Crit Revolucionária, 2023;3:e012
Ensaios – Marxismos Latino-americanos
https://doi.org/10.14295/2764-4979-RC_CR.2023.v3.15
i Secretaria de Saúde do Município do Rio de Janeiro – SMS/RJ, Subsecretaria de Promoção, Atenção Primária e Vigilância da Saúde – SUBPAV. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
ii Universidade de São Paulo – USP, Faculdade de Saúde Pública – FSP. São Paulo, SP, Brasil.
iii Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo – SES/SP, Coordenadoria de Planejamento em Saúde – CPS. São Paulo, SP, Brasil.
Autor de correspondência: silva.miltonsm@gmail.com
Recebido: 21 dez 2022
Revisado: 27 nov 2023
Aprovado: 10 jan 2024
https://doi.org/10.14295/2764-49792RC_CR.v3.15
Copyright: Artigo de acesso aberto, sob os termos da Licença Creative Commons (CC BY-NC), que permite copiar e redistribuir, remixar, transformar e criar a partir do trabalho, desde que sem fins comerciais. Obrigatória a atribuição do devido crédito.
O duplo caráter do trabalho, considerado um dos pontos centrais da teoria do valor de Marx, apresenta diferentes abordagens dentro do pensamento marxista. Isaak Illich Rubin, considerado um dos mais importantes intérpretes da teoria do valor, em sua obra “Ensaios sobre a Teoria do Valor de Marx”, discute os principais elementos definidores do trabalho abstrato e analisa suas concepções mais usuais, reforçando a centralidade da troca e da transformação em trabalho social. No campo da saúde, o médico e sociólogo argentino Juan César García também discute sobre o duplo caráter do trabalho e, apesar de se inserir numa linha de pensamento criticada por Rubin, traz o olhar sobre a relação entre o trabalho e o processo saúde-doença. Desde o debate entre as contribuições/reflexões sobre o trabalho abstrato na obra de Rubin e García, este artigo traça as contradições e aproximações importantes à construção do pensamento marxista entre estes dois autores.
Descritores: Trabalho; Condições de trabalho; Jornada de trabalho; Capitalismo; Economia.
EL TRABAJO ABSTRACTO EN MARX DESDE ISAAK RUBIN Y JUAN CESAR GARCíA: REPENSANDO LA CATEGORíA DE TRABAJOResumen: El doble carácter del trabajo, considerado uno de los puntos centrales de la teoría del valor de Marx, presenta diferentes enfoques en el pensamiento marxista. Isaak Illich Rubin, considerado uno de los más importantes intérpretes de la teoría del valor, en su obra “Ensayos sobre la teoría del valor de Marx”, discute los principales elementos definitorios del trabajo abstracto reforzando la centralidad del intercambio y la transformación en trabajo Social. En el campo de la salud, el médico y sociólogo argentino Juan César García también aborda la dualidad del trabajo y, a pesar de ser parte de una línea de pensamiento criticada por Rubin, trae una mirada a la relación entre el trabajo y el proceso salud-enfermedad. A partir de los aportes/reflexiones sobre el tema en la obra de Rubin y García, este artículo rastrea las contradicciones y aproximaciones a la construcción del pensamiento marxista entre estos dos autores. Descriptores: Trabajo; Condiciones de trabajo; Jornada laboral; Capitalismo; Economía. |
|
ABSTRACT WORK IN MARX FROM ISAAK RUBIN AND JUAN CESAR GARCíA: RETHINKING ABOUT THE CATEGORY OF WORKAbstract: The double character of work, considered one of the central points of Marx's theory of value, presents different approaches within Marxist thought. Isaak Illich Rubin considered one of the most important interpreters of the theory of value, in his work “Essays on Marx's Theory of Value”, discusses the main defining elements of abstract work and analyzes its most common conceptions, reinforcing the centrality of exchange and transformation in social work. In the field of health, the Argentine physician and sociologist Juan César García also discusses the dual nature of work and, despite being part of a line of thought criticized by Rubin, brings a view of relationship between work and the health-disease process. From the debate between the contributions/reflections on abstract work in the work of Rubin and García, this article traces the contradictions and important approximations to the construction of Marxist thought between these two authors. Descriptors: Work; Working conditions; Working day; Capitalism; Economy. |
Amplamente ignorado, até mesmo por marxistas, o conceito sobre o trabalho abstrato foi pouco explorado até 1920. Desde a morte de Marx (em 1883), esteve ausente tanto nos debates teóricos quanto políticos. Foi Isaak Rubin1 quem primeiro se interessou seriamente sobre este conceito e o abordou em seu livro “Ensaios sobre a Teoria do Valor de Marx”² ressaltando que a teoria do trabalho abstrato é um dos pontos centrais da teoria do valor de Marx.1
