2021;01:002
DEBATE

doi: 10.14295/2764-4979-RC_CR.v1-e002

O capitalismo também mata pela boca: alimentação e crítica marxista. Desafios contemporâneos para a luta contra a fome

Capitalism also kills through the mouth: food and marxist critique. Contemporary challenges in the fight against hunger

El capitalismo también mata por la boca: alimentación y crítica marxista. Desafíos contemporáneos para la lucha contra el hambre

Lúcia Dias da Silva GUERRAi, Leonardo CARNUTii

iCentro Universitário Anhanguera de São Paulo - CUA, campus Santana, Curso de Nutrição, São Paulo, SP, Brasil
iiUniversidade Federal de São Paulo - Unifesp, Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde - CEDESS, São Paulo, SP, Brasil

Autor de correspondência: Lúcia D. S. Guerra luciadsguerra@usp.br


Resumo
Este artigo tem por objetivo analisar a alimentação a partir da crítica marxista, utiliza-se do método marxiano materialista históricodialético para recorrer a processos históricos e sociais como investigação e exposição dos fatos, e por meio da lógica dialética busca produzir a análise e a interpretação da realidade cotidiana dos trabalhadores. O artigo organiza-se em duas partes: a primeira expõe as contradições existentes no tecido social sobre o tema e a segunda traz a análise histórica da situação de fome, alimentação, disponibilidade e acesso aos alimentos para a classe trabalhadora, dando destaque para os seus usos políticos como arma de extermínio e assassinato social desta classe, e o seu potencial de arregimentar forças e produzir caminhos revolucionários.

Descritores: Capitalismo, Fome, Alimentos, Dieta e Nutrição, Marxismo, Segurança Alimentar e Nutricional.

Abstract
This article aims to analyze food from a marxist critique, using the marxian historical-dialectical materialist method to resort t historical and social processes as an investigation and exposition of facts, and through dialectical logic seeks to produce the analysis and interpretation of the daily reality of workers. The article is organized in two parts: the first part exposes the contradictions existing in the social tissue on the theme and the second part brings the historical analysis of the situation of hunger, food, availability and access to food for the working class, highlighting its political uses as a weapon of extermination and social murder of this class, and its potential to gather strength and produce revolutionary paths.

Descriptors: Capitalism, Hunger, Diet, Food, and Nutrition, Marxism, Food and Nutrition Security.

Resumen
Este artículo pretende analizar la comida desde la crítica marxista, utilizando el método materialista histórico-dialéctico marxiano para recurrir a los procesos históricos y sociales como investigación y exposición de los hechos, y a través de la lógica dialéctica busca producir el análisis e interpretación de la realidad cotidiana de los trabajadores. El artículo está organizado en dos partes: la primera expone las contradicciones existentes en el tejido social sobre el tema, y la segunda aporta el análisis histórico de la situación del hambre, la alimentación, la disponibilidad y el acceso a los alimentos para la clase obrera, destacando sus usos políticos como arma de exterminio y asesinato social de esta clase, y su potencial para convergir fuerzas y producir caminos revolucionarios.

Descriptores: Capitalismo, Hambre, Nutrición, Alimentación y Dieta, Marxismo, Seguridad Alimentaria y Nutricional.


Introdução

A conjuntura do mundo no momento (trans)pandêmico em que vivemos tem demostrado como a alimentação, desde sua produção, acesso e consumo tem sido central na compreensão deste cenário de emergência sanitária, em que a pandemia e o agronegócio seguem de mãos dadas.1 Desde a produção de patógenos virulentos advindos pelo modo de produção dos sistemas agroalimentares mundiais2,3 até a falta de acesso à alimentação adequada, da destruição das culturas alimentares até os usos políticos da fome,4,5 a alimentação tem papel central neste debate. O alimentar-se tem sido produtor e produto de ataques de diversas ordens,6 fato este que justifica um olhar crítico sobre a alimentação a partir desta crise da sociabilidade do capital.

Na sociabilidade capitalista, o homem está separado dos meios de produção, ou seja, ele não tem a terra, a enxada, nem o arado ou a floresta, tampouco o arco e a flecha. Assim, resta-lhe a força de trabalho com a qual poderá oferecer ao mercado capitalista sua força como elemento de troca para garantir o alimento-mercadoria. É, nesse contexto, que o alimento se transforma em mercadoria e só pode ser obtido por meio de outra mercadoria: o dinheiro.7

Não há dúvida de que a alimentação humana é uma questão complexa, multidimensional e essencial à vida. No entanto, isso tensiona como se deve pensar a alimentação não apenas no ato de alimentar-se, como uma frequência cotidiana em que cada ser vivo necessita, mas também como este ato se estrutura e se enraíza para a construção do sistema produtivo de alimentos no modo de produção capitalista. É neste modo de produzir em que há a concentração dos meios de produção e há o fetiche do incentivo ao consumo de produtos alimentares, a exemplo dos ultraprocessados8,9 da vida moderna. É nesse modo de produção capitalista, que alimentos como arroz, milho, café, feijão, soja, cacau, açúcar, carnes e sucos de frutas transformam-se em commodities e o foco central passa ser o mercado internacional privilegiando-se a exportação desses produtos agrícolas e agropecuários10 aos países de capitalismo imperialista.

