capitalista e as iniquidades sociais e em saúde, através de um dos estudos sobre economia política da saúde de Michael Harvey à luz do pensamento crítico de Jaime Breilh, autor destacado da epidemiologia crítica originada do movimento latino-americano da medicina social/saúde coletiva. O texto está estruturado em três partes. A primeira descreve uma breve biografia intelectual e político-institucional de Michael Harvey e Jaime Breilh a fim de situá-los historicamente. A segunda descreve e explica o pensamento de Michael Harvey ao analisar a economia política da saúde. A terceira discute o valor do pensamento da epidemiologia crítica de Jaime Breilh. Por fim, compreende-se a conjunção de ideias desses autores na discussão das iniquidades sociais e em saúde reproduzidas pelo sistema capitalista, permitindo avançar, desde uma perspectiva histórico-crítico, na análise ampla e aprofundada da realidade social e sanitária.

Descritores: Epidemiologia; Política de saúde; Medicina social; Economia e organizações de saúde.

EL PENSAMIENTO EPIDEMIOLóGICO CRíTICO DE JAIME BREILH Y LA ECONOMíA POLíTICA DE LA SALUD DE MICHAEL HARVEY

Resumen: En este ensayo crítico, se realizó una reflexión teórica sobre la relación entre el sistema capitalista y las iniquidades sociales y en salud, mediante uno de los estudios sobre economía política de la salud de Harvey, a la luz del pensamiento crítico de Breilh, destacado autor de la epidemiología crítica originada del movimiento latinoamericano de medicina social/salud colectiva. El texto está estructurado en tres partes. La primera describe una breve biografía intelectual y político-institucional de Harvey y Breilh para situarlos históricamente. La segunda describe y explica el pensamiento de Harvey al analizar la economía política de la salud. La tercera discute el valor del pensamiento de la epidemiología crítica de Breilh. Finalmente, se comprende la conjunción de ideas de estos autores para discutir las iniquidades sociales y en salud reproducidas por el sistema capitalista, permitiendo avanzar, desde una perspectiva histórico-crítica, en el análisis amplio y profundo de la realidad sociosanitaria.

Descriptores: Epidemiología; Política sanitaria; Medicina social; Economía y organizaciones sanitarias.

   

JAIME BREILH'S CRITICAL EPIDEMIOLOGY THOUGHT AND MICHAEL HARVEY'S POLITICAL ECONOMY OF HEALTH

Abstract: In this critical essay, there was a theoretical reflection on the relationship between the capitalist system and social and health inequities, through one of the studies on political health economics of Michael Harvey, in the light of the critical thinking of Jaime Breilh, author of critical epidemiology originated from the Latin American social medicine/collective health movement. The text is structured in three parts. The first describes a brief intellectual and political-institutional biography of Harvey and Breilh in order to situate them historically. The second describes and explains Michael Harvey’s thinking in analyzing the political economy of health. The third discusses the value of Jaime Breilh’s critical epidemiology thinking. Finally, it is understood the conjunction of ideas of these authors in the discussion of social and health inequities reproduced by the capitalist system, allowing to advance, from a historical-critical perspective, in the broad and in-depth analysis of social and health reality.

Descriptors: Epidemiology; Health policy; Social medicine; Economics and health organizations.

INTRODUçãO

Aeconomia política da saúde vem sendo construída nas últimas décadas enquanto campo da economia política em geral, constituindo-se de debates relativamente recentes. Da mesma forma pode-se afirmar a respeito da epidemiologia crítica, que, similarmente àquela, passou a ser proposta na América Latina por um grupo de estudiosos. Eles partem de reflexões a respeito da prática epidemiológica convencional que falha ao explicar profundamente o processo saúde-doença. Sendo assim, é pela percepção de diálogos importantes entre dois autores, cada um representando um desses campos, que se justifica o presente trabalho.

Com o decorrer dos estudos da economia política, as questões sobre a saúde foram abordadas indiretamente, mas ganhando maior visibilidade progressivamente, no contexto da centralidade do debate sobre as questões do trabalho sob o capitalismo. A saúde esteve ligada indiretamente à luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e salários, assim como pelo papel do Estado nessa garantia. A exploração do trabalho e condições precárias de trabalho, além de baixos salários, condicionaram uma má saúde e uma menor sobrevida dos trabalhadores e suas famílias. Os economistas clássicos se preocupavam mais pela formação e distribuição do valor no capitalismo industrial, desconsiderando qualquer crítica às contradições do capitalismo, desligando o social do econômico.1

Ainda que as questões sobre a saúde não fossem uma preocupação dos economistas clássicos, eles assinalaram elementos importantes, não explicitamente, para discutir a saúde inserida no processo de produção capitalista, como a reprodução da força de trabalho, condições de trabalho e salário-mínimo de subsistência. O processo produtivo foi colocado no centro do debate graças ao desenvolvimento da teoria do valor trabalho (o trabalho é a fonte do valor de troca), e esta foi articulada à teoria da distribuição da renda (a participação das classes sociais na distribuição do valor produzido no processo de produção: do salário, renda e benefícios). A questão sobre o nível mínimo de subsistência, que na realidade expressava a preocupação pela reprodução da força de trabalho que garantisse a expansão do capital, estava ligada indiretamente às questões de saúde, como a mortalidade e a natalidade populacional, quanto também ao crescimento populacional. Nesse sentido, a relação social mais importante era entre o capital e o trabalho, e a questão da saúde era derivada daquela relação.2,3