Em sua obra, Rubin2 ressalta a importância que Marx traz quanto à distinção entre trabalho concreto e trabalho abstrato, o duplo caráter do trabalho, e destaca que, em grande parte da literatura, o trabalho abstrato é entendido erroneamente ou de maneira simplificada, apenas no sentido de trabalho fisiológico. A partir de uma análise do trabalho de Marx e das mercadorias, Rubin2 explicita que o trabalho concreto e o abstrato (técnico-material e social) são um e o mesmo trabalho incorporado nas mercadorias. O aspecto social deste trabalho, que cria valor e se expressa no valor, é o trabalho abstrato.2 Então, para Marx,3 o trabalho concreto é o que cria coisas úteis e, portanto, é central na vida humana, já o trabalho abstrato é o que contribui para a apropriação do valor pelo capitalista, uma vez que, considerando que o capitalismo não está voltado apenas à produção de bens que satisfaçam as necessidades em seu valor de uso, o trabalho abstrato é aquele que se relaciona à essência do trânsito do valor, ou seja, à produção de mercadorias com valor de troca.3 Ainda assim, boa parte da literatura marxista continuou a reduzir o conceito de trabalho abstrato apenas ao seu aspecto quantitativo, deixando de lado o seu caráter social.1
Ao trazermos as considerações sobre este duplo caráter do trabalho para o âmbito das discussões em saúde, um dos principais expoentes desta temática na América Latina é Juan César García,4 que explora em vários aspectos a relação do trabalho com a saúde. Em uma de suas obras, García retoma este ponto da teoria marxiana incorporando seu ponto de vista, ou seja, de que somente no capitalismo a medicina passa a entender que existe um vínculo claro entre saúde e trabalho, e que até antes do século XVIII não se estabelecia esse tipo de correlação.4 Adicionalmente, faz a ressalva de que a medicina contemporânea, na busca por se aprofundar e decifrar as relações do trabalho com os processos saúde-doença, dentro do contexto do capitalismo maduro, por vezes, explora apenas o caráter fisiológico e quantitativo de dispêndio energético, o esgotamento, deixando de lado o duplo caráter do trabalho, apresentado por Marx,3 o aspecto concreto do trabalho e seu papel transformador no homem3 que reside no trabalho abstrato.
Atualmente, discute-se em maior profundidade a dinâmica global do processo do trabalho e suas relações com a saúde e o adoecimento, abandonando correntes reducionistas, nas quais a abordagem epidemiológica, de exposição-desfecho, favorecia um conceito monocausal na determinação da doença do trabalhador.5
Feitas estas considerações, discutimos neste texto não apenas os contextos históricos em que estavam inseridos os autores Rubin e García, e que contribuíram para suas análises, como também trazemos o debate de suas reflexões sobre o trabalho abstrato e seu pensamento em saúde.
Juan César Garcia é conhecido na América Latina como um dos pensadores e articuladores do movimento teórico-político da medicina social, movimento que, a partir da segunda metade do século XX passou a mudar o pensamento sobre o processo saúde-doença. García nasceu em 1932 em Necochea/Argentina em um ambiente humilde. Seu pai era trabalhador rural e a mãe fazia os cuidados de casa. Enquanto estudante vivenciou início de mudanças políticas em seu país que permeavam os sistemas educacionais e foi influenciado pelo diretor da escola secundária onde estudava, que era socialista e promoveu diversas mudanças pedagógicas.6
Mudou-se com a família para a cidade de La Plata, Província de Buenos Aires, em 1950, para cursar ensino superior que no contexto da época era a possibilidade de ascensão social (ou seja, de melhorar suas condições econômicas). Durante um período de 9 anos, não só cursou medicina, mas transitou por diversos espaços de construção coletiva e de luta estudantil contra as reformas universitárias retrógradas do governo Perón. Se dedicou à residência médica em Pediatria no Hospital de Niños de La Plata Sor María Ludovica e em seguida em um centro de saúde de Berisso onde teve seu primeiro contato com a prática profissional e comunitária. As problemáticas sociais levaram García e outros colegas a percorrerem a província de Buenos Aires e realizar levantamentos das condições sanitárias dos povoados (pueblos) e cidades do interior.
Além da medicina, interessava-se por questões sociais e ainda em La Plata iniciou o curso de jornalismo, porém não concluiu. Participou da construção do estatuto do Centro Estudantil, da biblioteca e de um periódico chamado Edición, onde podia canalizar suas inquietudes e interesses que ultrapassavam a medicina.6 Auxiliou em diversas causas estudantis militando no Centro Estudantil de Medicina, fazendo à época forte oposição às políticas do governo de Perón.