Como fato social, a alimentação está imbricada a ordem econômica, cultural, sócio-histórica e política que incidem diretamente nas variáveis biológicas e nutricionais que este fenômeno carrega.7,9,11 Apesar de algo elementar a vida humana, a alimentação tem se reconfigurado e adquirido novos contornos no contexto contemporâneo, especialmente por dentro da ciência da nutrição que ainda enfatiza e norteia a produção do conhecimento para entender a interação do alimento com o organismo, como os nutrientes agem e o seu aproveitamento biológico. Além disso, a nutrição se dedica a estudar os alimentos fontes, os grupos de alimentos, mantendo a centralidade no nutriente (nutricionismo) e, por vezes, esquece de conhecer, problematizar e debater as questões alimentares no contexto contemporâneo. Ao invés disso, fortalece-se a compreensão biologicista da alimentação através da relação entre comida, saúde e corpo a partir dos seus aspectos de aproveitamento biológico nos indivíduos.12

Neste sentido, há a exacerbação da experiência corporal e sensorial da comensalidade (o ato de comer) associada ao sobrepeso e a obesidade, que pouco associa-se a fome. Esta narrativa, biomedicalizada sobre o alimentar-se, focada somente na abundância e na suficiência desloca a alimentação do seu lugar essencial à vida humana, esvaziando a compreensão sobre a alimentação como processo social e reduzindo-a ao que chamamos hoje de alimentação saudável.13 Além de destituí-la do seu lugar político (de exercício do poder) na vida dos indivíduos e da sociedade, essa narrativa obscurece as vulnerabilidades ou precariedades geradas pelo modo de produção capitalista sobre o ato de alimentar-se como se tivesse anulado o papel inerente aos sujeitos que se alimentam como: os hábitos, as práticas, a identidade e a cultura alimentar de povos, grupos ou pessoas.9,14

É no bojo da transição epidemiológica, demográfica e nutricional em que se observa o aumento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como diabetes, hipertensão, síndrome metabólica, doenças renais, e do fenômeno global da emergência da epidemia de obesidade, que a Organização Mundial de Saúde lança no âmbito internacional as bases para consolidar a noção de alimentação saudável. Não obstante, esta narrativa (atribuída à centralidade do desequilíbrio energético na relação de causalidade entre os fatores de risco, no caso a alimentação e as DCNTs) ajuda, mais uma vez a cravar esta noção de alimentação na formulação de políticas e planos de ação dos Estados,13 lateralizando o debate sobre o elemento estrutural da questão: a indústria alimentícia e sua relação como o agronegócio, tendo o Estado e seus agentes como mediadores para sua reprodução no sistema capitalista.

A alimentação e a nutrição, para além dos seus atributos biofísicoquímicos, são, mais que nada, questões globais e locais relevantes para a saúde pública e, em especial para compreensão do modo de produção capitalista. Já que, no cenário contemporâneo, a alimentação tem alçado a centralidade dos problemas emergentes do modo de produzir,2 fica mais evidente que ela é capaz de desvelar as tensões geopolíticas, as crises climáticas e socioeconômicas, além da emergência de novas doenças como no caso do recente coronavírus (covid-19). Neste sentido, a alimentação permite repensar e refletir a luz de um olhar crítico: a ação humana e o modelo hegemônico de produção, que é o capitalismo.

Assim, este artigo tem por objetivo analisar a alimentação a partir da crítica marxista, utilizando-se do método materialista histórico-dialético para recorrer a processos históricos e sociais sobre o lugar da alimentação na sociabilidade do capital. O artigo organiza-se em duas partes: a primeira expõe as contradições existente no tecido social sobre o tema e a segunda traz a análise histórica da situação de fome, alimentação, disponibilidade e acesso aos alimentos para classe trabalhadora, dando destaque para os seus usos políticos como arma de extermínio e assassinato social dessa classe, e o seu potencial de arregimentar força e produzir caminhos revolucionários.

O não-dito ou "invisibilizado": as contradições produzidas na efervescente entranha do tecido social e da luta política no âmbito alimentar

Para ratificar a centralidade da alimentação na luta de classes, a crise do capitalismo neoliberal de 2008 teve consequências para vários setores e, certamente, um deles foi o setor agroalimentício. Um dos aspectos mais hediondos das consequências da especulação financeira não apenas na economia real, mas também na vida em geral é a crise alimentar que se aproximou, chegou e aumentou a cadência da produção nas grandes fazendas capitalistas no intuito de imprimir um ritmo de recuperação a la esfera financeira.15 Para além das consequências sobre o aumento dos alimentos, esta aceleração promoveu o rompimento do equilíbrio ecológico dos patógenos circunscritos aos animais gerando doenças tais quais o coronavírus,1 que organizações internacionais como a Organização Mundial de Saúde - OMS tem buscado identificar a sua origem zoonótica e a rota de introdução à população humana.16