Marx e Engels1 criticaram a economia política dessa época, destacando as contradições do modo de produção capitalista e o antagonismo entre as classes sociais. Ainda, a saúde não era colocada como uma questão importante per se, mas apenas como uma consequência nefasta para o processo de acúmulo de capital, mas já havia uma ligação entre o modo de produção capitalista e o processo saúde-doença. Marx e Engels desenvolveram reflexões em torno do capitalismo como uma relação social entre o capital e o trabalho, nas condições do processo de produção como um todo, permitindo supor que o modo de produção capitalista explicava e determinava o processo saúde-doença.1

No século XIX, as investigações epidemiológicas populacionais foram substituídas pelo controle dos agentes infecciosos predominando o modelo unicausal. No século XX, com a diminuição das causas infecciosas e aumento das doenças crônicas degenerativas retorna à ambivalência biologia e social e prevalece o modelo multicausal, porém neste último modelo os fenômenos sociais não são considerados determinantes do processo de adoecimento sendo mensuráveis a partir de fatores individuais. Em meados do século XX, surge a epidemiologia dos fatores de risco, abrindo um leque de fatores para o seu posterior controle. A crítica a este último modelo (risco) é a grande valorização dada para a escolha e ao comportamento do indivíduo, sem considerar as determinações estruturais e políticas da organização social.4

Ainda no século XX, na década de 1970, surge um movimento crítico na medicina preventiva e comunitária e da saúde pública, com foco nos fatores sociais e econômicos como determinantes no processo saúde-doença. No século XXI,5

[Os] Determinantes Sociais da Saúde foram definidos como determinantes estruturais e condições da vida cotidiana responsáveis pela maior parte das iniquidades em saúde entre os países e internamente. Eles incluem a distribuição de poder, renda e serviços e as condições de vida das pessoas, e o seu acesso ao cuidado à saúde, escolas e educação; suas condições de trabalho e lazer; e o estado de sua moradia e ambiente.5

O conceito de iniquidade social geralmente se refere a situações que implicam algum grau de injustiça, ou seja, diferenças que são injustas por estarem relacionadas a características sociais que colocam alguns grupos em desvantagem em relação à oportunidade de ser e se manter com saúde. No campo da saúde, essas desigualdades se apresentam nas condições de saúde dos diferentes grupos, níveis de riscos à saúde, no acesso diferenciado aos recursos disponíveis no sistema de saúde, e geram desiguais possibilidades de usufruir dos avanços científicos e tecnológicos ocorridos nesta área, bem como diferentes chances de exposição aos fatores que determinam a saúde e a doença e por fim as diferentes chances de adoecimento e morte. Da mesma forma que as desigualdades sociais, as da saúde têm persistido em todos os países independente do grau de desenvolvimento alcançado.4

Breilh6 diferencia inequidade de desigualdade, considerando que a desigualdade é um obstáculo para o acesso e direito à saúde, uma disparidade na qualidade de vida, enquanto que a inequidade (com e) é a falta de equidade, a invisibilidade estruturada que impede uma distribuição humana que propicie para cada um conforme sua necessidade e lhe permita contribuir com esta sociedade conforme sua capacidade. E propõe incorporar a análise de etnicidade e gênero, a classe social na determinação do processo saúde-doença, uma vez que são essas as três fontes de iniquidades: classe, etnicidade e gênero. Esses três processos compartilham uma mesma origem, que é a acumulação e concentração do poder e apresentam mecanismos de reprodução social que se inter-relacionam.6

Como uma forma de transição de paradigma em epidemiologia, a Organização Mundial de Saúde - OMS aponta para os determinantes sociais da saúde, ainda pautada numa visão causalista, mas que se abre para entender a estrutura. Em seus estudos, Breilh apresenta o entendimento de que nessa visão tem-se uma classificação dos fatores como variáveis e não como categorias de análise da acumulação do capital. Defende ainda a complexidade da saúde, como um fenômeno complexo, socialmente determinado –noção que frequentemente é negligenciada pela saúde pública– e que, portanto, não deve ser analisada de forma estritamente individual e biomédica.

Além disso, a análise é estendida em direção à desigualdade da prática em saúde baseada em teorias comportamentais sinalizando o fracasso das intervenções em populações estruturalmente vulneráveis, cujos objetivos proveriam de mudanças de comportamento. Como resultado dessa prática epistemológica, em que fatores sociais mais amplos são entendidos como fatores de risco não modificáveis, a dinâmica social acaba por não ser examinada ou, quanto menos, desafiada.7

Diante disso, o objetivo deste ensaio é realizar uma reflexão teórica sobre a relação entre sistema econômico-político capitalista e as iniquidades sociais em saúde, através de um dos estudos sobre economia política da saúde de Michael Harvey e as coincidências ou as divergências desse estudo com o pensamento da epidemiologia crítica de Jaime Breilh.