Impulsionado pelo clima antiperonista e pelas reformas universitárias, que favoreceram áreas de ciência e tecnologia como também o campo da disciplina da sociologia científica, García desenvolveu seu mestrado em sociologia na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales – FLACSO entre os anos de 1960–19617 e em seguida se tornou membro do corpo docente por sugestão do reitor Peter Heinz, desenvolvendo trabalhos com temas na sociologia ainda permeando a área médica. Em 1964 aceitou uma bolsa que o levou para a Universidade de Harvard, como resultado de uma pesquisa internacional realizada em sete países sobre a influência do mercado de trabalho e ambiente sobre os comportamentos dos indivíduos.6 Dessa forma sua dupla formação em escolas de nível superior, médico e sociólogo, fizeram com que o papel social adentrasse na educação médica e questionasse a relação estrutural do modo de produção dominante dos profissionais médicos.
A partir de 1966, tornou-se consultor da Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS, com sede em Washington, nos EUA, chegando à segunda fase de sua produção intelectual, que propõe analisar a educação médica, medicina social e as ciências sociais relacionando-as ao contexto histórico, econômico e político da América Latina.8 Saiu de Harvard para a OPAS no intuito de participar de um grande projeto patrocinado pela Milbank Foundation, que propunha analisar os progressos da disciplina de medicina preventiva e social na educação dos profissionais de saúde. Durante este projeto, García6 pôde visitar centenas de escolas de medicina em diversos países. Em 1972 publica La educacion médica en América Latina,6 mesmo ano em que ocorreu Cuenca I, seminário que analisou o ensino das ciências sociais em saúde e criticava o modelo da história natural da doença,7 no qual García contribuiu para definir mais claramente o campo da ciência social em saúde.6 Em 1983 foi realizado o seminário comemorativo de dez anos do Cuenta I, quando García já estava muito doente, e se amplia as questões das ciências sociais em saúde. García buscou compreender a educação médica como processo relacionado a outros campos mais amplos, como, por exemplo, a educação médica no final dos anos 1960 dentro da abordagem marxista. García morreu em 1984 e deixou um legado de compromisso político de mudança e análise do binômio saúde-doença como aspecto social.
Isaac Illich Rubin nasceu em 12 de junho de 1886 na cidade de Dvinsk, Letônia, antiga Daugavpils. Formou-se em direito na Universidade de São Petersburgo em 1910. Em Moscou, trabalhou como advogado e colaborou com a literatura científica relacionada ao direito civil, período, o qual também se aliou ao Partido Social-Democrata. Passou a lecionar economia política após a revolução de 1917. Entre as instituições que atuou, estavam a Universidade de Moscou e o Instituto da Cátedra Vermelha. Nesse período passou a traduzir alguns textos de Marx, e seu prestígio deveu-se principalmente às interpretações do autor frente aos textos marxianos. Em 1926 foi colaborador do Instituto Marx-Engels, assumido por Riazanov e foi chefe do gabinete, o qual era responsável pela edição das obras de Marx.