Para justificar a crise alimentar os economistas burgueses, por exemplo, citam fatores objetivos, como por exemplo: o crescimento populacional global, aquecimento global, desertificação crescente de terras aráveis, seca excepcional na Austrália e desenvolvimento em grandes países pobres como a China, Índia etc.15 Por outro lado, uma pequena burguesia decadente que ainda tem alguma renda suficiente para manter seu consumo alimentar, não se preocupa com a insegurança e a fome pois para ela este é um problema resolvido. No entanto, dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura - FAO, demonstram o agravamento das condições alimentares, neste caso a fome, em países de diversos continentes.17 No relatório Panorama de la seguridad alimentaria y nutricional en América Latina y el Caribe 2020 detalha-se a desigualdade na distribuição geográfica da má alimentação nos países latino-americanos. Destaca-se ainda, que o impacto da pandemia ocorre em um momento em que a segurança alimentar regional já estava em clara deterioração: em 2019, 47,7 milhões de pessoas, 7,4% da população, viviam com fome, um aumento de mais de 13 milhões apenas nos últimos cinco anos. Além disso, mais de 190 milhões de pessoas viviam em situação de insegurança alimentar moderada ou grave, o que significa que um em cada três habitantes da América Latina não tinha acesso a alimentos suficientes e nutritivos18.

Josué de Castro19 em seus escritos já desmitificou ideias equivocadas sobre a falta de alimentação para toda a população e as formulações ideológicas contemporâneas (neomalthusianas) que naturalizam o fenômeno da fome. Castro19 e George20 escancaram a fome como nefasta consequência do modo de produção capitalista; contraargumentam que a fome não advém somente da consequência de catástrofes naturais (terremotos, secas, tufões), de superpopulação, da escassez de alimentos, da inferioridade de alguns grupos raciais e até mesmo de determinação geográfica. Os autores destacam que a fome é gerada predominantemente por escolhas políticas e sociais, pois a humanidade produz o suficiente para que todos possam satisfazer suas necessidades nutricionais, na realidade o mundo produz mais do que necessita para a alimentação humana. A fome é de fato uma produção social capitalista que chega a atingir mais rapidamente a população oprimida e segregada, diminuindo a sua expectativa de vida. Em 2019, segundo dados da FAO, a fome atingiu mais de 820 milhões de pessoas no mundo.21

Outro traço importante do capitalismo contemporâneo relacionado ao agronegócio é o capital financeiro, advindo da fusão entre capital industrial e capital bancário, que contribuiu para o desenvolvimento de grandes monopólios e o aumento do poder dos bancos sob os Estados, por meio da circulação de capital através de dinheiro especulativo (financeirização).8 Foi neste contexto que o agronegócio abocanhou a sua fatia, havendo a transformação dos alimentos em commodities e como um novo negócio gerenciado pela cadeia globalizada, com grande participação de agentes do mercado financeiro, foi criada a especulação alimentar. Apesar de pouco visível ou até mesmo velada ao consumidor, a especulação alimentar produzida pelo agronegócio também tem vivido sua expansão financeira. A financeirização se dá pela entrada de fundos de pensão e de investimentos nos negócios da cadeia agropecuária. Os fundos podem participar diretamente na aquisição de terras, arrendamentos de propriedades e os investimentos podem ser feitos em empresas de maquinários, insumos, mecanismos de estocagem, comercialização dos produtos no mercado internacional, processos de industrialização e formação de novas cadeias.22 Assim, assiste-se a crescente onda de privatização das terras (a compra por governos estrangeiros, agronegócios transnacionais ou fundos de investimentos), a expansão das novas fronteiras agrícolas - em muitos países como áfrica, ásia e América Latina tem visto reduzir a sua capacidade de autoabastecimento, diminuindo a sua capacidade de produção de alimentos.8

É neste cenário em que a perspectiva crítica pode tecer análises sobre a tríade alimento-mercadoria-doença como produto e produtora das desigualdades econômicas, políticas e sociais que sustentam e servem para a reprodução do capitalismo; gerando fome, pobreza e miséria da classe trabalhadora. Neste sentido, identificar contradições, tensões e dar legitimidade às lutas sociais com mais resistência de base e mais força política, significa arregimentar forças transformadoras e desnudar o cerceamento do debate público das questões existentes, como a fome. É também olhar para o que não está sendo dito ou visibilizado, mas que está em efervescente produção nas entranhas do tecido social e da luta política: a dominação e a constante expropriação da classe trabalhadora.

Outro ponto importante é a forma como se define estrategicamente as ações para enfrentamento das questões existentes (sejam elas de alimentação ou saúde): se é por meio de ações individuais ou coletivas; se arregimenta-se forças ou fragmentam-se as possibilidades de luta coletiva (segmentando as práticas políticas). A definição de ações e abertura de espaços de reflexão merecem destaque, porque são as formas como se constrói e se diz como se deve enfrentar os problemas existentes, especialmente aqui, traduzida na produção de conhecimento sobre o tema já que as revisões mais recentes sobre alimentação em uma perspectiva das ciências sociais, apontam que é necessário desenvolver novas formas de crítica aos sistemas agroalimentares e (re)politizar a questão da alimentação sugerindo levar em consideração os aspectos sociais e humanos das transições técnicas e a importância do vínculo com alimentos e o consumo.23

Cheney24 relembra que o uso das categorias marxianas como alienação, divisão do trabalho e a produção de consumo pode fortalecer o argumento da soberania alimentar e, ao mesmo tempo, montar uma crítica à cultura gastronômica. Segundo o autor,24 assim como a comida pode ser um local de opressão, também pode ser um local de luta contra o capital e por isso, é essencial compreender a alimentação e o alimento na dinâmica da crítica da economia política capitalista.