JAIME BREILH E MICHAEL HARVEY: UMA BREVE BIOGRAFIA INTELECTUAL E POLíTICO-INSTITUCIONAL

Jaime Breilh é um médico e pesquisador equatoriano, nascido em Quito, no dia 23 de agosto de 1947. Mestre em Medicina Social formado pela Universidad Autónoma Metropolitana de México, especializado em Epidemiologia pela Escola de Higiene da London University, e doutorado (PhD) em Epidemiologia pela Universidade Federal da Bahia no Brasil. Breilh é um dos fundadores do movimento latino-americano de saúde coletiva e o pensador mais citado em artigos científicos entre os anos de 2013 e 2017, segundo um estudo bibliométrico feito pela Universidad de Antioquia, na Colômbia.8

Na década de 1970, trabalhadores, pesquisadores e estudantes da área da saúde, questionaram o modelo desenvolvimentista, que foi fortemente implementado no final da década de 1960 e defendia que o crescimento econômico deveria levar a melhoria da saúde pública, fato não evidenciado na realidade, e que mostrou, na verdade, a sua deterioração. Breilh,9 fez parte desse movimento e, ao final do seu mestrado em 1977, publicou a “Crítica a la interpretación ecológica funcionalista de la epidemiología: un ensayo para desmitificar el proceso salud-enfermedad”, onde ele citava que o debate sobre saúde e os problemas sociais eram obrigados a desenvolver soluções para as crises capitalista.9

O livro “Epidemiologia: Economia, Política e Saúde”10 é um dos seus trabalhos mais importantes e polêmicos, discutidos em diversas universidades da América Latina. Breilh faz uma crítica ao Trabalho da Medicina Social e da Saúde Pública tradicional, tratando saúde-doença como um processo coletivo em uma sociedade. Destaca-se o estudo sistemático dos processos estruturais da sociedade, dos perfis de reprodução social relacionados à produção e consumo das diferentes classes e frações de classes e a compreensão integral dos fenômenos biológicos que caracterizam padrões de saúde, citado em seu livro. Para Breilh, neste trabalho, as análises acerca das relações estabelecidas entre grupos de indivíduos e suas conexões devem ser usadas para compreender a epidemiologia nas perspectivas históricas e de reprodução social.10

Durante toda sua carreira, Breilh10 ganhou prêmios como pesquisador e autor, devido aos inúmeros trabalhos publicados, tornando-se referência em universidades e instituições de pesquisa em epidemiologia. Seu pensamento não se refere apenas à saúde como uma produção social, mas também aos modos pelos quais a sociedade capitalista consolida desigualdades profundamente vinculadas a uma economia da morte, trecho este, dito em 2015, em uma de suas vindas ao Brasil onde Breilh concedeu uma entrevista no “V Seminário da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde”. Nesta mesma entrevista, ele concorda que o modelo epidemiológico da Teoria dos Fatores de Risco enfraquece a ideia de determinação social por meio da fragmentação, tornando-os menos visíveis, gerando diagnósticos de saúde que não relaciona condições estruturais e de vida da população, mas que focam nos fenômenos que cercam a doença e justificam uma prática monopolista e uma ação de saúde funcionalista.11

Jaime Breilh foi convidado como professor visitante em mais de 40 universidades em 10 países diferentes, o que demonstra a sua importância como pesquisador e crítico em epidemiologia. Desde os anos 2000, Breilh atua como professor na Universidad Andina Simón Bolívar, em Quito, no Equador. Na mesma universidade, foi Diretor (2006) e Coordenador (2008) da Área de Saúde e do doutorado em Saúde, Ambiente e Sociedade.12

Michael Harvey é professor do departamento de Administração e Política do Serviço de Saúde da Temple University, Filadélfia-Pensilvânia. Sua formação acadêmica inclui doutorado em Saúde Pública na Universidade da Califórnia, Berkeley; mestrado em Saúde Pública na Universidade da Pensilvânia e bacharelado em inglês na Temple University. Ministra cursos sobre saúde pública global, sistemas de saúde dos EUA, teoria da social e comportamental da saúde e dos determinantes sociais da saúde. Os estudos realizados pelo Dr. Harvey estão focados na educação em saúde pública, teorias sociais da desigualdade na saúde, economia política da saúde entre outros.13

Harvey faz parte do grupo Doctor of Public Health Coalition – DrPH, cujo o objetivo é fortalecer a prática de saúde pública, criar um mundo saudável e equitativo, onde a saúde pública, liderada por uma comunidade de profissionais de saúde pública treinados, seja parte integrante da mudança social.13