Em grande parte da sua trajetória, Rubin sofreu repreensões e penitências por ser considerado “antissoviético” em decorrência de sua aproximação política de cunho reformista, até que em 1937 foi executado pelo governo de Stalin. Mesmo nos períodos conturbados de pressão e perseguição política, não deixou de realizar e publicar estudos de extrema relevância para a crítica da economia política.9
Rubin foi preso duas vezes em 1921 devido a sua filiação a partidos e organizações de ideais considerados contrários ao regime comunista, como os Socialistas Revolucionários e os social-democratas russos. Em 1923 publicou uma de suas principais obras, “Ensaios da Teoria de Valor de Marx”,² período que coincidiu com a sua prisão, devido ao seu viés político e à postura rigorosa do governo soviético frente aos possíveis inimigos, classificação dada a qualquer dissonância com os valores do regime soviético. Por apoio político conseguiu sua libertação mais precoce e retornou a Moscou. Durante o exílio escreveu boa parte do livro História do Pensamento Econômico,9 publicado em 1926. É importante lembrar que nesse período o marxismo estava na base dos ideiais soviéticos, assim, as discussões e debates acadêmicos estavam em alta, criando grande tensão não só política, mas como na própria academia, havendo disputa entre os estudiosos da época em quem iria suprir as demandas teóricas, além do fato de que as interpretações estavam por responsabilidade das autoridades, o que gerava diversas análises turvas e até impositivas. A trajetória de Rubin representa a dinâmica das ciências sociais na república soviética, sendo considerada em certa medida como um declínio do ponto de vista da diversidade teórica.10
Uma das maiores contribuições do pensamento marxiano na crítica da economia política está no duplo caráter do trabalho na definição de mercadoria.11 Entende-se que o capital, enquanto decorrente de uma relação social, tem no valor seu próprio motor, impulsionado pelo processo produtivo. O valor de cada mercadoria pode ser compreendido a partir de dois vieses: um viés majoritariamente qualitativo, relacionado diretamente às características físicas e materiais daquela mercadoria e ao processo produtivo – valor de uso; e outro majoritariamente quantitativo, que ocorre a partir da despersonalização da mercadoria, criando-se equivalência entre si a partir de quantidades determinadas – valor de troca. Marx,12 contudo, compreende que, da mesma forma em que há duas faces do valor, há também duas faces para o trabalho, sendo esta definição um dos pontos centrais da crítica da economia política.12
A primeira destas faces, o trabalho concreto, parte de uma definição a partir dos aspectos técnico-materiais do trabalho: representa o intercâmbio orgânico entre o homem e a natureza,11 sendo expresso de forma específica e múltipla. A natureza desta faceta do trabalho produz, assim, valor de uso, que corresponde ao valor dado aos aspectos materiais envolvidos na produção de determinada mercadoria, como por exemplo o trabalho envolvido na construção de cadeiras por um carpinteiro: há especificidade, já que o trabalho para a construção destas não é o mesmo daquele, por exemplo, empenhado para a confecção de jaquetas. A segunda faceta, o trabalho abstrato, representa o caráter social do trabalho, sendo um elemento possível apenas em uma sociedade mercantilizada, de modo que o trabalho se torna social a partir da equivalência e igualação de seus produtos, unificando e despersonalizando a mercadoria para que esteja disponível para troca.2 Assim, a descaracterização e a troca são definidores do trabalho abstrato, garantindo-se, a partir deste, o valor de troca no contexto de uma sociedade de mercado. Um exemplo é o trabalho do alfaiate: mesmo produzindo um certo traje, este ato em si não representa trabalho abstrato, sendo apenas trabalho concreto. Para que haja trabalho abstrato, tem-se de correlacionar a produção do alfaiate a partir de um trabalho social que não foi possível de ser alcançado a partir do trabalho particular dele, já que está inserido em uma sociedade de mercado. Para que se atinja a qualidade de trabalho abstrato, é necessário, assim, o processo social da troca, momento no qual há a descaracterização do trabalho do alfaiate e sua transformação em trabalho igualado.12
O trabalho abstrato, assim, é definidor do valor de troca em uma sociedade de mercado, sendo este uma das temáticas centrais nos escritos de Rubin2 em sua análise detalhada da Teoria Marxista do Valor – TMV,2 confrontando-se, contudo, com a interpretação de trabalho abstrato da qual parte García,11 de modo que um dos objetivos deste ensaio é o de lançar luz sobre este debate que não apenas envolve estes dois autores marxistas, mas sim duas grandes vertentes do pensamento marxista moderno e contemporâneo.11
Em uma de suas obras mais contundentes de análise marxista, Rubin lança luz sobre a TMV, detalhando de forma sistematizada os diferentes conceitos que a estruturam. Dentre eles, o duplo caráter do trabalho é um de seus principais focos, de modo que o trabalho abstrato ganha centralidade exatamente por ser característico de uma sociedade de mercado. Em seu capítulo “Trabalho abstrato”,2 no livro “A Teoria Marxista do Valor”, Rubin2 destaca e desconstrói analiticamente a ideia difundida em setores marxistas (e antimarxistas) de que trabalho abstrato significa apenas o dispêndio de energia humana em forma fisiológica, reiterando em seguida a definição de trabalho abstrato e seus pressupostos.
Antes de compreender a definição de trabalho abstrato em Marx apontada por Rubin,² é fundamental que se inicie compreendendo a mercadoria a partir de seus aspectos técnico-material (valor de uso) e social (valor de troca), sendo derivados a partir daí o duplo caráter do trabalho respectivamente (concreto e abstrato). Dessa forma, o trabalho abstrato é aquele no qual se gera valor, sendo o próprio aspecto social do trabalho. Outro elemento central da definição de trabalho abstrato está relacionado ao fato de necessariamente estar inserido no contexto de uma sociedade mercantilizada, sendo, junto com o ato da troca, as condições sine qua non para a precisa definição de trabalho abstrato pontuado por Rubin.