Para isso, Foster, 25 ao resgatar Marx, já nos reavivava que em meio à produção abundante de alimentos, a fome continua sendo um problema crônico e a insegurança alimentar e nutricional é agora uma preocupação premente para muitas pessoas do mundo. É nessa lógica destrutiva do modelo econômico vigente expresso pela sua forma ultraneoliberal26,27 em especial nos países de capitalismo dependente, é que a produção e os padrões de consumo, o seu ancoradouro de exploração, expropriação, crescimento de desigualdades, precarização do trabalho e lógica de socialização dos prejuízos e privatização do lucro tem sido a tônica. Essas são as características do projeto de destruição (humana e do ambiente) que está em curso, cujo alvo é o aniquilamento das possibilidades humanas de existência digna, de construção de solidariedade e justiça social, que tem no alimentar-se a forma de se reproduzir a partir da sua lógica de dizimar pessoas. Não obstante a fenda metabólica e o novo regime de produção de alimentos25 tem sido este o projeto vigente em escala global que também tem chegado com bastante força nos territórios dos países da América Latina.

Em termos de dependência da América Latina, a concentração das produções rentistas é o produto da construção histórica de sua inserção no capitalismo global, como fornecedores de matérias-primas, em especial os alimentos como um componente dinâmico de uma tradição colonial de subserviência.28 Altos volumes fixos de capital constante são investidos em produções extrativistas e isso cria enormes pressões sobre a economia periférica29 e, com isso, gera superexploração do trabalho. Segundo Osorio,30 a superexploração não significa que os trabalhadores devem morrer aos 40 ou 50 anos. A apropriação dos anos futuros da vida e a venda anormal de mão-de-obra que leva à superexploração se refletem no fato de que essa venda será realizada em piores condições. Para o capital, um trabalhador superexplorado desde tenra idade, com 45 ou 50 anos, é um trabalhador que pode receber um emprego, mas com salários mais baixos, pois é uma força de trabalho exausta prematuramente. E pode-se viver vários anos próximos às novas médias de expectativa de vida, mas com doenças e enfermidades, o resultado de uma vida depredada e/ou mal recuperada em termos nutricionais.

Assim, este é o movimento que resvala nos países latino-americanos, nestes tempos de crises. Trata-se do enraizamento do neoliberalismo dependente, em sua forma contemporânea ultraneoliberal,26,27 com a opção dos seus governos em reconfigurar o Estado capitalista como meio para a reprodução do capital e alguns exemplos das consequências concretas disso são: a diminuição dos gastos públicos, cortes significativos nos investimentos sociais para garantia de direitos, os desmontes desses direitos sociais via contrarreformas conduzidas pelo Estado, que afetam diretamente as políticas públicas, programas e ações sociais, o que aniquila as condições de vida da classe trabalhadora.31

O cenário político na América Latina e particularmente no Brasil enreda a negação do alimento enquanto necessidade humana essencial à vida, como também a negação da cultura alimentar e o desrespeito à comensalidade da população. Por meio disso geram também a negação da fome enquanto problema estrutural, ou seja, a noção evidente que a burguesia tem, que ao tocar na alimentação provoca danos irreparáveis e propositais a gerações da classe trabalhadora. Forçar a população a vivenciar a fome e o consumo de comida ultraprocessada é uma ação proposital para forjar o uso político da alimentação como manobra de interesses burgueses nesta sociabilidade capitalista usada no capitalismo desde sempre.

Os usos políticos da fome como arma de extermínio e assassinato social

O paradoxo entre a produção exacerbada de alimentos, a miséria e a fome que assolam uma parte significativa da população mundial, não é de hoje.32 A fome é uma produção social do capitalismo desde seu nascedouro. As primeiras análises sobre o alimento como mercadoria e a fome como forma de massacre da classe operária aparecem em Marx e Engels em seus escritos sobre o capitalismo de seu tempo. Marx retrata o problema em os Grundrisse (1857-1858), versão inicial dos manuscritos econômicos da crítica da economia política que antecederam a obra "O Capital"; e Engels (1845) em seu livro "A situação da classe trabalhadora na Inglaterra", que aborda a fome e a falta de alimentos como forma de assassinato social da classe trabalhadora.

A ideia de assassinato social retratada por Engels é o fato de que este seria configurado pela morte por fome. A descrição das condições de vida impostas a classe que nada possui dos meios de produção vai ser feita neste livro com base em três grandes necessidades: (i) habitação; (ii) vestuário; (iii) alimentação. Quanto à alimentação, fica claro que nas grandes cidades pode-se encontrar de tudo em grande oferta e variedade, mas como uma pessoa que sobrevive com tão pouco vai pagar pelo alimento? Outro ponto levantado é que os produtos de qualidade chegavam ao mercado pela manhã e os operários recebiam - alguns - na sexta-feira à noite e muitos apenas no final do sábado, mas a realidade é que mesmo que conseguissem chegar cedo não teriam condição de comprar. Inclusive alguns apelavam para as mercadorias que nem poderiam mais ser vendidas, compravam carnes em estado de putrefação. Produtos como manteiga, cacau, café, cigarros de tabaco eram adulterados antes de chegarem às mãos dos trabalhadores, que por não serem acostumados com boa mesa, não percebiam. Mas, o pobre não sofre apenas na questão da qualidade dos alimentos, sofre também na quantidade, quando enganados por pesos falsos e balanças viciadas. Essa era a situação alimentar da classe trabalhadora na Inglaterra.