Em 2016, Harvey esboçou uma abordagem teórica e metodológica para a condução política na análise da economia dos sistemas de saúde que se baseia nas tradições da economia política da saúde e da medicina social, a fim de explicar as múltiplas abordagens para conduzir a análise da economia política e a confusão sobre o termo em saúde. Sua pesquisa se deu devido ao crescente interesse dos pesquisadores nos sistemas de saúde e particularmente no debate para o alcance da cobertura universal de saúde dentro de países de baixa e média renda .14

INTERPRETAçãO DE MICHAEL HARVEY SOBRE A SAúDE NO SéCULO XXI E SUAS DESIGUALDADES

Harvey15 afirma a necessidade de conhecer as origens marxistas da economia política da saúde para enfrentar as iniquidades em saúde neste século. Para o autor, a economia política se refere aos efeitos combinados e interatuantes das estruturas econômicas e políticas, bem como seu estudo. O início do estudo da economia política se dá com a ascensão do sistema econômico-político capitalista. A política cria e dá forma à economia e não podem ser separadas. Por sua vez, a política está formada pelas relações econômicas e o poder econômico.

O estudo da economia política centra-se em sistemas político-econômicos ou nas diferentes formas de organização da vida política e econômica e o impacto desta organização nos âmbitos de produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Estes sistemas incluem a organização da produção (propriedade e controle dos meios de produção) e as condições associadas ao processo de produção (condições de trabalho), distribuição (desigualdade e iniquidade) e o grau de acesso à proteção social (ou de bem-estar), além da análise do consumo (quais bens e serviços estão disponíveis e para quem).15

A economia política da saúde se refere a extensão do estudo da economia política e os sistemas político-econômicos no âmbito da saúde, para explorar a relação entre estes temas e as mudanças das distribuições epidemiológicas ao longo do tempo. Assim, Harvey15 assinala que as conexões entre a economia política e a saúde estão muito bem caracterizadas na literatura da história da saúde pública.

Harvey15 critica que a economia política não seja referenciada na literatura da saúde pública, apesar da relevância que esta tem na compreensão da saúde, bem como nas desigualdades – iniquidades – em saúde. No entanto, também clarifica que, ainda seja assinalada em algum texto, nem sempre é definida, e quando definida, possui divergências, o que se torna mais problemático, porque as diversas correntes teóricas, como os marxistas, neoclássicos, keynesianos, neoliberais, etc., utilizam esse termo de maneiras muito divergentes.

Em relação à origem da economia política da saúde, Harvey15 assinala que esse termo surgiu na década de 1970, e que comumente referia-se a um enfoque amplamente marxista para a análise científico-social. Ele reafirma que a economia política da saúde está mais perto das obras de Karl Marx, Friedrich Engels e a tradição teórica marxista.

Mesmo assim, os primeiros trabalhos sobre economia política da saúde de Waitzkin (The Exploitation of Illness in Capitalist Society, 1974)16, Vicente Navarro (Medicine Under Capitalism, 1976) 17, Doyal e Pennell (The Political Economy of Health, 1979) 18, Laurell (Work and health in Mexico, 1979) 19, e Breilh e Miño (Epidemiología: Economía, Política y Salud. Bases Estructurales de la Determinación Social de la Salud, 2010) 20 situam-se explicitamente na tradição teórica marxista, incorporando categorias como classes, luta de classes, desigualdade material, exploração, acumulação de capital, condições de trabalho, organização da produção, imperialismo e subdesenvolvimento.15

No entanto, a origem da economia política em saúde se remonta à obra de Engels em “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”,21 escrita em 1845. Neste livro, Engels21 estudou os efeitos do desenvolvimento do capitalismo industrial na saúde dos trabalhadores e suas famílias, em Manchester, Inglaterra, mostrando como as condições sociais e laborais produzidos por este modo de produção resultou em sofrimento generalizado e morte prematura entre os trabalhadores, ao mesmo tempo que produzia riqueza excessiva para a classe capitalista. Engels21 utilizou o termo ”assassinato social” 21(58) para explicar essa terrível situação:

Durante o período em que permaneci na Inglaterra, a causa direta da morte de vinte ou trinta pessoas foi a fome, em circunstâncias das mais revoltantes; mas, quando dos inquéritos, raramente se encontrou um júri que tivesse a coragem de testá-lo em público. Os depoimentos das testemunhas podiam ser os mais claros e inequívocos, mas a burguesia – à que pertenciam os membros do júri – encontrava sempre um pretexto para escapar ao terrível veredicto: morte por fome. Nesses casos, a burguesia não deve dizer a verdade: pronunciá-la equivaleria a condenar a si mesma. Muito mais numerosas foram as mortes causadas indiretamente pela fome, porque a sistemática falta de alimentação provoca doenças mortais: as vítimas viam-se tão enfraquecidas que enfermidades que, em outras circunstâncias, poderiam evoluir favoravelmente, nesses casos determinaram a gravidade que levou à morte. A isso chamam os operários ingleses de assassinato social e acusam nossa sociedade de praticá-lo continuamente. Estarão errados?21(57-58)