Compreender o aspecto social do trabalho abstrato parte do pressuposto das definições de trabalho privado e trabalho social em Marx. Trabalho social, sendo entendido enquanto aquele que tem relação com a totalidade do trabalho da sociedade, só pode ser atingido no seio de um sistema mercantilizado a partir da equalização, igualação com todas as outras formas de produtos do trabalho concreto, com sua conversão em dinheiro. Ocorre, desta forma, a abstração, a subtração da forma concreta, igualando-se à massa de outros trabalhos (massa de trabalho social), sendo esta homogênea e impessoal. O trabalho privado, por sua vez, representa exatamente o trabalho fruto das diversas formas de produção em uma sociedade mercantilizada – é o trabalho ainda não socializado, ou seja, especificamente no caso de uma sociedade capitalista, é o trabalho concreto. Assim, no capitalismo, a abstração das propriedades concretas de trabalho privado em trabalho social homogêneo é exatamente a transformação de trabalho concreto em social, que ocorre no ato da troca. Rubin pontua que esta é a realidade de um sistema mercantilizado, ponderando que, por exemplo, em uma sociedade socialista, o fruto do trabalho concreto seria nele mesmo trabalho social.
Outro ponto fundamental no escrito de Rubin11 sobre o trabalho abstrato está relacionado ao que o autor considera ‘erros analíticos’ por parte de outros autores marxistas e anti-marxistas no que diz respeito ao conceito do dispêndio fisiológico do trabalho como sendo a definição de trabalho abstrato. Rubin11 pontua que estes autores interpretaram de maneira equivocada escritos de Marx a partir da leitura dos primeiros capítulos do primeiro volume do Capital,11 não abarcando toda a conceptualização já largamente debatida em escritos anteriores, como, por exemplo, em “Contribuição para a Crítica da Economia Política”,12 originalmente de 1859. Rubin2 relata que, para estes autores, trabalho abstrato é simplificado como sendo o mesmo que trabalho fisiológico, diferenciando-se de trabalho concreto no sentido de que este seria o equivalente ao dispêndio de energia humano sob uma dada forma (produção), enquanto aquele seria este mesmo dispêndio, porém de forma indeterminada, independentemente de quaisquer formas sociais de produção, caracterizando-se sua a-historicidade. Rubin2 pondera que o dispêndio fisiológico, na verdade, enquadra-se enquanto pressuposto a toda forma de trabalho, reiterando que a definição de trabalho abstrato está na abstração do trabalho concreto a partir da homogeneização durante o fenômeno da troca no âmbito de um sistema mercantilizado, reforçando que é um conceito determinado histórica e socialmente.
No artigo “A categoria trabalho em medicina”,4 de 1983, o autor Juan César Garcia inicia sua análise da relação trabalho-saúde na medicina, como se reflete na consciência habitual dos agentes de produção.4 Na tentativa de compreender como a categoria trabalho se relaciona com os processos adoecedores, García retoma a literatura marxiana, mais especificamente o duplo caráter do trabalho, lançando luz sobre as formas de reprodução tanto do trabalho concreto quanto abstrato sobre a saúde dos trabalhadores na América Latina.
García4 compreende trabalho concreto enquanto dispêndio da força de trabalho de forma específica, gerando valor de uso, pontuando que até 1989, poucos escritos foram desenvolvidos que avaliassem os impactos do caráter concreto do trabalho sobre a saúde dos trabalhadores. García define que é o trabalho concreto aquele que desenvolve as capacidades físicas e mentais do ser humano,4 figurando-se como produtor de saúde. Assim, caso o trabalho não gere de alguma forma este desenvolvimento, García4 pontua ser, então, gerador de processos de adoecimento, analisando em seu escrito as diferentes formas de como o trabalho pode ser adoecedor, compreendendo como pode impactar no desenvolvimento das capacidades físicas e mentais, diferenciando corpo produtivo do corpo biológico e os impactos do trabalho nas fases de manufatura e de grande indústria do capitalismo. Traz, assim, elementos relacionados às doenças e agravos inerentes ao trabalho e dos impactos da exploração no trabalho repetitivo, de grupos como mulheres e crianças, e sobre a saúde mental em categorias de trabalho mais intelectualizadas.