Após observarmos esses aspectos conjuntamente é posto claramente em pauta algo muito importante: a saúde dos trabalhadores. Juntando esses aspectos consegue-se perceber a escala de diferentes condições de vida que Engels ressalta e a instabilidade desse trabalhador diante dela. Isto possibilita entender que a saúde dos trabalhadores, junto as suas situações de higiene, moradia e alimentação, mantinha-se sempre muito debilitada, indo do modesto conforto à privação extrema, com risco de morte pela fome, tendo que se submeter a situações mais degradantes para sobreviver. As condições de vida colocadas pela sociedade (naquele período histórico) que ocasionavam o assassinato da classe trabalhadora e que não permitia nem mesmo uma legítima defesa, pode não parecer um assassinato, mas na realidade o é. Revestida da aparência de naturalidade, a fome, a alimentação quando feita de maneira inadequada é uma das principais causas deste assassinato em massa, conforme Engels descreve na Inglaterra.

As numerosas mortes causadas indiretamente pela fome tornavamse invisíveis, a sistemática falta de alimentação que provoca doenças mortais, colocava as vítimas tão enfraquecidas em enfermidades que, em outras circunstâncias, poderiam evoluir favoravelmente, mas nesses casos determinaram a gravidade que levavam à morte. A isso chamam os operários ingleses de assassinato social e acusam a sociedade de praticálo continuamente. Estarão errados? Morriam de fome, é certo, indivíduos isolados, mas que segurança tinha o operário de que amanhã a mesma sorte não o esperava? Quem poderia garantir-lhe que não perderia o emprego? Quem lhe assegura que amanhã, quando o patrão - com ou sem motivos - o punha na rua, poderia aguentar-se, a si e à sua família, até encontrar outro que lhe desse o pão? Quem garantia ao operário que, para arranjar emprego, lhe bastava boa vontade para trabalhar, que a honestidade, a diligência, a parcimônia e todas as outras numerosas virtudes que a ajuizada burguesia lhe recomendava são para ele realmente o caminho da felicidade? Ninguém. O operário sabe que, se hoje possuía alguma coisa, não dependia dele conservá-la amanhã; sabe que o menor suspiro, o mais simples capricho do patrão, qualquer conjuntura comercial desfavorável poderia lançá-lo no turbilhão do qual momentaneamente escapou e no qual é difícil, quase impossível, manter-se à tona. Sabe que se hoje tinha meios para sobreviver, poderia não os ter amanhã.33

Mais adiante, Engels vai dizer que aos trabalhadores restaria o que se repugna à classe proprietária. Nas grandes cidades da Inglaterra, poderia se ter de tudo e da melhor qualidade, mas a preços proibitivos para o operário, que por sobreviver com poucos recursos, não poderia pagá-los. Em geral, a composição da alimentação do operário era marcada pelas batatas que adquiria que eram de má qualidade, os legumes murchos, o queijo envelhecido, o toucinho rançoso e a carne ressecada, magra, e muitas vezes de animais doentes e até mesmo já em decomposição. Frequentemente, os vendedores eram pequenos varejistas que compravam mercadorias ordinárias em quantidade e as revendiam a preço baixo exatamente por causa de sua má qualidade.

Fatos retratados por Engels guardam muita semelhança com o que se vive hoje, resguardada a devida localização histórica: como a adulteração do açúcar com a mistura de farinha de arroz ou outros gêneros baratos; a mistura de chicória ou outros produtos de baixo preço ao café moído; e pimenta adulterada com cascas de nozes moídas. Será que não podemos dizer que esses são os ultraprocessados do século XIX? Produtos alimentícios que originalmente pouco ou nada têm de alimento de verdade. Neste sentido, a aparência pode ter mudado. No início do século XXI vive-se a oferta dos produtos alimentícios adulterados ou indigestos que são ricos em sódio, açúcar refinado, glucose de milho, aditivos alimentares, corantes e pesticidas, que nada são de alimento ou possuem de sua composição original.34,35 Em que pese as diferenças entre os tempos históricos, a tática do assassinato social lento e gradual parece secular.

Naquele momento na Inglaterra, a alimentação habitual de cada operário variava naturalmente em função do salário. Os operários mais bem pagos, em especial os operários fabris, em cuja família todos os membros conseguiam ganhar alguma coisa, tinha - enquanto essa situação perdurava - uma boa alimentação: carne todos os dias e, à noite, toucinho e queijo. Nas famílias que ganhavam menos, só havia carne aos domingos ou, às vezes, em dois ou três dias da semana; em compensação, comiam mais batata e pão (alimentos ricos em carboidratos). À medida que se descia na escala salarial, verificava-se que a alimentação à base de carne se reduzia a alguns pedaços de toucinho misturados à batata; descendo ainda mais, até o toucinho desaparecia, permanecendo o queijo, a batata, o pão e o mingau de aveia; quando chegam-se aos irlandeses, restavamlhes apenas as batatas como único alimento. Geralmente, a comida era acompanhada de um chá ligeiro, mesclado com um pouco de açúcar, leite ou aguardente. Na Inglaterra, e também na Irlanda, o chá era tido como uma bebida tão necessária e indispensável quanto, entre nós, o café - e, na casa onde não se tomava chá, reinava sempre a face mais cruel da miséria. Mas tudo isso só era verdade se o operário estava empregado; desempregado, ele ficava à mercê da sorte e comia o que lhe davam, o que mendigava ou até mesmo o que roubava - e se não encontrava nada, simplesmente morria de fome.33