Tão importante foi o livro de Engels,21 que Harvey15 assinala que este moldou profundamente o pensamento de Marx, apoiando-se em David McLellan, o maior historiador de Marx, que afirmou que este livro é o documento fundacional do que se tornaria a tradição socialista marxista. Ainda, Richard Horton, o editor de The Lancet, afirmou que a saúde pública é a parteira do marxismo.15

As origens da economia política da saúde também estão associadas com a medicina social europeia e latino-americana do século XIX e as obras de Rudolf Virchow e Salvador Allende (junto com Engels) fizeram as maiores contribuições para compreender as origens sociais das doenças.15

Rudolf Virchow foi um médico inglês, e escreveu sobre as condições materiais em que surgem as doenças e como as forças políticas e econômicas impediram as reformas sociais destinadas a aliviar a pobreza, a insegurança alimentar e as paupérrimas condições de vida e laborais entre os pobres e a classe trabalhadora.15 Breilh,10,22 em concordância com Harvey,15 destaca a importância da obra de Virchow na economia política da saúde, colocando essa obra no contexto econômico, político e social da evolução dos paradigmas da epidemiologia, explicando como a confrontação surgida da transição de regimes absolutistas para regimes liberais (inícios do capitalismo pré-monopolista) também se refletiu no ambiente da saúde e a prática epidemiológica com a confrontação entre os defensores do contagionismo conservador (tendo como precedência a polícia médica) versus os defensores da economia política da saúde e as teorias miasmáticas progressistas.

Salvador Allende foi um médico chileno, ministro da saúde e presidente da República de Chile, e escreveu o relatório “La realidad médico social chilena”,23 no qual, seguindo a perspectiva de Engels e Virchow, identificou a organização do trabalho e as condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora como responsáveis por suas desproporcionais cargas de doença.15 Breilh,22 em concordância com Harvey,15 também destaca a obra de Allende,23 assinalando que ele reconheceu a relação entre a economia política, as doenças e o sofrimento ao focar seu estudo no rol do imperialismo, o subdesenvolvimento e a necessidade de uma mudança estrutural na vida da classe trabalhadora para reduzir as desigualdades em saúde.

Além disso, Breilh10 destaca outro autor latino-americano que contribuiu a esclarecer a origem social das doenças, o médico equatoriano Eugenio Espejo, que em sua obra “Reflexiones sobre el contagio y la transmisión de las Viruelas”,24 escrita no final do século XVIII, já tinha argumentações epidemiológicas que entrelaçavam as categorias da economia, política e saúde. Espejo10 desenvolveu suas ideias sobre as ‘potências nocivas’ e ‘predisposições’ para explicar as diferenças na distribuição das doenças na população, como os problemas do ‘ar popular’ nas moradias pobres e as áreas urbanas, e as dificuldades econômicas de ‘comida e bebida’, devido à escassez de comida gerada pelos fazendeiros e intermediários trigueiros que faziam sua “bolsa” à custa da miséria e fome do público.10

Por outra parte, Harvey15 assinala que entre os autores marxistas existe uma compreensão geralmente compartilhada acerca da economia política da saúde. O conceito que Harvey15 utiliza para explicar a economia política da saúde está baseado no estudo que ele fez dos conceitos utilizados por Raphael e Bryant,25 Krieger26 e Baer.27

Raphael e Bryant25 afirmam que a economia política da saúde explica como a saúde de uma população está determinada pela forma como a sociedade produz e distribui seus recursos, para isso, utilizam categorias como a produção e distribuição da riqueza, o poder político relativo das classes sociais, a acumulação de capital, a organização do trabalho, o controle estatal e controle do mercado na distribuição da riqueza, etc. Por sua parte, Raphael e Bryant25 explicam a economia política referindo-se aos sistemas econômico-políticos que distribuem os recursos segundo os níveis relativos de poder que as pessoas e as instituições são capazes de exercer em uma sociedade, e cujo desequilíbrio conduz a uma maior iniquidade e menor saúde da população.

Krieger26 destaca a importância da teoria da produção social das doenças ou economia política da saúde na epidemiologia social contemporânea, citando entre seus principais autores, Breilh. Nesse sentido, Krieger26 afirma que as instituições econômicas e políticas e suas decisões que contribuem para a manutenção dos privilégios econômicos e sociais das classes dominantes, são as causas fundamentais das iniquidades em saúde. No entanto, as questões por trás dessas iniquidades são a busca incessante de maior acumulação do capital e o papel do Estado para a garanti-la. Por tanto, uma das preocupações da economia política da saúde é a compreensão de como o sistema político-econômico capitalista, em sua fome voraz por maximizar seus lucros, prejudica a saúde, evidenciado nas condições precárias da saúde e segurança do trabalho, a superexploração do trabalho, a contaminação do ambiente e a depredação da natureza e na mercantilização de quase todas as necessidades humanas.26