O trabalho abstrato, pela leitura de García,4 por sua vez, trata diretamente do dispêndio de energia fisiológica no trabalho, focando-se especificamente nas horas trabalhadas. Na tentativa de correlacionar com os impactos sobre o processo de adoecimento, García leva especialmente em consideração a duração da jornada de trabalho, especificamente seus limites mínimo e máximo. O limite mínimo de duração, sendo a quantidade de tempo a partir da qual o proprietário dos meios de produção partiria. Isto deixaria em evidência a energia já diminuída do trabalhador, expondo as limitações físicas do ser humano, que se deve em suas condições normais, o que, em um cenário colonizador como aquele da América Latina, difundiu o conceito de preguiçoso quando na denominação das populações indígenas. Esta definição, que parte de uma visão qualitativa, é compreendida como um obstáculo a qualquer intervenção dos empresários capitalistas em regiões onde predominam formas de produção pré-capitalistas, e onde a religião e a repressão física são as formas utilizadas para conseguirem fazer trabalhar a população designada preguiçosa.
A definição quantitativa da preguiça, contudo, veio a partir do momento no qual a área médica passou a se articular com a economia, patologizando em parte este fenômeno a partir de doenças debilitantes e quantificando a diminuição da capacidade de trabalho.4 No caso da América Latina, a transição da preguiça qualitativa para quantitativa ocorreu no final do século XIX e início do século XX, coincidindo com grandes investimentos na produção agrária capitalista. Tais avanços levaram nas décadas seguintes a um prolongamento da jornada de trabalho nunca experimentada pela classe trabalhadora, ultrapassando, assim, seus limites físicos, psíquicos e morais. Tem-se, assim, o limite máximo de duração da jornada de trabalho, sendo definido por García como período em que surge o termo “fadiga patológica”, ou seja, a exaustão da força de trabalho. Estudos posteriores indicaram também uma diferenciação entre fadiga física do trabalhador manual e a intelectual do estudante e profissional, porém ambas se enquadrariam nos efeitos do limite máximo de duração. Também pontua eventos mais contemporâneos à época no qual publicação foi divulgada, com conceitos e estratégias capitalistas que tentam “democratizar” a organização do trabalho, porém mantendo a estrutura básica de exploração.
Ambos os textos, figurados dentro da escola de pensamento marxista, apresentam importantes contribuições em seus respectivos campos: Rubin na análise mais aprofundada da TMV, sendo um de seus principais expoentes até os dias de hoje; e García lançando luz sobre a correlação entre o duplo caráter do trabalho em Marx e seus impactos na saúde, focando-se no cenário latino-americano. Apesar disso, os autores apresentam distintas abordagens quanto às interpretações da literatura marxiana. De forma mais específica, García integra o grupo de marxistas que compreende trabalho abstrato como dispêndio de energia fisiológica – grupo o qual Rubin discorda frontalmente em trechos iniciais de seu capítulo. García, focando sua análise na duração da jornada de trabalho, interpreta trabalho abstrato como a energia gasta durante o processo, não citando elementos definidores de trabalho abstrato pontuados por Rubin, como a necessidade de haver a abstração dos parâmetros concretos específicos que estruturam o trabalho concreto em massa homogênea de trabalho no contexto de um sistema mercantilizado, ocorrendo exatamente no ato da troca, garantindo, assim, seu valor de troca. Para além disso, García, ao focar especificamente nos impactos das condições de trabalho, não aborda de forma mais aprofundada os aspectos relativos ao valor e às características sociais e privadas do trabalho, elementos centrais na literatura marxiana. Uma outra implicação que limita a visão de García elencada por Rubin está relacionada ao fato de que trabalho abstrato enquanto dispêndio de energia fisiológica representa também ausência das propriedades sociais e históricas que o estruturam, sendo estas grandes pilares da economia política e de sua crítica.