Deste modo, fica fácil compreender que tanto a qualidade como a quantidade da alimentação dependiam (e dependem) do salário (da renda) e que, entre os operários mais mal pagos, em especial entre aqueles que têm uma família numerosa, a fome impera, mesmo em períodos nos quais há empregos. Vale salientar que o contingente de operários mal pagos era enorme. Nada muito diferente do que vivemos hoje, no século XXI no contexto da pandemia do covid-19, em que a superexploração de trabalhadores é recorrente e, que os infoproletários de aplicativos, tais como Rappi, Ifood, UberEats etc.,36 como parcela mais degradada da classe trabalhadora (à semelhança os irlandeses na Inglaterra do século XIX) padecem da pior alimentação possível. Mas, com uma nefasta de contradição, entregam alimentação de maior qualidade a quem pode pagar por ela.

Mas, voltando a Londres, quase todos os operários tinham o estômago afetado e, no entanto, eram constrangidos a ater-se permanentemente à dieta que é, ela mesma, a causa de seus males. De resto, como poderiam conhecer as consequências de sua má alimentação? E mesmo que as conhecessem, como poderiam seguir uma dieta mais adequada sem que se alterassem suas condições de vida e de educação? Na verdade, isso só seria possível se se alimentassem de outro nutriente. Nutrir-se do ódio mais ardente contra seus opressores, contra uma ordem social que lhes impunham uma situação que os degradava ao nível das máquinas.33(141)

Os cenários de revoluções são terrenos férteis para resgates históricos sobre a alimentação. A Rússia, ainda czarista de Alexandre II (1858-1881) e Nicolau II (1894-1918) já proporcionavam frequentes crises de abastecimento alimentar. Viana37 demonstra como na Rússia prérevolução, a penúria da classe operária era sentida pela alimentação: "os salários, inclusive dos operários qualificados, abaixavam constantemente, enquanto os preços dos artigos básicos para a alimentação subiam, e, assim, de outubro de 1903 a 1904".37(49)

Não podemos nos esquecer do cenário da Revolução Russa de 1917 em que trabalhadores famintos que reivindicavam o seu direito à vida, realizaram saques de alimentos por toda a Rússia - gerando a Revolta do Pão. Dentre os sovietes que reclamava à alimentação melhor estavam, principalmente, os soldados e marinheiros e é neste momento em que o direito à alimentação como direito fundamental é reclamado pela frente revolucionária.38 É aí que reside o ponto de inflexão histórica onde o acesso ao alimento é concebido, ainda de forma rudimentar, na ótica de um direito humano. Episódios como este da histórica da luta de classe mostram o quanto a indignação é acirrada com a fome e que a mesma, quando intensificada, tem grande potencial para a eclosão de uma revolução. Panik39 justifica que a adesão proletária à estratégia socialista depende desta capacidade dos revolucionários em pautar questões concretas do cotidiano das quais a fome vivenciada na Rússia era uma delas.

Assim, é consolidada a plataforma "Paz, Terra e Pão" na luta operária contra o czarismo. Mais uma vez a comida (o pão) ressaltava o apelo à luta. Contudo, a contrarrevolução se instala e dá início a guerra civil de (1918-1921) entre os russos brancos (a favor do czarismo) e os vermelhos (a favor da revolução). O ambiente da guerra também acentuava os papéis de gênero, no qual era responsabilidade das mulheres a procura por alimentos no mercado clandestino já que a carestia e a falta de gêneros alimentícios tornavam a vida insuportável, especialmente para as mulheres das classes pobres.40

Neste transcorrer, o Código de 1918,40 delimitou algumas mudanças substantivas na vida da classe operária no que tange à alimentação como, por exemplo, ao estabelecer a pensão alimentícia em caso de incapacidade ou pobreza de qualquer um dos cônjuges. Além disso, na dificuldade de produção de alimentos que se instalou, uma saída para este fim foi, em primeiro lugar, a instalação do sistema de alimentação coletiva.40 Assim, a vitória da revolução com exército bolchevique foi um legado muito importante para a classe trabalhadora, mas deixou este saldo difícil de pagar relativo à produção e abastecimento de alimentos especialmente pela massiva área de plantações destruídas com relatos inclusive de casos de canibalismo.41

Se em tempos de guerra a transição revolucionária ao socialismo levou a escassez de recursos e, no caso da alimentação, à crise da produção agrícola que se manifestava em fome das grandes massas, este evento é uma fatalidade, consequência da luta pela libertação e da necessidade de reconstrução política. Diferentemente, o capitalismo produz socialmente essas condições em tempos de paz, o que é, em si mesmo, uma diferença de conteúdo sobre a produção social da fome bastante relevante.