Baer27 assinala que o objetivo da economia política da saúde é a análise e compreensão das questões da saúde no contexto das relações de classe e imperialistas próprias do capitalismo. Ele divide o estudo da economia política da saúde em duas áreas: a economia política das doenças e a economia política da assistência médica. O primeiro se encarrega do estudo da produção social das doenças, como um subproduto do sistema econômico-político capitalista; enquanto o segundo se encarrega do estudo do impacto no modo de produção capitalista na produção, distribuição e consumo dos recursos sanitários, e como essa distribuição é reflexo das relações de classe nas sociedades capitalistas. Ambas áreas estariam entrelaçadas, sendo a análise de um, influente sobre a compreensão do outro.27

Outros autores põem ênfase no papel da classe e na luta de classes na configuração das relações de poder entre os capitalistas e os trabalhadores. O equilíbrio de poder nessa luta de classes dá forma ao caráter do sistema político-econômico, o qual por sua vez dá forma às iniquidades sociais em geral e na saúde. Nesse sentido, Harvey15 destaca que, quando os membros da classe trabalhadora estão organizados, eles podem concretizar seus interesses materiais em mudanças sociais e políticas (estabelecimento de sistemas de bem-estar social e políticas sociais universais e redistributivas, por exemplo, no âmbito do trabalho, saúde, educação, etc.), o qual resulta em mudanças aparentes do sistema político-econômico capitalista.

Por isso, Harvey15 destaca a importância do empoderamento da classe trabalhadora, por exemplo, através da organização política, o aumento da densidade sindical e a agitação laboral, como a participação em greves e movimentos sindicais de ampla base e luta contra a exploração, a opressão, a hierarquia e a injustiça. Mesmo assim, reconhece que a luta geral da classe trabalhadora deve incluir as lutas específicas das feministas, dos antirracistas, dos imigrantes, da comunidade lésbica, gay, bissexual, transgênero, queer e intersexual, as pessoas em situação de deficiência, etc., reconhecendo-as como grupos sociais historicamente marginalizados e oprimidos, além de expostos a uma privação material excessiva e a formas complexas de discriminação e exploração no âmbito do trabalho e na sociedade em geral.15

No entanto, Harvey15 reconhece que essas mudanças sociais e políticas conquistadas pela classe trabalhadora, são apenas concessões da classe capitalista e do Estado capitalista. Ele assinala que devemos ir além disso, e pensar em sistemas político-econômicos alternativos, o qual implica estender o controle democrático além do âmbito político, econômico e laboral, que atualmente estão controlados pelas corporações, seus proprietários capitalistas e gerentes de alto nível, e que se organizam (e organizam a sociedade) de acordo como os seus próprios interesses em vez dos trabalhadores e o do bem-estar social.

As decisões econômicas sobre o que produzir, como produzi-lo e como distribuir esses produtos seriam, pelo menos em parte, impulsionadas por questões de necessidade social e justiça distributiva, em vez de troca de mercadorias e maximização do lucro.15(297)

Harvey15 também aborda a questão racial na economia política da saúde, como uma nova teoria em desenvolvimento, ao tratar da questão Raça versus Classe e explicar a relação entre racismo e capitalismo, imperialismo e colonialismo. Pela abordagem marxista, temos que o racismo é útil ao capitalismo. Serve como uma barreira à união da classe trabalhadora, mantendo-a dividida. Facilita a exploração da subclasse de trabalhadores racializados. Além disso, há também o desenvolvimento de uma ideologia racista, que tenta racionalizar e justificar a hierarquia racial, através de fatores biológicos, comportamentais, culturais ou morais. Dessa forma, o racismo pode ser considerado uma ferramenta a favor do capitalismo, favorecendo a exploração do trabalho e o enfraquecimento da classe trabalhadora sendo, portanto, determinante na geração das iniquidades sociais, incluindo a saúde.

Em publicações mais recentes, Harvey28 afirma a importância das diversas teorias sociais críticas para analisar e compreender o processo saúde-doença inserido em uma realidade social, bem como seu rol explicativo crítico na saúde pública, além da economia política da saúde, que proporciona um marco teórico para explicar a relação entre os sistemas econômico-políticos, a estrutura de classes, o poder político e a distribuição desigual da morbilidade e mortalidade na população.

Nesse sentido, Harvey15 destaca a teoria da determinação social da saúde de Breilh, e coloca-a em contraposição com a dos determinantes sociais da saúde explicada pela OMS, que tem uma explicação teórica restrita das condições nas quais as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem, suas origens, como são mantidas, como são legitimadas socialmente o que se poderia fazer para mudá-las. Desta forma, ele vai concordar com o dito por Breilh, que essa teoria separa sistematicamente os fatores de risco sociais empiricamente observáveis e medíveis da teoria social e que pode explicá-los, ocultando assim os complexos processos sociais dialéticos e as relações de poder dos quais surgem esses fatores de risco e por cujas lógicas os recursos se distribuem desigual e injustamente.28

Nessa mesma linha, em seu mais recente livro “Critical Epidemiology and The People’s Health”, Breilh22 reconhece a importância da economia política, incluindo-a como uma das suas categorias de análise para analisar e compreender a transdisciplinaridade e complexidade da saúde, desde a abordagem da epidemiologia crítica. Nessa proposta, ele vai explicar que o objeto de estudo da epidemiologia crítica engloba e articula múltiplas dimensões: da sociedade em geral, de seus modos de vida social particulares, e de seus processos diários pessoais, a fim de compreender as formas socialmente determinadas da corporificação – corporal e psicológica –, sendo uma delas, as doenças.