Apesar disso, Rubin não pontua que trabalho abstrato não envolva de alguma forma dispêndio fisiológico. O autor, na verdade, reitera que, pela literatura marxiana, dispêndio fisiológico representaria um pressuposto ao trabalho abstrato, ou seja, um elemento anterior, e não sua definição em si mesmo. Enquanto pressuposto, Rubin coloca que trabalho é realizado na forma de dispêndio de energia fisiológica em toda forma social de economia, não sendo e tampouco criando valor. Rubin ainda pontua a existência de formulações consideradas pelo autor como mais sofisticadas por compreenderem trabalho abstrato como o dispêndio fisiológico homogeneizado, ou seja, como a soma dos dispêndios de todas as formas de trabalho concreto (conceito de trabalho fisiológico homogêneo). Contudo, até mesmo esta interpretação ainda é considerada por Rubin enquanto pressuposto para a compreensão da definição acurada de trabalho abstrato, pois não trata de dois dos elementos centrais desta: a necessidade de estar inserido num contexto de trabalho em uma sociedade de mercado; e de esta homogeneização ocorrer no ato da troca. Assim, de acordo com Rubin, a visão de García não abarca o que o autor vai considerar como nexo inseparável entre o conceito de trabalho abstrato e o de valor.2
Apesar desta diferença crucial entre ambas as abordagens, Rubin inclui em seu capítulo4 seção no qual aborda os impactos da jornada e das condições de trabalho. Contudo, o autor não vai descrever estes enquanto manifestações do trabalho abstrato, mas sim propriedades quantitativas que irão distinguir o trabalho a partir de seus dois pressupostos: técnico-material e fisiológico, influenciando quantitativamente o trabalho abstrato antes do ato da troca. Elenca, então, a duração/quantidade de tempo e dispêndio no trabalho; a intensidade do trabalho; sua qualificação; e a quantidade de produtos produzidos em determinado espaço de tempo.2 O autor ainda aprofunda o tema, trazendo as definições em Marx de magnitude intensiva e magnitude extensiva de trabalho, sendo respectivamente a intensidade e o tempo dispendidos no trabalho. Apesar disso, reitera que ambos os aspectos são considerados como propriedades técnico-materiais e fisiológicas condicionantes, por vezes complementares e subordinadas, de modo que permitem a diferenciação entre as diferentes naturezas de trabalho, sendo apenas homogeneizadas, igualadas em uma sociedade mercantilizada a partir da troca. Isto, contudo, não reduz a importância singular do trabalho de García no que tange a lançar um olhar mais aprofundado sobre estas propriedades condicionantes e que afetam diretamente as condições de vida e trabalho da classe trabalhadora.4
Apesar da importante contribuição de Rubin para o desenvolvimento e compreensão da TMV, é fundamental que se explore suas limitações e sua inserção no contexto maior do pensamento marxista moderno e contemporâneo, especialmente levando em consideração suas implicações quando na comparação com as premissas elencadas por García.
Rubin, que parte da divisão social do trabalho, descola-se dos escritos do marxismo tradicional, que não compreende a teoria marxista do valor como fundamentalmente diferente daquela elencada por Ricardo. Também se distancia da interpretação Srafiana (neorricardiana), que tenta articular elementos dos sistemas de preço e valor. Dentre as principais contribuições de Rubin para o desenvolvimento da TMV, tem-se a necessidade da presença do trabalho abstrato no contexto de uma economia mercantil, superando, assim, análises cujo enfoque repousa apenas sobre preço, garantindo notoriedade para as relações sociais de produção.13,14 Outro aspecto inaugurado por Rubin e de grande valia para o pensamento marxista geral, está exatamente em escritos posteriores ao analisado neste ensaio, no qual estabelece nova abordagem para a análise monetária em Marx, elencando o papel central da moeda nas sociedades mercantilizadas. Apesar disso, há importantes limitações em sua interpretação da TMV, especificamente no que tange à ideia de que a troca mercantil é característica primordial e definidora do capitalismo, o que, de acordo com Saad-Filho,13 denota sua incapacidade de iluminar importantes relações reais identificadas por Marx, como, por exemplo, o monopólio capitalista dos meios de produção, a subordinação dos trabalhadores na produção, a regulação social do processo produtivo (e não apenas de seu resultado) pela concorrência, a mecanização, a desqualificação dos trabalhadores e as mediações entre preços e valores.13
Para além das limitações das interpretações de TMV a partir de Rubin, é importante traçar paralelos com a realidade brasileira no que tange às interseções entre Rubin e García, mais notadamente as propriedades condicionantes do trabalho abstrato (propriedades qualitativas) – condições de vida e trabalho da classe trabalhadora. No caso específico da própria classe trabalhadora no setor saúde, a realidade de trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde – ACS é importante exemplo dos impactos contemporâneos da precarização das condições de trabalho, aprofundando os processos adoecedores e que deterioram as capacidades vitais da classe. Em pesquisa recente realizada a partir de entrevistas com ACS de todo o país, elementos como a heterogeneidade dos vínculos empregatícios, os baixos salários, as precárias condições de trabalho, a insuficiente formação técnica em ACS, a falta de equipamento material e de equipamento de proteção individual (EPI) etc. foram elencados repetidamente. Assim, mesmo que o trabalho do ACS não seja passível do processo de abstração, pela sua natureza pública, não está menos inserido no contexto geral de exploração representado pelas propriedades qualitativas e condicionantes dos aspectos técnico-material e fisiológico que precedem sua concretude.15
Juan César Garcia e Isaak Illich Rubin foram pensadores econômicos que propuseram e representaram importantes abordagens e interpretações do pensamento marxiano. Nascidos em tempos e realidades diferentes, suas contribuições levaram à reflexão sobre a teoria marxista do valor para além do seu caráter de mercado, estabelecendo a centralidade de seu aspecto social e histórico. Rubin se destaca especialmente ao inaugurar uma nova abordagem à TMV, reforçando o conceito de trabalho abstrato a partir da equalização das propriedades concretas do trabalho no ato da troca no seio de uma economia mercantilizada, definindo que esta é a forma de transformação de trabalho particular em social no âmbito do capitalismo. Rechaça, assim, a interpretação de trabalho abstrato enquanto dispêndio fisiológico, considerando este apenas pressuposto de toda forma social de trabalho junto dos aspectos técnico-materiais.