Ao observar o nazismo, como uma forma particular de fascismo que expressa, em última instância, a mais violenta forma de dominação política capitalista, a fome era um instrumento de gestão da morte das classes subalternas e de caráter eugênico. Segundo Silva42 o plano fome implantado por Hitler era um programa que além da discriminação racial, havia uma discriminação alimentar em que as populações eram subdivididas em quatro categorias ou grupos: (i) população bem alimentada, que tinha um papel no andamento da guerra; (ii) população insuficientemente alimentada, cuja satisfação alimentar só atingia mil calorias por dia por adulto; (iii) Os famintos, tratavam-se de pessoas que recebiam alimentação abaixo do nível de sobrevivência com o objetivo simples de que a população fosse reduzida, como era o caso dos residentes nos guetos judeus; e (iv) os destinados a serem exterminados pela fome, grupos aos quais a fome era imposta como forma de dizimálos.42(21)

Com a caracterização do uso político da alimentação como arma no capitalismo, como forma de controle da morte das massas e da estratificação social artificialmente produzida, foi que, após as atrocidades que este cenário produziu a defesa da alimentação passou a ser um importante sinônimo de defesa da humanidade. Assim, na garantia de reestabelecimento de paz (sob os moldes capitalistas), foi configurado um sistema proteção internacional dos direitos humanos que resultou na "Declaração Universal dos Direitos Humanos" em 1948.42 Esta declaração aponta em seus artigos 3°, 23° e 25°, que tratam respectivamente do direito à vida, do direito ao trabalho em condições satisfatórias, que permita ao indivíduo e sua família uma existência digna e protegida do desemprego e por último o direito à um nível de vida que assegure ao indivíduo e sua família à saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação.42

Mesmo neste marco, a divisão mundial entre capitalismo e socialismo ficou demarcada na produção dos dois documentos derivados a Declaração dos Direitos Humanos. Um primeiro, orientado às pessoas (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos) e outro destinado aos Estados (Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais). Nestes pactos o direito à alimentação se encontrava no segundo e, em torno desta ideia, se construiu o rudimento do que se pode compreender como proteção social em termos de um conjunto de políticas em que o Estado deve operar para que os direitos sociais, inclusive o de alimentar-se, seja efetivado.31

No entanto, com a polarização política mundial com a Guerra Fria e a reconstrução dos países do ocidente europeu, a os direitos civis e políticos ganharam mais contorno no avanço do capitalismo do que os direitos econômicos, sociais e culturais. Mesmo com a construção dos Estados Sociais Capitalistas com sistemas de proteção social generosos nos países de capitalismo imperialista (França, Alemanha e Inglaterra) essa forma de uso do social sempre esteve ligado ao fortalecimento dos negócios capitalistas. Lessa43 reforça que:

as teses que tentam explicar o Estado de Bem-Estar a partir de um 'compromisso' entre trabalho e capital partem do pressuposto de que as políticas públicas dos Estados imperialistas no pós-guerra estavam verdadeira e genuinamente voltadas a atender aos interesses dos trabalhadores e às necessidades dos mais carentes. Vimos como isso jamais ocorreu; não houve política pública que não tenha sido, acima de tudo e prioritariamente, um bom negócio para o capital.43(210)

Neste cenário, a disputa política em torno da alimentação tentou obliterar o uso do termo fome, colocando-o na alcunha da retórica científica, despolitizando seu conteúdo, justificando que o que há no capitalismo são cenários de insegurança alimentar e nutricional, e não fome propriamente dita.

É aí em que a disputa conceitual histórica sobre a alimentação e a nutrição a partir da perspectiva de assegurar cenários de segurança alimentar e nutricional (SAN) aparece ligada a capacidade de cada país produzir seus próprios alimentos para que não ficasse exposto a problemas relacionados a questões políticas ou militares durante o período da I Guerra Mundial (1914-1918). Depois do pós-guerra, a falta de SAN passa a ser entendida como uma questão de disponibilidade insuficiente de alimentos e com isso iniciam-se várias ações de apoio e assistência à alimentação, em geral utilizando os excessos de produção de países imperialistas para os países de capitalismo dependente.

Posteriormente, em 1950, a Revolução Verde causou um aumento na produção de alimentos promovida pelo uso de sementes transgênicas, utilização de pesticidas e fertilizantes, inovação tecnológica de maquinários agrícolas de plantio e colheita. Desde então foram forjados, como aponta Krauser44 uma mescla de regimes alimentares proporcionados pela lógica de proteção-desproteção no âmbito do capitalismo monopolista até o período do neoliberalismo em que a acentuação do caráter mercantil dos alimentos se intensificou. Especialmente o regime alimentar norteamericano e o regime alimentar corporativo são as principais formas históricas recentes acerca de o abastecimento alimentar no capitalismo e suas consequências.

Considerações finais

Atualmente a situação alimentar no mundo passa por uma Sindemia Global de obesidade, desnutrição, fome e mudanças climáticas que coexistem, se intensificam e tem gerado impactos desastrosos para a saúde, para o meio ambiente e tem produzido custos sociais que ofuscam os custos econômicos. O Relatório da Comissão de Obesidade The Lancet demonstra que adicionalmente a este cenário de pandemias, outro desafio para os seres humanos é na nossa relação com o meio ambiente.45 Tendo em vista que estamos mantendo um sistema agroalimentar global insustentável, este relatório mostra que os fatores comuns da Sindemia Global surgem a partir da produção de alimentos, dos sistemas de uso da terra, do transporte e do desenho urbano que derivam dos sistemas naturais e são moldados pelas políticas, incentivos e desincentivos econômicos e normas estabelecidas por meio de mecanismos de governança.