Em um nível geral, a teoria crítica do espaço, da sociedade e da cultura, juntamente com a economia política, lida com os processos de reprodução social por acumulação de capital, seus elementos espaciais e relações políticas e culturais gerais. A ecologia crítica e a ecologia política, como disciplinas que estudam o movimento metabólico em lugares específicos da sociedade, também participam da compreensão da determinação geral. No nível particular, o objetivo da sociologia e antropologia crítica é lidar com a classe social, gênero e processos étnicos de determinação social; os modos de vida subseqüentes; e a incorporação de padrões de exposição e vulnerabilidade. No nível individual, o objetivo da antropologia crítica é entender o movimento determinante dos estilos pessoais de vida, enquanto a biologia crítica, a psicologia social e as clínicas visam entender os caminhos terminais das encarnações fisiológicas e psicológicas.22(192)

O PENSAMENTO DA EPIDEMIOLOGIA CRíTICA DE JAIME BREILH

Breilh10 faz uma análise crítica da prática médica relacionando-a com características centrais do capitalismo. Ele aponta que os modelos epidemiológicos passaram a pautar um viés biológico predominante, desconsiderando o fenômeno econômico-social para a compreensão da dinâmica e determinação dos fenômenos de saúde-doença.

Segundo Breilh,10 o pensamento epidemiológico inscrito na linha contagionista pressupõe que a saúde devia ser regulada e supervisionada pelo Estado para o benefício da sociedade, em todas as esferas da atividade humana.

Breilh10 vai-se reafirmar no caráter instrumental da medicina e da epidemiologia para o desenvolvimento do capitalismo ao longo da história. Durante o século XIX e as primeiras décadas do século XX, a expansão imperialista dos países europeus e, posteriormente, dos Estados Unidos em regiões da Ásia, África e América Latina, motivada pela extração de matéria prima, provocou o surgimento e aumento das doenças infecciosas tropicais nos trabalhadores dessas regiões, devido à ingente construção de acessos terrestres e, por sua vez, a maior destruição da natureza, associado a formas deteriorantes de trabalho, bem como a exposição a novos agentes patógenos.

A investigação das doenças infecciosas tropicais do ponto de vista microbiológico foi entendida como uma das soluções de menor preço e adequadas ao pensamento capitalista. Desta forma, decidiu-se apoiar as escolas e institutos com respaldo técnico e financeiro dado que a agressão contra o homem por causas supostamente naturais exonera as classes dominantes da responsabilidade pelo seu adoecimento. A medicina foi colocada ao serviço do capitalismo, em um contexto de maior produtividade na história da humanidade, mas também de maior destruição de seu recurso fundamental: a força de trabalho humano.

O desenvolvimento da microbiologia é considerado como a maior descoberta da medicina, ao modificar os conceitos sobre a causalidade e tratamento de grande parte das doenças. E assim, na fase de consolidação dos monopólios capitalistas, permitiu sua expansão imperialista, ao levarem aos países subdesenvolvidos programas de erradicação da febre amarela e malária, por exemplo. O grupo Rockfeller foi um dos pioneiros nesse sentido. A despeito do cunho aparentemente humanitário desses projetos, tinham na verdade objetivo de manter a produtividade das unidades montadas nas suas novas colônias. Além disso, as diretrizes de Institutos como o Laboratório de Fadiga de Harvard se espalharam pelas instituições de saúde colocando em prática os Princípios da Reforma de Flexner. Desta forma, consolidou-se um novo tipo de prática médica baseada na infraestrutura hospitalar e nas inovações tecnológicas, abrindo um longo período de predomínio biológico e científico. Nesse contexto, rompeu os nexos com o social.10

Assim, o modelo científico-hospitalar alcançou a máxima articulação com as necessidades do modo de produção capitalista por meio dos grandes hospitais, inicialmente pertencentes à seguridade social. Estes funcionavam como instrumentos de conciliação, absorvendo as demandas dos trabalhadores que reivindicavam por melhores condições de saúde e os requisitos do capital para repararem a força de trabalho doente.6

A epidemiologia, como ciência tal como foi criada –essencialmente biologizante– passou por diferentes etapas tanto do enfoque dado às doenças como da forma tal como era conceituada. Nesse sentido, o modelo esteve calcado essencialmente no causalismo. Partiu-se da teoria unicausal, quando a doença era considerada produto de um agente patogênico até a teoria multicausal, quando vários fatores são considerados no processo de adoecimento, incluindo a visão da tríade ecológica de Leavell e Clark. 6