García, por sua vez, apesar de sustentado na definição rechaçada por Rubin de trabalho abstrato como dispêndio de energia fisiológica, lança luz sobre os impactos dos das propriedades condicionantes dos aspectos técnico-material e fisiológico sobre o processo saúde-doença, trazendo um olhar específico sobre a realidade da América Latina. Demonstra, assim, fatores desencadeantes para o adoecimento dos trabalhadores sob a perspectiva da jornada de trabalho mínima e máxima. Apesar de ambas as interpretações apresentarem suas limitações teóricas e práticas, com novas linhas de interpretação dentro da escola de pensamento marxista, Rubin e García se mostraram enquanto autores fundamentais para a compreensão integral da transformação e da divisão social do trabalho no pensamento marxiano, pensando-se no valor enquanto trabalho materializado. Permite-se, assim, que se compreenda histórica e socialmente as implicações da precarização das condições de vida e trabalho na contemporaneidade e a atualidade do pensamento marxista no século XXI.
Todos os autores contribuíram substancialmente na concepção e no desenho deste artigo.
Trémeau F. Abstract labor and imperialism. In: Herrera R, editor. Imperialism and transitions to socialism. Leeds: Emerald Publishing, 2021, p. 3-19.
Rubin II. Trabalho abstrato. In: A teoria marxista do valor. São Paulo: Brasiliense; 1980. p. 146-74.
Souza DO, Mendonça HPF. Trabalho, ser social e cuidado em saúde: abordagem a partir de Marx e Lukács. Interface. 2017;21(62):543-52. https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0482.
Garcia JC. La categoría trabajo en la medicina. Cuad Med Soc. 1982 [citado 17 dez. 2022];(23). Disponível em: http://capacitasalud.com/biblioteca/wp-content/uploads/2016/02/Cuadernos-Medico-Sociales-23.pdf
Daldon MTB, Lancman S. Vigilância em Saúde do Trabalhador: rumos e incertezas. Rev Bras Saude Ocup. 2013;38(127):92-106. https://doi.org/10.1590/S0303-76572013000100012.
Galeano D, Trotta L, Spinelli H. Juan César García y el movimiento latinoamericano de medicina social: notas sobre una trayectoria de vida. Salud Colet. 2011;7(3):285-315. https://doi.org/10.18294/sc.2011.267
Nunes ED. Juan César García: a medicina social como projeto e realização. Cien Saude Colet. 2015;20(1):139-44. https://doi.org/10.1590/1413-81232014201.17312014
Nunes ED. O pensamento social em saúde na América Latina: revisitando Juan César García. Cad Saude Publica. 2013;29(9):1752-62. https://doi.org/10.1590/0102-311X00020613
Paula JA, Cerqueira HEAG. Isaac I. Rubin e sua história do pensamento econômico. Belo Horizonte: UFMG; 2013 [citado 17 dez. 2022]. (Texto para discussão; 469). Disponível em: https://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20469.pdf
Boldyrev I, Kragh M. Isaak Rubin: historian of economic thought during the Stalinization of social sciences in Soviet Russia. J Hist Econ Thought. 2015;37(3):363-86. https://doi.org/10.1017/S1053837215000413.
Marx, K. O Capital. São Paulo: Boitempo; 2017. Capítulo 01, A mercadoria; p. 113-158.
Marx K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular; 2017. Capítulo 01, A mercadoria; p. 53-94.
Saad-Filho AA. O valor de Marx: economia política para o capitalismo contemporâneo. Campinas, SP: Unicamp; 2011.
Knafo S. A abordagem da forma valor. In: Saad-Filho A, Boffo M. Dicionário de economia política marxista. São Paulo: Expressão Popular; 2020.
Nogueira ML. Expressões da precarização no trabalho do agente comunitário de saúde: burocratização e estranhamento do trabalho. Saude Soc. 2019;28(3):309-23. https://doi.org/10.1590/S0104-12902019180783.