Há o predomínio da ideia contemporânea de que a obesidade seja a grande questão de saúde pública relacionada à alimentação, enquanto a fome e a desnutrição são considerados realidades residuais, ligadas à pobreza extrema, ou presentes em contextos sociais distantes dos grandes centros e restritas a populações rurais, populações tradicionais (como, indígenas e quilombolas). A pandemia do covid-19 escancarou e acirrou essas contradições, pois esta ideia apenas reforça e oculta as faces econômicas, políticas e sociais da alimentação. A fome também está sim nas periferias das grandes cidades, e já não podemos mais negar isso; pois sob essa retórica se apaga a possibilidade de se discutir o cerne da questão: o modelo econômico de produção e a ação humana produzida por ele.

O Brasil tem experimentado uma transição nutricional marcada pela dupla face de questões ligadas a inadequações na alimentação que é incoerente com a dita vocação agrícola que se impõem a ele. Coexistem a desnutrição e as carências nutricionais; o sobrepeso e a obesidade associados a um conjunto de DCNT que são incompatíveis com o cenário produtivo agrícola, caso os alimentos fossem socializados. O cenário das doenças associadas à nutrição tem onerado os gastos públicos com a saúde, devido ao custo do tratamento para os indivíduos, famílias e, principalmente, para os sistemas de saúde,46 que foi agravado pela covid-19.

Particularmente no Brasil, o cenário atual de fome na pandemia pode ser verificado através dos dados do "Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil",47 que do total de 211,7 milhões de brasileiros(as), 116,8 milhões conviviam com algum grau de insegurança alimentar e nutricional, e destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões enfrentam a fome. Tais fatos não deixam nem um pouco tranquila as elites que se somam ao Estado brasileiro, pois certamente temem que uma revolta por comida aconteça. Basta acompanhar ao longo da pandemia, a forte manutenção e controle do abastecimento dos supermercados, a manutenção de feiras livres, a pronta atenção a criação de um cartão-voucher que substituísse a alimentação escolar na educação básica e técnica, a distribuição de cestas básicas realizadas por diversas indústrias em bairros periféricos, a ação emergencial do governo federal na tentativa se subsidiar também a comida no prato do brasileiro.

A doação de alimentos como ação emergencial de combate à fome, em tempos de pandemia (e, também, fora dela), pode assumir faces de diferentes motivações, intencionalidades e responsabilidades sociais que colocam em cena quem quer fazer a mudança estrutural e quem quer fazer a generosidade. Mas, afinal o que é fome? Muitas vezes essa forma de dominação capitalista sob a classe trabalhadora é compreendida como desnutrição ou pobreza, que segundo Boog48 tem diferenças estruturais, conceituais e de mensuração importantes. A ideia simplista, de que o alimento sacia a fome do pobre deve ser analisada com cautela, pois a fome não se apresenta necessariamente na sua forma biológica, podendo se apresentar como diversas fomes: fome oculta, fome aparente, fome aguda e fome crônica.19

Embora, o alimento doado seja sempre bem-vindo, nem sempre é bem apreciado, porque não é aquele desejado, adquirido por livre escolha e que envolve o ato de comer em sua completa comensalidade.8 Dar comida a quem tem fome sempre foi considerado um ato de generosidade, de caridade e de solidariedade.48 Se por um lado a fome não espera, as políticas assistencialistas têm forjado a classe trabalhadora a sujeição e ao conformismo com seu status quo de dominação.

Assim, são necessárias rupturas com o modo de produção e comercialização de alimentos, uma forma de ações de combate estrutural à fome, a exemplo do que já tem ocorrido nesta pandemia é destacar: a produção e distribuição de alimentos produzidos pelos pequenos produtores da agricultura familiar, por meio da importância do Programa de Aquisição de Alimentos - PAA como ferramenta para mitigar os impactos econômicos e sociais da pandemia causada pelo novo coronavírus, por conta da sua dinamização na economia local, o acesso a novos mercados, o aumento e diversificação da renda, comercialização e garantia de venda, o acesso aos alimentos de qualidade, incentivo ao consumo de alimentos de qualidade e melhoria na saúde.49 A diversas formas de doação dos movimentos sociais da reforma agrária, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST (cestas básicas com diversos alimentos de verdade, feiras e marmitas) para periferias e comunidades; além de construir novas formas de sociabilidade de comercialização e abastecimento local de alimentos, com relação direta entre o pequeno produtor e o pequeno comerciante da periferia, sem variação de preço e com qualidade; a organização e criação de diversas cozinhas comunitárias solidárias conduzidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto - MTST.

É necessário avançar na crítica radical ao modo de produzir alimentos neste sistema capitalista, pois não podemos estacionar na contra-hegemonia do consumo consciente, na reterritorialização do alimento, na culturação alimentar ou na recivilização social do gosto. A insistência nestes discursos evita o ponto nodal que é a crítica à alimentação e a passagem para uma alimentação crítica. Assim não basta (de)colonizar, é necessário se (re)radicalizar.

Agradecimentos

Ao Curso de Especialização em Estudos Marxistas e à Associação Paulista de Saúde Pública - APSP.

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