Na contramão deste movimento biologizante direcionado a atender os interesses capitalistas, um novo projeto epistemológico começou a se desenvolver no início da década de 1970. Os autores pertencentes a esse movimento defendiam que as práticas convencionais, ao considerarem os fatores de risco como ponto-chave na produção de saber em saúde, seriam limitadas na explicação aprofundada do processo saúde-doença, por analisar os indivíduos de forma isolada. Seria, portanto, uma lógica linear e fragmentada, ao visualizar de forma não dialética os efeitos individuais sofridos em função de fatores externos.6

Nesse sentido, a construção de uma epidemiologia crítica exigiu extrapolar as análises do cuidado com os processos individuais de bem-estar centrados no biológico e genético para os desafios inerentes aos processos sociais e a relação com o trabalho. Breilh10 pontua que a epidemiologia crítica percorreu diversas etapas, influenciadas pelo movimento internacional e pelo amadurecimento das discussões teórico-metodológicas que se apresentavam.

No início da década de 1970, as categorias centrais estiveram sobre as bases de uma nova objetividade da epidemiologia. Nesse primeiro momento, a crítica esteve voltada à discussão do modelo positivista de pensar a saúde pautado no exame de fatores de risco e no causalismo como estruturantes. O debate visava avançar do causalismo e teoria do risco para a concepção de determinação.6

Entre 1991 e 1995, buscou-se analisar os efeitos da tríplice iniquidade da determinação da saúde – iniquidade de classe social, de gênero e étnica. Nesse período, categorias como a de reprodução social, modo de vida, classes sociais e perfil epidemiológico foram agregadas à ideia de determinação ampliando a visão crítica até então desenvolvida.

Por último, no período que inicia em 1995 e permanece até os dias atuais, os estudos da epidemiologia crítica de Breilh6 estiveram concentrados na construção de um neo-humanismo popular e de uma nova subjetividade. Nesta fase, a epidemiologia amplia o senso crítico sobre o sujeito e propõe relacionar a ciência à nova concepção de gênero segundo uma perspectiva metacrítica social e de práxis intercultural.

O debate traçado desde a década de 1970, permite observar o caminho que a epidemiologia crítica trilhou inicialmente na discussão do seu objeto, rediscutindo e estruturando-o sob nova perspectiva; na sequência, o sujeito de sua atuação foi reconstruído e, por último, a articulação desses dois novos elementos, através do movimento de uma epidemiologia metacrítica e intercultural.29

CONSIDERAçõES FINAIS

O presente ensaio apresenta uma reflexão teórica sobre as aproximações de pensamento de Michael Harvey e Jaime Breilh. Harvey, sobre a relação entre o sistema econômico-político capitalista e as iniquidades sociais em geral e em saúde discutidas à luz da economia política da saúde e Breilh sobre a epidemiologia crítica.

A epidemiologia crítica, discutida e desenvolvida por Breilh, busca extrapolar as análises do cuidado com os processos individuais de bem-estar centrados no biológico e genético para os desafios inerentes aos processos sociais e a relação com o trabalho. O debate contribui com argumentos que vão de encontro aos da epidemiologia biologizante, ainda persistente e, que fundamenta a prática da medicina como resposta ao capital, em modelos centrados no indivíduo, de alta especialização tecnológica e no âmbito hospitalar.

O texto de referência de Harvey revisita a teoria marxista em um diálogo com autores que fundamentam as origens da economia política e, na sua sequência, a economia política da saúde para abordar a forma como a saúde pública tem se posicionado no século XXI frente às desigualdades sociais e as de saúde que persistem a despeito do grau de desenvolvimento alcançado. Nessa direção, Breilh enriquece a discussão diferenciando inequidade de desigualdade. Considera que sem esta distinção a análise estratégica fica centralizada na desigualdade e nos seus efeitos, sem focar nos seus determinantes, entendendo que a desigualdade na realidade é a expressão da inequidade. A desigualdade é uma evidência relevante nos dados estatísticos, porém para sua adequada compreensão se faz necessária destramar a inequidade que a produz. Descreve com detalhes essa diferença:6

[...] a desigualdade é uma injustiça ou iniquidade (i.e., com i) no acesso, uma exclusão produzida em relação a seu benefício, uma disparidade na qualidade de vida. Enquanto que a inequidade (i.e., com e) é a falta de equidade, que é uma característica inerente a uma sociedade que impede o bem comum, e institui a inviabilidade de uma distribuição humana que propicie a cada um de acordo com a sua necessidade e lhe permita se desenvolver plenamente de acordo com sua capacidade.6(201)

As contribuições trazidas pelos autores avançam ao analisar o homem como sujeito complexo que se insere em uma realidade que se modifica constantemente e exige, portanto, um olhar crítico sobre suas relações com o outro e com o meio. O processo de adoecimento, as discussões sobre a saúde pública e seu modo de intervenção requerem um olhar crítico para atender as necessidades que se impõem.

CONTRIBUIçãO AUTORAL

ANM, BCF, CBS, HHR, LGWA, MAZO e SHA realizaram de forma igualitária a conceptualização, metodologia, investigação, redação – rascunho original, redação -revisão e edição e visualização.

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